Neste final de semana ocorrerá o encontro anual do G20, em Osaka, no Japão, como os leitores já devem saber. O evento reúne as lideranças das vinte maiores economias mundiais, mais representantes das principais organizações internacionais e também líderes convidados de países e de grupos nacionais; por exemplo, Abdel Fattah el-Sisi, presidente do Egito, representará a União Africana, enquanto Mark Rutte, premiê dos Países Baixos, representa sua nação. E, claro, Jair Bolsonaro representará o Brasil.
Algo já mencionado em colunas anteriores é que esses encontros e cúpulas muitas vezes são, por si, pouco produtivos. Fotos posadas, sorrisos forçados, declarações conjuntas amplas e com pouco poder decisório costumam ser a regra, com poucas exceções. Para uma coisa, entretanto, esse tipo de evento é importantíssimo e bastante produtivo: os encontros atrás de portas fechadas, seja bilaterais seja envolvendo mais países. Possibilidades concretas de contatos entre líderes, negociações e soluções.
Os dois gigantes no ringue
São dezenas de lideranças, cada uma com uma agenda própria. Ou seja, dificilmente todas essas perspectivas e interesses vão convergir em algo uniforme, mas, entre um punhado de atores, muito pode ser feito ou, ao menos, começar. Somente Trump vai realizar nove reuniões. Além disso, são dezenas de lideranças ao mesmo tempo e no mesmo lugar, algo expediente e incomum; mesmo a cúpula do G20 se encontrará apenas pela 14ª vez. Temas de interesse global, ou com múltiplos interesses, ficam no cerne do debate.
Por isso que, se é difícil prever com extrema precisão os resultados do G20 daqui alguns dias, algumas pautas são certezas. A que dominará o encontro é a guerra comercial entre China e EUA, afinal, o G20 é, em essência, um fórum econômico. Todas as economias estão de olho em um tema que pode trazer ganhos ou perdas para cada um deles. Os mais otimistas pensam até no anúncio de um acordo entre entre os dois gigantes; lembrando que foi no G20 de Buenos Aires que Trump e Xi Jinping iniciaram a atual negociação.
No fundo, a guerra comercial é uma batalha entre os dois campeões atuais de duas bandeiras diferentes. Em um córner, o multilateralismo, defendido pela China de shorts vermelho, buscando uma reforma da Organização Mundial do Comércio, maior abertura de mercados e poder expandir ainda mais seus investimentos em infraestrutura pelo mundo. Do outro lado do ringue, o shorts tricolor dos EUA e sua defesa do unilateralismo e sua vertente econômica, o protecionismo em nome de diversos tipos de interesses nacionais.
E, novamente, todos os países estão interessados no que sairá disso, pois representa onde esses países terão mais ou menos mercado. Por exemplo, um acordo entre Pequim e Washington que inclua a compra de soja dos EUA não será boa notícia para o Brasil; a ausência dessa pauta, ou de um acordo que seja, já é uma notícia mais interessante para o agronegócio brasileiro. Claro, esse é o exemplo mais óbvio e mais próximo da realidade da coluna. Pode-se falar, então, de tecnologia de comunicação e os interesses europeus.
Diversos países europeus possivelmente aceitariam investimentos chineses em suas redes de telecomunicação, incluindo nesse pacote o novo 5G e a gigantesca empresa Huawei. Por outro lado, isso desagrada totalmente os EUA, que veem nisso um risco à sua segurança de informação. Ao mesmo tempo, os EUA, hoje, não conseguem fornecer uma alternativa com a mesma relação custo-benefício. E ainda existe o tema dos protestos em Hong Kong, assunto que a China já advertiu que não debaterá no G20; resta saber se Trump concorda.
Pato manco, ausência e anfitrião
Outro país que poderia abordar o tema Hong Kong seria o Reino Unido, antiga potência imperial da cidade. Dificilmente isso ocorrerá, já que é uma briga que não traria frutos aos londrinos. O governo estará focado no Brexit e em vender a imagem de que, terminado o divórcio da União Europeia, o Reino Unido estará pronto para decolar e assinar uma miríade de parcerias. Por outro lado, Theresa May chega em Osaka como um “pato manco”, com prazo de validade no cargo de primeira-ministra.
Isso diminui sua autoridade e sua capacidade de barganha para acordos assinados, embora não impeça o papel de ser uma boa vendedora de seu país. E, em um movimento arriscado, justamente por ser um “pato manco”, ela poderia tocar no assunto Hong Kong, caso ache conveniente, com poucas repercussões futuras em um governo que em breve se encerrará. Outro país que estará diminuído em sua representação é o México. López Obrador é o único líder de governo ausente, com o país representado por seu chanceler.
Oficialmente, López Obrador não foi ao G20 para não desviar sua atenção de temas mexicanos e manter sua postura de evitar gastos e viagens; extraoficialmente, sua ausência é para evitar que seu país seja arrastado para a guerra comercial entre China e EUA. O vizinho do norte é seu maior parceiro e aliado político. O gigante asiático é o maior investidor no México. Para evitar dissabores com quaisquer um dos lados, Obrador ficou em casa. Ao contrário do México, um país com peso interessante no encontro será o anfitrião.
O Japão, como presidente rotativo do G20, propôs alguns temas para a agenda da cúpula. Envelhecimento e encolhimento populacional; fluxo de dados e inteligência artificial; transparência governamental; e, finalmente, pautas ambientais. Nesse caso, o Japão pode ser alvo de uma retórica pesada, caso insista em se vender como um país exemplar no meio-ambiente. O Japão ainda depende da queima de carvão para geração de energia e, apesar de supostamente ser um reciclador de plástico, existe uma “pegadinha” aí.
A maior parte do plástico que o Japão diz “reutilizar” não é reaproveitado, mas incinerado. Ou seja, elimina-se o plástico com o despejar de poluição na atmosfera. O problema deixa de ocupar o restrito solo japonês e passa a ocupar a atmosfera global. Além disso, no último ano, o Japão saiu da Comissão Internacional das Baleias e voltou à caça comercial dos mamíferos em sua zona econômica exclusiva, contrariando limites impostos que visavam a preservação da população de baleias. Um dos principais proponentes é o Brasil.
Um papel mais produtivo que o Japão pode eventualmente desempenhar é o de mediar os interessados na crise do Golfo Pérsico, a guerra fria médio-oriental entre sauditas e iranianos. Mohammad bin Salman, herdeiro do trono saudita, estará presente; o Irã não faz parte do G20. A Europa e a China desejam salvar de alguma maneira o acordo nuclear que foi abandonado pelos EUA. O governo de Washington deseja pressionar ainda mais o Irã, o que inclui pressionar seus aliados e os compradores de seu petróleo.
Oriente Médio, Índia e constrangimento
Pensando nos presentes do G20, estarão sauditas e EUA de um lado da mesa, Europa, chineses e russos do outro, com Japão e Índia no meio. Enquanto a Turquia escuta tudo com interesse. Será uma rara oportunidade de colocar grande parte dos envolvidos em contato direto, embora a ausência iraniana e a profundidade dos interesses envolvidos impeça alguma solução duradoura. Talvez um compromisso de meio termo. Por exemplo, a extensão das isenções para que a Índia continue a comprar o óleo iraniano sem sanções.
Outra pauta que envolve a Índia e os EUA é o fato de que o governo de Washington revogou o status comercial favorável dos indianos. Com isso, uma mini guerra comercial começou, com tarifas de ambos os lados. Além disso, a Índia recentemente anunciou a compra bilionária de sistemas antiaéreos modernos russos, o S400. O mesmo sistema comprado pela Turquia e que é cerne de tensões entre Ancara e Washington, embora por razões diversas.
O governo dos EUA pressiona a Índia para cancelar o contrato que vale mais de US$ 5 bilhões por alegar que ele viola as sanções impostas aos russos após a anexação da Crimeia; caso a Índia não cancele a compra, Washington poderia impor sanções aos indianos. Ao mesmo tempo, os EUA oferece seus próprios sistemas de mísseis junto de algumas promessas políticas, como a manutenção do apoio ao pleito indiano de uma reforma do Conselho de Segurança da ONU.
O caso turco, por outro lado, é mais complicado. A justificativa é a mesma, sanções pela anexação da Crimeia em 2014. O interesse, entretanto, possui ligação com espionagem e o comprometimento de segredos tecnológicos dos EUA. A Turquia é membro da OTAN e, como tal, participou do consórcio de desenvolvimento do novo caça dos EUA, o F-35. O fornecimento das aeronaves, entretanto, está suspenso. O temor de Washington é que a Turquia opere ao mesmo tempo o caça F-35 e o sistema S-400.
A Turquia poderia, então, em seus exercícios militares, desenvolver ou descobrir as principais vulnerabilidades do F-35 perante os mísseis russos. Pensando no adestramento das próprias forças armadas. Essas informações, entretanto, poderiam, de alguma forma, cair em ouvidos russos. Espionagem, compra de informações, acompanhamento de tais exercícios por militares russos. Ainda, os russos poderiam ter acesso e inspecionar os segredos que os novos aviões guardam em suas entranhas.
Tudo isso poderá ser discutido informalmente entre os presentes, que incluem, claro, o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, que realizará encontro bilateral com Donald Trump. A reunião causará o deleite da imprensa doméstica dos EUA e a discussão sobre eventual intervenção russa nas eleições do país. A península coreana é outro tema importante que deve pintar, com a presença de Moon Jae-in da Coreia do Sul e a recente visita de Xi ao norte; após Osaka, Trump visitará Seul.
Todos os líderes presentes no G20 deverão passar por um leve constrangimento: o de realizar reuniões bilaterais e posar para fotos com o príncipe saudita herdeiro do trono. Acusado de ordenar a execução, com métodos cruéis, de um jornalista crítico do regime, além de reprimir opositores e possíveis rivais ao trono, Mohammad bin Salman é também o anfitrião da próxima cúpula do G20, que ocorrerá em novembro de 2020, em Riade. O protocolo impõe o constrangimento de sorrisos e apertos de mão.
Brasil ofuscado
O encontro está presente na agenda de Bolsonaro, entretanto, repete-se, é um protocolo reunir-se com o próximo anfitrião. Não é algo que possa ser considerado como uma crítica, tampouco “aceno” aos árabes. Ainda assim, infelizmente, o governo brasileiro chega com desconfiança em Osaka, para o primeiro G20 de Jair Bolsonaro. A viagem já começou com repercussão negativa, devido ao episódio envolvendo 39 quilos de cocaína no avião reserva da presidência, transportada por um militar que foi pego pelas autoridades espanholas.
Nota-se as palavras usadas: repercussão negativa. Querendo ou não, partidário ou não do presidente, as manchetes nos jornais foram essas. Soma-se isso ao trocar de farpas entre o governo brasileiro e o alemão. Angela Merkel afirmou que vê a situação do Brasil como “dramática” em relação ao meio ambiente e aos direitos humanos sob Bolsonaro; o presidente respondeu que alemães “têm a aprender muito conosco” sobre meio ambiente e, assim como seu chefe do GSI, Augusto Heleno, usou de tom ufanista para responder.
Heleno mandou a conservadora Merkel “procurar sua turma”. Bolsonaro disse que “o presidente que está aqui não é como alguns anteriores que vieram para serem advertidos por outros países”. Independente das substâncias das declarações, não é o melhor dos climas para um encontro. Não é possível emular a postura de Donald Trump quando não se possui as cartas que ele tem; a maior economia do mundo e as maiores forças armadas do mundo. Já Ernesto Araújo não está presente, ele está em Bruxelas, negociando o acordo com a UE.
Outro tema central ao Brasil e presente no G20 será o contencioso agrícola. Por décadas o Brasil denuncia subsídios agrícolas, e o governo já se comprometeu em apresentar um “novo Brasil” no G20, receptivo aos investimentos estrangeiros, porém, isso deve ser acompanhado de um modelo mais justo na competição agrícola. Essa bandeira, partilhada com a China, deve ser tema do encontro de Bolsonaro com Xi, ainda na sexta-feira. Ainda assim, o efeito “novidade” de Bolsonaro deve ser eclipsado pela guerra comercial.
Dificilmente o Brasil será uma prioridade aos chineses. O que resulta no ponto principal dessa visão de pouca valorização da presença brasileira neste G20. Ainda na sexta-feira será realizada uma “Reunião informal com os líderes do BRICS”; assim grafado na agenda do presidente. Durante o G20, entretanto, será realizada a segunda reunião trilateral entre China, Índia e Rússia, com agenda muito mais profunda. No que está sendo chamado de “formato RIC”, serão debatidos temas que habitualmente seriam pertinentes ao BRICS.
Países com quem o Brasil possui agendas em comum estão se distanciando. O pleito agrícola brasileiro é partilhado com chineses e indianos. Foi com a Índia que o Itamaraty trabalhou o desenvolvimento dos remédios genéricos e busca reformar a ONU. Energia solar e renovável, investimentos chineses, pautas de gás e petróleo com a Rússia, tudo isso aproxima os interesses brasileiros do BRICS. Interesses, não ideologia ou um suposto complô comunista; um entusiasta defensor dos BRICS é Modi, um conservador.
Inclusive, Bolsonaro realizará um encontro bilateral com Narendra Modi. Ao verem o Brasil adotando retóricas ideológicas similares ao do governo dos EUA, os três países progressivamente se distanciam, ao ponto da reunião dos BRICS no G20 ter menos impacto e menos poder decisório do que a de apenas três integrantes; a África do Sul se isola não por questões ideológicas, mas por uma profunda crise política e econômica, que a tornam um parceiro menos interessante. Longe de ser o caso brasileiro.
A cúpula RIC deveria causar estranhamento em qualquer um que pense nos interesses brasileiros. Enquanto o novo governo gasta energia em determinar que os diplomatas vetem a palavra “gênero” em documentos, possibilidades econômicas e comerciais ficam de lado. Tais diplomatas deveriam ser focados pelo governo na continuidade de boas relações com parceiros internacionais. Resta ver qual será o balanço final do G20, para o mundo e para o Brasil. Esperemos que supere os solavancos do começo.
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