Enquanto o Brasil perpetua, como uma espécie de dogma, a ideia de que “fora da universidade não há salvação”, o resto do mundo tem obtido sucesso ao investir na direção oposta: educação técnica no ensino médio.
Além de outros episódios, um comentário do ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez, colombiano que teve breve passagem pelo Ministério da Educação (MEC) neste ano, evidencia esse dilema. Sua afirmação de que “universidade para todos” não existe causou tamanha repercussão negativa que, pode-se dizer, influenciou até mesmo sua exoneração do posto.
Em outros países, por outro lado, a regra é outra. Nos últimos anos, a Finlândia, líder nos rankings que medem o nível educacional, o Reino Unido, França, Alemanha e a Coreia do Sul têm tido maior estima pela educação técnica e preferem empenhar seus esforços nesse segmento em detrimento do ensino superior formal.
A formação técnica de nível médio gera, sobretudo, rápida inserção ou requalificação no mercado de trabalho, além de uma média de 18% de acréscimo na renda dos profissionais.
Segundo o último relatório da OCDE Education at a Glance, ao menos 48% dos estudantes de países da União Europeia se formam no ensino profissional de nível médio. O número chega a 63% no Reino Unido. E o Brasil vai na contramão, com apenas 8% dos egressos do ciclo básico educacional com formação técnica. O mercado de trabalho já sentiu o impacto desse número, como revela a pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira de 2014, do Ibope. No país, 61% das empresas têm dificuldades para preencher vagas da área técnica. O gráfico abaixo mostra a discrepância do país em relação ao referencial mundial:
O cenário também desagrada a atual gestão do governo e a pasta de Educação, que elencaram o ensino técnico como prioridade do país, mas decidiram “mudar o rumo” e não seguir exemplos anteriores, como o Pronatec. Para isso, afirmam especialistas da área, é preciso olhar para a comunidade internacional, reproduzir bons exemplos que caibam em nossa realidade, entender como o mercado de trabalho funciona e, especialmente, terminar com o “preconceito” contra o ensino técnico.
Exemplo “desastroso”
Criado para estimular e expandir a oferta de ensino técnico, e “vitrine” de campanha da ex-presidente Dilma Rousseff, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) concentrou elevados gastos e não gerou resultados efetivos. Segundo relatórios realizados por consultores do Congresso Nacional e do Ministério da Fazenda, a falta de planejamento e análise de mercado levou a um grande desperdício de dinheiro.
A própria gestão Dilma, mais tarde, reduziu pela metade o número de vagas prometidas em campanha. Em 2013, foram R$ 2,8 bilhões investidos no programa; dois anos depois, o valor subiu para R$ 3,6 bi. A queda, em 2018, é grande: um repasse para o programa de apenas R$ 144 mil. O número de matrículas também reduziu de 1,7 milhão, em 2013, para somente 93 mil, neste ano. “O Pronatec não contribuiu para reinserir os trabalhadores no mercado de trabalho formal […] não foi efetivo na medida que não elevou as chances de reinserção ou ampliou o rendimento salarial”, avaliou a Fazenda.
Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV-SP, endereça outro “defeito de raiz” no programa. “Ele deu um grande impulso ao ensino técnico, mas o problema é que tentou englobar tudo, cursos mais variados para formação de trabalhadores em áreas em que não havia demanda”, afirma.
Essa falta de foco nas políticas públicas, defende ela, acaba gerando ‘desperdícios’. “Acho que ele precisaria ser aperfeiçoado e se restringir a alguns segmentos. Lembro daqueles cursos técnicos que foram criados de madrugada, porque vinha dinheiro federal para isso. Eles não tinham demanda e nem havia equipamentos nas escolas”, critica Claudia.
Estudantes não seguem a formação técnica recebida
Além dos problemas já citados, outras causas não permitem que o país avance no segmento. Um deles é o abandono da carreira por muitos estudantes após frequentar um curso técnico. Estudo divulgado no início deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que apenas 25% dos estudantes formados em ensino profissional acabam trabalhando na área. Mas o que acontece com eles? Para onde vão? Muitos, para a universidade.
Segundo Claudia, isso se dá, principalmente, porque grande parte opta pela educação técnica com intenção secundária, e o torna uma espécie de ‘cursinho pré-vestibular’. “Um aluno que não tem como pagar uma escola particular, e quer fazer uma boa escola pública, sabe que no ensino técnico vai ter uma boa oferta”, identifica ela. “Muita gente procura pelas razões erradas. No ponto de vista pessoal, ele está fazendo o seu cálculo de acordo com a oferta que tem. Mas no ponto de vista de política pública, é um grave erro”.
Ela cita um bom exemplo para entender a questão: “Conheci uma moça fez escola técnica de mecatrônica, que é altamente especializada, demanda equipamentos importantes, pois ela sabia que queria prestar ciências sociais na USP”, conta.
Nada de errado com a escolha pessoal da estudante, diz Claudia, mas tudo errado em selecionar para o ensino técnico estudantes que, na verdade, não utilizarão os aprendizados. É um ‘investimento perdido’. “Se ela fosse cursar engenharia mecatrônica depois, não teria tanto problema, mas a intenção não é essa”.
Preconceito
Por trás do desprezo ao ensino profissional há ainda o preconceito com o próprio ‘mundo do trabalho’. Serviços de natureza técnica, muitas vezes, são vistos como inferiores, lembra João Batista Araujo e Oliveira, doutor referência nacional em educação.
“Ouço gente dizendo ‘você vai educar para a vida ou para o trabalho?’. O trabalho é visto como algo menor, mas não existe forma para a vida e esquecer que uma parte importante é a tua conexão com ele”, defende ela. “Quem não trabalha depende de caridade alheia, e nada menos emancipatório do que depender de caridade dos outros. A gente tem que perder esse preconceito”.
João explica que 70% da economia do mundo é serviço e afirma que, se todos tivessem diploma universitário, o mercado de trabalho não seria capaz de abarcar todo mundo. “Ainda que o Brasil conseguisse o milagre de que todo brasileiro fosse para a universidade, possivelmente não alcançaríamos o milagre de toda a população com emprego de nível superior”, diz Araujo. “Por isso, fora da universidade é que há salvação”.
“O que pode funcionar aqui é a escola técnica com a ‘cultura do trabalho’. Nos bons exemplos, o corpo docente é formado por pessoas do segmento, que têm formação voltada à área técnica”, propõe ele.
Percepção positiva
Apesar dos ‘embaraços’, resta ainda uma percepção positiva do ensino técnico por parte da população brasileira. O Ibope 2014 revelou que 90% das pessoas acreditam que quem faz curso de Educação Profissional e Tecnológica tem mais oportunidades; 93% concordam que o governo poderia oferecer mais cursos desse segmento.
Em sua última atualização, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) mostra que, mesmo com a redução de investimentos, o percentual de estudantes do ensino médio que frequentaram educação técnica aumentou. Em 2016, o índice era de 5,6%, contra 6,2%, em 2018.
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