A ideologia do miserê e o miserê da ideologia

Rodrigo Augusto Prando. Foto: Divulgação

Na semana que se finda, ganhou visibilidade a fala de um procurador do Ministério Público de Minas Gerais que, ao que tudo indica, participava, junto aos seus colegas, de uma reunião e, nela, teceu comentários reclamando da baixa remuneração, segundo ele, de sua categoria. Suas declarações, divulgadas, possivelmente, por alguém que gravou ou que teve acesso ao áudio, sem seu consentimento, trouxe à baila aqueles momentos que, para as Ciências Sociais, podem ser chamados de revelações sínteses. Sintetizam, assim, nossas posições ideológicas, visões de mundo e noção de pertencimento a determinados grupos sociais. Como não poderia deixar de ser, sua fala foi repudiada, ironizada e combatida. Aqui, todavia, proponho uma visada menos apaixonada sobre o tema.

O Procurador, funcionário público, portanto, afirmou o seguinte: “Como é que o cara vai viver com 24 mil reais? De qualquer forma, já tô [sic] baixando meu padrão de vida bruscamente. Mas, eu vou sobreviver. Eu, infelizmente, não tenho origem humilde. Eu não sou acostumado com tanta limitação. Ou, se nós vamos ficar nesse miserê [sic] aí. Nós vamos virar pedinte, quase?”. Segundo as informações, veiculadas pela imprensa, o seu salário líquido é de cerca de 24 mil reais, mas numa média mensal, em 2019, somando indenizações, gratificações e remunerações temporárias, recebeu cerca de 80 mil reais/mês.

Imediatamente, sem muito esforço, depreende-se que estes valores estão longe do “miserê”, isto é, de uma situação de miséria. À guisa de comparação, em pesquisa da Catho (2019), revelou-se que a média salarial do brasileiro é de 2.340,00 reais e há variações regionais (no Sudeste, 1º no ranking, é de 2.541,90 e no Nordeste, último colocado, de 1.920,35) e disparidades estaduais (no estado de São Paulo, primeiro na posição, é de 2.760,64 e no Rio Grande do Norte, último colocado, de 1.733, 02 – em Minas Gerais, onde mora o procurador, a média salarial é de 2.093,93, ocupando a 10ª posição). Agora, se os dados forem para tratar da pobreza e da extrema pobreza, mais próximos do “miserê” aludido, para o Banco Mundial é pobre quem vive com menos de 3,20 dólares/dia e é extremamente pobre os que vivem com menos de 1,90 dólares/dia. Com ou sem calculadora, fazendo as contas em reais dos salários médios ou em dólares das condições de pobreza e de extrema pobreza, o salário do procurador mineiro está muito, muitíssimo, longe de qualquer experiência de miséria.

A pergunta, aqui, sociologicamente, relevante, seria: o que faz alguém pensar e verbalizar suas angústias desta forma? Angústias? Sim, são. Ele estava, angustiado, ainda que possamos apontar para a ausência da mínima sensibilidade por parte dele em entender o quadro geral da vida dos brasileiros, sejam os trabalhadores ou, pior, os desempregados ou os moradores de rua, os pedintes. Sensibilidade para com o próximo ou consciência social crítica é algo que se aprende na família, na igreja, na universidade ou em outros grupos de referência e de socialização. Talvez, o nosso personagem não tenha tido essa oportunidade ou se teve não aproveitou por sua conduta egoísta. Vai saber. Na sua fala, há o seguinte trecho: “Eu, infelizmente, não tenho origem humilde” e prossegue: “Eu não sou acostumado com tanta limitação”. Ao que parece, ele até demonstra um certo apreço pela resiliência dos humildes, de sua resistência frente às adversidades da vida, no entanto, ele não experienciou dificuldades em sua vida. Não sei a condição econômica de seus pais, mas, ao que parece, foram capazes de proporcionar uma vida bem melhor do que a que ele tem hoje, economicamente falando.

Nossas experiências, individuais e de grupo, como as classes sociais, são fornecedoras de nossa forma de sentir, pensar e agir no mundo. A socialização nos faz compreender a realidade social a partir de valores familiares, religiosos, institucionais, étnicos, regionais. Assim, a ideologia – termo deveras desgastado nos tempos que correm – é “um conjunto de crenças, valores e atitudes culturais que servem de base e, por isso, justificam até certo ponto e tornam legítimos o status quo ou o movimento para muda-lo”, segundo o Dicionário de Sociologia, de Allan G. Johnson. Ademais, para além dessa acepção, a ideologia pode ser entendida com um conjunto de ideias capazes de mascarar a realidade, de distorce-la. É conhecida a frase de Marx e Engels que a ideologia dominante de uma época é a ideologia da classe dominante. E aí, caros leitores, ninguém escapa. Todos, em maior ou menor grau, somos seres sociais imersos em visões ideológicas. O cientista social, por exemplo, deveria ser treinado, metodologicamente, para que suas expressões acadêmicas de pesquisa ou de ciência aplicada sejam preponderantemente objetivas, buscando afastar-se do senso comum e da dimensão ideológica que é inerente à realidade social e as interações entre os indivíduos, grupos e classes sociais.

No Brasil, a sociedade avançou economicamente. Da estrutura social estamental e escravocrata rumamos, celeremente, para uma sociedade de classes e dinâmica. Todavia, nossa temporalidade histórica é desencontrada, isto é, a economia avançou, mas foi incapaz de melhor distribuir a renda e a cidadania, educação, cultura e vida política ainda estão presas ao passado, às formas tradicionais de relações sociais. Conjugamos, a um só tempo, o tradicional, o moderno e pós-moderno em nossa sociedade. A fala do procurador é capaz de nos fornecer um momento revelação-síntese, de uma forte expressão ideológica presente no pensamento e na conduta de parcelas dos grupos sociais. Ao reclamar de seu salário, como funcionário público, numa situação de crise e de contingenciamento de gastos, comparando à situação de miséria, quase um “pedinte”, o procurador revela não só a ideologia, mas, junto dela, a alienação, a insensibilidade no bojo de uma sociedade fraturada e extremamente desigual. O procurador não é produtor e sim produto dessas relações sociais, cujo hiato entre os de cima e os de baixo parece ser intransponível.

Por mais condenada que tenha sido fala do Procurador, ela permite, ainda que brevemente, esta reflexão sobre a “ideologia do miserê” – cuja visão de miséria é ideologicamente distorcida – e, ainda, da miséria teórica e política que o conceito de ideologia vem sendo submetido, hodiernamente.

*Rodrigo Augusto Prando é Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas. Graduado, Bacharel e Licenciado, em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp.

Confira matéria do site Estadão.

Be the first to comment on "A ideologia do miserê e o miserê da ideologia"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*