Reformas liberais disputam espaço com laivos autoritários e espuma ideológica
Jair Bolsonaro fez ontem, com uma semana de atraso, a pajelança para marcar os 300 dias de seu governo. Houve uma parte da comemoração substantiva, representada por um importante e complexo conjunto de mudanças na estrutura do Estado e do Orçamento de todos os entes da Federação, e outra marqueteira, marcada pela bateção de bumbo e um preocupante símbolo do “infinito” a designar os dois zeros do número 300.
A divisão de atos é bastante ilustrativa do que tem sido a dinâmica do governo nesses dez primeiros meses: de um lado, a equipe de Paulo Guedes propondo medidas liberalizantes, que foram prometidas na campanha e que podem, se aprovadas, levar à superação do quadro de profundo desacerto fiscal e levar a um crescimento mais vigoroso, e Bolsonaro e a ala mais ideológica, de outro, promovendo polêmicas estéreis, brigando com Deus e o mundo e, aqui e ali, deixando escapar laivos autoritários.
Guedes fez uma longa explanação sobre as razões intrínsecas ao conjunto de medidas que finalmente chega ao Congresso. A ideia de repactuar a relação entre União, Estados e municípios ao mesmo tempo em que se flexibiliza a aplicação dos recursos e se rediscute a estabilidade do funcionalismo é um todo que faz sentido dentro da ideia liberal de que o Estado deve ser menor para gastar menos consigo mesmo e mais com a sociedade.
Dito isso do todo, será preciso analisar as medidas uma a uma para que se tenha uma ideia mais acabada de sua viabilidade política. Mexer com a estrutura do gasto público e com toda a carreira de servidores no ano de eleições municipais não é um desafio simples.
Nesse aspecto, uma medida já nasce para ser o bode na sala do atual pacote: a que extingue municípios com menos de 5.000 habitantes. Não parece razoável crer que deputados e senadores vão votar pela aniquilação de suas bases eleitorais.
Mas Guedes acerta numa avaliação: há um ano não parecia possível que a reforma da Previdência pudesse ser aprovada com tamanha facilidade. Diante do caos fiscal e da recessão prolongada legada por Dilma Rousseff, a sociedade parece disposta a dar uma chance a uma agenda mais liberalizante, ainda que não entenda todas as implicações sociais e futuras que ela pode ter.
E nesse aspecto Guedes demonstrou ter feito uma curva de aprendizado nesses 300 dias de governo: abriu mão de ideias mais radicais que chegou a lançar como balões de ensaio, como a desvinculação total do Orçamento ou o congelamento do salário mínimo, porque sabe que não teriam viabilidade política nem adesão social.
Liberais não são revolucionários, mas reformistas, disse o ministro. Essa frase e a ênfase que deu à democracia em sua fala funcionaram como uma resposta aos arroubos da outra ala, a ideológica e política, que nas últimas semanas flertou até com a ressurreição do AI-5 e que aos poucos vai se distanciando do que seria a terceira perna do tripé de gestão, a ala militar, que chega aos 300 dias com seis de seus expoentes limados do governo e em crescente grau de desconfiança em relação aos propósitos de Bolsonaro.
O irônico dessa dinâmica peculiar do governo do “capitão” é que o sucesso de Guedes pode fortalecer a ala ideológica e dar a ela a sensação de que, consertada a economia, haverá licença para radicalizar e buscar sua reeleição em novas bases, menos liberais. É uma preocupação que já cala fundo em setores que até aqui olham o governo com crescente desconfiança, mas ainda torcem pela pauta econômica. O Congresso entende esse dilema desde que Paulinho da Força o enunciou em bases bem cruas, no Primeiro de Maio. A votação do pacote dos 300 dias vai mostrar quanto crédito os parlamentares estão a fim de colocar na conta do presidente.
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