A captura de mais de 100 reféns israelenses, muitos deles idosos, mulheres, crianças e até famílias inteiras arrancadas por terroristas de dentro de suas casas, escalou o drama da guerra em Israel a um nível inédito.
O papel dessas vítimas no desenrolar da guerra ainda não está claro: elas podem ser usadas para legitimar uma ocupação israelense sem precedentes na Faixa de Gaza. Mas também podem ser feitas de escudo humano para causar o efeito contrário, dissuadindo o governo de adotar ações mais violentas contra o território controlado pelo Hamas.
A maioria dos analistas militares ouvidos pela Gazeta do Povo disseram que, por ora, a opção da ocupação de Gaza é a mais provável. Isso porque a situação dos reféns se soma a um número de mortes israelenses que supera todos os conflitos com palestinos nos últimos 20 anos. Até a noite de domingo, a contagem oficial passava de 700 em dois dias.
Israel viveu um drama similar de reféns em 2006, quando um grupo extremista islâmico capturou o soldado conscrito Gilad Shalit e o levou como refém para a Faixa de Gaza. Ele ficou preso até 2011 e a chantagem feita por grupos palestinos contra Israel levou a uma crise política, um intenso bombardeio sobre a Faixa de Gaza e a libertação de mais de 1.000 árabes de prisões israelenses. Tudo isso por um soldado. No atual conflito, estima-se que mais de 100 reféns tenham sido capturados nos últimos dias e os sequestros continuam.
Imagens que circularam em redes sociais e aplicativos de mensagens mostram cenas chocantes, como civis israelenses fuzilados aleatoriamente nas ruas, dentro de seus carros e em pontos de ônibus de cidades próximas da Faixa de Gaza. Outras mostram uma mulher ensanguentada e algemada sendo exibida para fanáticos em Gaza ou famílias inteiras algemadas saindo de suas casas em roupas de dormir conduzidas por guerrilheiros mascarados.
As cenas de horror foram protagonizadas por terroristas ou combatentes?
A nomenclatura adotada pela imprensa sobre os membros do Hamas que invadiram 30 cidades israelenses e perpetraram esses crimes de guerra vem gerando muita polêmica.
O fato de homens armados terem descido de paraglider no meio do deserto, onde acontecia uma festa rave, e aberto fogo contra uma multidão praticamente indefesa (deixando 250 mortos ao menos) foi um ato de terrorismo. “Eles não pousaram aleatoriamente ao ver alvos no deserto, tudo aquilo foi programado de antemão”, disse Sandro Teixeira Moita, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME).
Da mesma forma, terroristas circularam pelas ruas de cidades e vilas israelenses atirando aleatoriamente na população. Eles invadiram casas para fazer reféns e incendiaram imóveis onde famílias se protegiam em “quartos do pânico” (salas blindadas usadas para proteção).
Mas parte desses membros do Hamas pode ser nomeada como combatente, se a análise for feita à luz do Direito Internacional de Conflitos. Segundo Teixeira Moita, houve uma divisão de tarefas entre os invasores. A missão de parte deles era entrar em confronto com as Forças de Defesa de Israel em uma luta até a morte, para impedir que os militares israelenses socorrerem os civis que estavam sendo mortos ou sequestrados. Nesse caso específico poderiam ser chamados de combatentes à luz do direito, porque obedeciam os costumes de guerra de estarem uniformizados, portarem suas armas à mostra e obedecerem a uma cadeia de comando. Os que cometeram atrocidades contra civis, mesmo cumprindo os costumes de guerra, podem ser entendidos como terroristas. Mas esse debate está longe de ser pacificado.
Até a noite de domingo (8), muitos homens do Hamas ainda ocupavam ao menos oito cidades israelenses. O número chegou a 30. Segundo Teixeira Mota, o papel deles é resistir o máximo possível para que mais reféns sejam tomados. Eles não devem retornar com vida para a Faixa de Gaza.
Enquanto as tropas convencionais das Forças de Defesa de Israel tentam romper o bloqueio nessas cidades, operadores das Sayeret Matkal, as forças especiais israelenses, agem dentro das linhas de defesa do Hamas para tentar resgatar reféns. Até a noite de domingo, eles já haviam conseguido resgatar ao menos 13 pessoas, mas os dados não foram confirmados por Israel.
A defesa antiaérea israelense falhou?
Os combates no terreno, as ações de terror do Hamas e a reação das forças especiais israelnses ocorrem sob um intenso bombardeio mútuo. O Hamas, que afirmou ter disparado 5 mil foguetes contra Israel só no sábado (7), continua sua campanha de bombardeio. O chamado Domo de Ferro, comumente conhecido como o sistema de defesa aérea de Israel, acabou sendo saturado com um número muito elevado de alvos. Por isso, muitos foguetes atingiram cidades israelenses.
Mas o Domo de Ferro é um sistema inacabado. Ele é apenas a linha de defesa antiaérea de curta distância de Israel. Quando a guerra começou no sábado, o país não tinha concluído a construção das defesas de média e longa distância. Assim, com um número limitado de baterias antiaéreas, muitos foguetes do Hamas penetraram nas cidades israelenses. Não é verdade que “faltou munição para Israel”.
A técnica de saturação de defesas antiaéreas foi aprendida possivelmente com a guerra na Ucrânia, onde tanto ucranianos como russos lançaram ondas de mísseis e enxames de drones simultaneamente para sobrecarregar as defesas antiaéreas do adversário.
A resposta aos foguetes do Hamas dada pelo governo do premiê israelense Benjamin Netanyahu tem sido uma campanha intensa de bombardeios com mísseis e aviação sobre a Faixa de Gaza. Esses bombardeios não devem diminuir de intensidade tão cedo.
O próximo passo do governo de Israel deve ser retomar as 22 cidades israelenses próximas à Faixa de Gaza que foram invadidas por terroristas do Hamas.
A existência de reféns não deve impedir forças israelenses de invadir a Faixa de Gaza
“Os reféns são um grande complicador para a ação israelense. É justamente por isso que o Hamas os fez reféns. O grupo terrorista sabe que a opinião pública israelense vai pressionar o governo por um desenlace que salve a vida dessas pessoas e pretende usar isso para constranger as operações das Forças de Defesa de Israel”, afirmou o coronel da reserva e analista militar Paulo Roberto da Silva Gomes Filho.
“Mas a ação do Hamas foi tão violenta e causou tantas mortes que não acredito que a resposta de Israel possa ser contida mediante a chantagem da ameaça aos reféns”, disse o analista.
Outra possibilidade é que o Hamas tente usar os reféns para negociar trocas de prisioneiros. Segundo organização de direitos humanos B’Tselem, há aproximadamente 4.500 detentos árabes em prisões israelenses.
Como será a operação de Israel na Faixa de Gaza?
A entrada de forças israelenses na Faixa de Gaza parece inevitável no momento. O premiê Netanyahu tem deixado isso claro em seus discursos e ao declarar guerra formalmente ao Hamas. Mas ainda não está claro qual será a natureza dessa operação de guerra nem quando ela vai acontecer.
A Faixa de Gaza é um território de 365 quilômetros quadrados no sudoeste de Israel majoritariamente ocupada por população palestina. Israel retirou seus cidadãos de lá em 2005 e desde 2007 o território é controlado pelo Hamas.
Uma possibilidade é que Israel repita estratégias anteriores e faça uma ocupação temporária e limitada na Faixa de Gaza. O objetivo seria dar uma resposta política ao ataque de sábado e tentar libertar reféns e capturar ou eliminar lideranças do Hamas.
A outra opção, mais radical e sem precedentes, seria a invasão e ocupação prolongada da Faixa de Gaza – um tipo de ação que Israel já teve razões de sobra para adotar, mas nunca ousou colocar em prática.
Israel ocupa, por exemplo, as Colinas de Golã, que a Síria afirma serem parte de seu território desde 1967. Mas Gaza não é um platô rochoso escassamente habitado. Além de ser compreendida informalmente como território palestino, a Faixa de Gaza tem mais de 2 milhões de habitantes e sua ocupação e controle seria um pesadelo estratégico para qualquer comandante militar.
Segundo o coronel Flávio Morgado, também professor da ECEME, desde a guerra do Yom Kippur de 1973, extremistas palestinos entenderam que não é possível entrar em confronto direto com as forças de Israel. Por isso, ao invés de tentar unir nações árabes para travar uma guerra convencional (com brigadas, tanques, aviões e navios) como no passado, eles têm usado como estratégia a chamada guerra irregular, ou guerrilha.
Israel tem respondido com ações militares de força, mas sem a conquista territorial da Faixa de Gaza, para não ser acusada de forma mais intensa de anexação de territórios pela força.
Na opinião de Morgado, apesar dos intensos ataques do fim de semana, o cenário não tende a mudar a princípio. A resposta de Israel deve depender também de como o Hamas vai se comportar nos próximos dias, intensificando ou arrefecendo seus ataques.
Guerra de informações será tão importante quanto ações militares
Segundo Morgado, o Hamas e Israel estão se enfrentando também no campo informacional. Os extremistas filmaram e divulgaram a preparação e até a realização dos ataques e os divulgaram nas redes sociais para causar pânico e imobilização na sociedade israelense.
Já Israel começa a divulgar uma narrativa de que os ataques do fim de semana representam para sua nação o mesmo que os ataques de 11 de Setembro significaram para os americanos. “A história do 11 de Setembro é o que chamamos de manobra informacional para aumentar a liberdade de ação das tropas israelenses”, disse.
Ou seja, quanto mais ganhar força a imagem de brutalidade dos ataques do Hamas, mais violência as tropas israelenses poderão usar no campo de batalha sem sofrer represálias de sua sociedade ou da comunidade internacional. Por isso, segundo ele, a guerra informacional é tão importante quanto as manobras militares físicas no terreno.
“Por exemplo, o vídeo de uma mulher refém ensanguentada que o Hamas divulgou surtiu o efeito contrário. Ela chocou o público, mas ajudou a colocar a opinião pública a favor de Israel”, disse.
Mas, mesmo com as ações de terror perpetradas pelo Hamas, as tropas de Israel não poderão agir de forma totalmente livre e terão que minimizar o máximo que puderem os danos colaterais.
Tropas de infantaria devem decidir batalha em Gaza
Os analistas Nelson Ricardo Fernandes Silva, da consultoria de análise de riscos ARP e o coronel da reserva Fernando Montenegro dizem acreditar que uma invasão de larga escala na Faixa de Gaza é o cenário mais provável.
Segundo Fernandes as tropas de israel terão que ser de oito a 12 vezes mais numerosas que as do Hamas para que o território seja conquistado.
Segundo ele, em um combate de campo aberto, em teoria, a força atacante tem que ser três vezes mais numerosa que os defensores para conseguir a vitória. Mas em uma área urbana esse número dobra. Em Gaza, onde há muitos prédios e alta concentração populacional e grande número de fanáticos, terá que ser ainda maior.
Os tanques e blindados devem ter um papel importante no confronto, mas não seriam decisivos. Isso porque colunas de blindados podem ser canalizadas para armadilhas em espaços urbanos, onde podem ser aniquiladas por combatentes escondidos em prédios ou por drones, como já mostrou a guerra da Ucrânia.
Para terem grande efetividade, esses blindados têm que ser protegidos por helicópteros. Mas a guerra na Ucrânia já demonstrou também que eles são muito vulneráveis a armas antiaéreas portáteis.
Assim, segundo Fernandes, eles serão largamente usados, mas o fator decisivo numa invasão a Gaza deve ser o combate entre tropas de infantaria, ou seja, de soldados combatendo a pé. Segundo ele, um precedente para esse tipo de combate foi a batalha de Nablus, de 2002, quando Israel usou uma tática de “enxame”, na qual unidades de infantaria atacaram alvos palestinos não em uma única direção, mas a partir de diversos eixos.
Uma invasão dessa natureza, segundo o coronel Fernando Montenegro, começaria com uma grande concentração de tropas em cidades na fronteira com a Faixa de Gaza. Elas que fariam incursões cada vez mais abrangentes em território de controle palestino e se revezariam em turnos. Montenegro foi comandante da força de ocupação do Exército no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro e é autor dos livros Kid Preto e Comando Verde (Ed. Ubook)
“Esse tipo de operação é muito desgastante. No Alemão havia 400 mil pessoas e já era muito difícil, porque os criminosos forçavam as pessoas a ajudá-los. Na Faixa de Gaza isso vai ser muito pior”, disse.
Segundo ele, Israel tem grande experiência em evitar baixas civis em seus ataques. “Eles dão aviso antes de bombardear um alvo. Jogam uma bomba mais fraca para os civis saírem e depois lançam a bomba maior. Calculam até o tamanho do explosivo de acordo com o andar do prédio em que o alvo está”, disse.
De acordo com Montenegro, mesmo com todos esses cuidados, a operação deve causar muitas baixas tanto de palestinos como de militares israelenses.
Porém, mais complicado do que invadir a Faixa de Gaza seria manter o controle sobre o território. “Assim como para os Estados Unidos o mais difícil não foi entrar no Afeganistão mas sim estabilizar o país, com Israel o mais difícil não será reagir ao Hamas na Faixa de Gaza, mas sim administrar o dia seguinte”, disse o coronel Paulo Filho.
Segundo ele, após uma ação como essa, a relação entre israelenses e palestinos vai se deteriorar muito, tanto em Gaza como na Cisjordânia e em Israel. A tendência é que os confrontos de guerrilha e atentados terroristas aumentem.
Guerra entre Hamas e Israel favorece o Irã
A guerra israelense com o Hamas pode favorecer o Irã ao dificultar a normalização das relações entre a Arábia Saudita e Israel. As duas nações vinham se aproximando aos poucos porque a os sauditas estudam um acordo de defesa com os Estados Unidos que tem como condição a normalização de suas relaçnoes diplmáticas com Israel. Riad não reconhece a existência do Estado de Israel. Esse processo pode ser atrapalhado com o fortalecimento da causa palestina, que vinha repercutindo menos nos últimos anos no cenário internacional.
“O exponencial aumento das tensões entre Israel e Palestina é péssimo para a aproximação que estava ocorrendo entre israelenses e sauditas. Como a aproximação contraria os interesses iranianos, pode-se afirmar que se há alguém que tem ganhos geopolíticos com a crise, esse alguém é o Irã”, disse Paulo Filho.
A Arábia Saudita é de maioria religiosa sunita e o Irã xiita, o que os coloca em lados opostos. Mesmo assim ambos sempre foram antagonistas de Israel. Por isso, teoricamente, a normalização de relações entre sauditas e israelenses prejudicaria Teerã.
Os iranianos foram os primeiros a manifestar apoio internacional à causa do Hamas após os ataques. O chanceler iraniano Hossein Amir-Abdollahian descreveu o ataque do Hamas como “uma reposta legítima a anos de mortes e crimes”.
Segundo Sandro Teixeira Moita, da ECEME, já há indícios de que os extremistas do Hamas tenham recebido armas e treinamento da Guarda Revolucionária do Irã. “Dá para ver nos vídeos que circularam na internet o comportamento dos homens do Hamas. O jeito que eles seguram as armas, não levantam mais os fuzis acima da cabeça e ficam atirando a esmo. Não é mais o velho Hamas”, disse.
O conflito vai envolver mais países?
No domingo, o secretário de Defesa dos Estados Unidos Lloyd Austin anunciou o envio de armas para Israel e disse que um porta-aviões americano e sua força-tarefa naval serão enviados para o leste do Mar Mediterrâneo.
Isso não significa, por ora, um envolvimento direto das tropas americanas no conflito. Segundo o coronel Montenegro, trata-se de uma ameaça ao Irã. “Os aviões de caça dos EUA não terão papel nenhum em uma batalha em Gaza, por exemplo. Esse porta-aviões é um recado direto para o Irã”, afirmou.
No norte de Israel, extremistas do Hezbollah, também financiado pelo Irã, começaram a atacar posições israelenses com artilharia a partir do sul do Líbano. Mas não há indícios até agora de que a guerra vai se alastrar para território libanês. O ataques seriam uma tentativa de criar uma ameaça constante e assim impedir que o comando militar norte de Israel mova suas tropas para ajudar em uma eventual operação em Gaza, no sul.
Assim, por ora, a guerra deve ficar restrita aos territórios israelense e palestino. Mas não é possível descartar repercussões globais.
Ainda não se sabe, por exemplo, qual será a reação de fato da Arábia Saudita ao conflito. Seu líder, o príncipe Mohamad Bin Salman, tem adotado uma postura pragmática em relação à aproximação com Israel, sem colocar maiores barreiras. Mas com um reavivamento da causa palestina, ele pode sofrer pressão da “velha guarda” saudita. Em tese, seu posicionamento tem potencial para afetar o preço do petróleo globalmente e deflagrar uma crise econômica mundial, segundo Fernandes.
Pode haver ainda reflexos na guerra da Ucrânia. Segundo Morgado, o presidente Volodymyr Zelensky foi um dos primeiros líderes mundiais a defender o direito de Israel se defender. Os israelenses estavam neutros na invasão da Rússia sobre a Ucrânia, mas isso pode mudar no atual cenário com o posicionamento de Zelensky e aumentar as tensões entre a Europa e a Rússia (que não quer a destruição de Israel mas tem motivos indiretos para apoiar o Irã, pois ambos estão estreitando uma parceria militar).
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