Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF), por oito votos a três, equiparou a “homotransfobia” ao conceito jurídico de racismo, diante da omissão – reconhecida por 10 votos a um – do Congresso Nacional em legislar sobre a proteção à população LGBTI+.
A decisão, criticada como ativismo jurídico sem precedentes, mas saudada como avanço por alguns, na prática incluiu os critérios de “orientação sexual e identidade de gênero” aos dispositivos da Lei 7.716/1989, que já pune “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. A decisão vale até que o Congresso edite uma lei própria.
O tema chegou a ser discutido por 13 anos no Parlamento, e continua sendo em novos projetos de lei, sem consenso, mas levanta a oposição, principalmente, de grupos religiosos, que sempre manifestaram a preocupação com a pregação e os ensinamentos sobre a moralidade sexual, já que o artigo 20 da lei pune quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” – agora, em razão da decisão do STF, também de orientação sexual e identidade de gênero.
Isso levou o Supremo a votar, na mesma decisão, uma ampla proteção à liberdade religiosa – embora nada tenha sido dito sobre a liberdade de expressão em geral, o que levanta dúvidas, por exemplo, sobre quem se opuser ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou à prática de relações homoafetivas sem recorrer a argumentos religiosos, algo incomum no Brasil, mas corriqueiro no debate, inclusive acadêmico, em países da Europa e da América do Norte.
No entanto, a Lei 7.716/1989 pune diversas outras condutas mais específicas, que configuram crime de preconceito ou discriminação. O artigo 5º, por exemplo, pune quem “recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador”, o que traz para o Brasil a sombra do caso do confeiteiro Jack Phillips, que chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos em 2017.
Phillips, um confeiteiro cristão que considera seu trabalho arte, negou-se a fazer um bolo de casamento para celebrar a união entre dois homens e foi processado pelo estado do Colorado. Acionou a Justiça, argumentando que tinha liberdade de expressão (nos Estados Unidos, a proteção é mais ampla que no Brasil e inclui também a “expressão não verbal”). Acabou ganhando o processo, na Suprema Corte, mas por questões laterais – e voltou a ser processado quando se recusou a fazer um bolo para celebrar a mudança de gênero de uma mulher transgênero (homem biológico).
O debate sobre a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, a objeção de consciência e o direito a não ser discriminado está longe de acabar nos Estados Unidos e, agora, com a decisão do STF, começa a se formar no Brasil. Para tentar entender algumas das implicações concretas da decisão do STF, a Gazeta do Povo fez três perguntas, a respeito de três artigos da Lei 7.716/1989, para um advogado, um procurador e um juiz: Gustavo Badaró, Rodrigo Chemin e Otávio de Almeida Toledo.
Gustavo Badaró é advogado e professor titular de processo penal na Faculdade de Direito de Direito da USP. Rodrigo Chemin é procurador de justiça do Ministério Público do Paraná, doutor em Direito do Estado, e professor de processo penal da Universidade Positivo. Otávio de Almeida Toledo é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).
Confira os artigos da lei, as perguntas e as respostas abaixo:
Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador. Pena: reclusão de um a três anos.
Pergunta: um artista cristão, ou comerciante cristão cujos produtos envolvam elaboração artística, se recusar a vender seu trabalho para celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou celebrações de mudança de gênero viola o artigo 5º?
Gustavo Badaró, advogado: Não, a interpretação tem que ser mais estrita. O tipo penal exige que haja recusa de acesso ao estabelecimento comercial ou o impedimento de acesso ao estabelecimento comercial. E que tal recusa ou impedimento de acesso tenha como consequência a negativa em servir, atender ou receber cliente ou comprador. Assim, por exemplo, um restaurante que se recuse a servir um jantar a um casal homoafetivo. Ou uma loja que se recuse a vender um sapato para uma transgênero, estará caracterizado o crime. Evidente que será necessário provar que tal recurso se deu por tal motivo. O que nem sempre é uma prova fácil. Também estará caracterizado o crime se uma empresa de festas de casamento, ou um salão de festas, recusar os seus serviços para a celebração de um casamento, porque se trata de um casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Rodrigo Chemin, procurador: A questão não é tão simples e enseja diversos olhares à luz do direito penal. Para que exista um crime é preciso identificar uma conduta humana, típica (isto é, que preencha as elementares de um artigo de lei), que ela seja antijurídica e seja culpável. Faltou um destes elementos, não há crime. No caso, os verbos do tipo são “recusar” ou “impedir” e são vinculados ao “acesso a estabelecimento” e não propriamente à prestação de serviços. Ou seja: a conduta, nesse caso, parece ser atípica por não preencher as elementares do tipo. Haveria o crime se o comerciante dissesse algo como: “no meu estabelecimento não entra o público LGBTI+” e, assim, “recusasse” ou “impedisse” o “acesso ao estabelecimento”. De resto, se ele invocasse questão de cunho religioso, estaríamos próximos do conhecido precedente norte-americano [caso Jack Phillips]. No âmbito do direito brasileiro, essa situação poderia representar excludente, não mais de tipicidade, mas de ilicitude, na ponderação de bens jurídicos igualmente protegidos (liberdade de religião versus dignidade protetiva de práticas discriminatórias). No limite, a questão também poderia ser resolvida como excludente de culpabilidade, por erro de proibição, por oposição de consciência jurídica reta exculpante, ou seja o sujeito não tem a dimensão precisa de que o que faz é ilícito – acredita ser correta a recusa, embasado numa crença religiosa, o que lhe é assegurado pela Constituição.
Otávio Toledo, desembargador: Sim, da mesma forma que ocorreria se o motivo da negativa fosse relacionado à raça dos clientes ou contratantes. Se o serviço é oferecido ao público, não pode o fornecedor recusar-se a prestá-lo em razão de discriminação pessoal de qualquer espécie. O próprio Código de Defesa do Consumidor já veda qualquer negativa de serviço ao considerar práticas abusivas “recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes” e, ainda, “recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais” (Art. 39, incisos II e IX, da Lei 8.078 de 1990). Nesse ponto, é relevante esclarecer que artistas, ou seja, detentores de direitos autorais sobre suas obras e também de direitos sobre a própria imagem, estes igualmente constitucionalizados e inalienáveis, não estão enquadrados nesse contexto, pois não prestam serviços genericamente oferecidos ao público e não podem ser obrigados a contratar com quem não queiram. Em outras palavras, ainda que não sejam obrigados a ceder suas obras a quem se disponha a contratá-los e que possam recusar sem qualquer fundamentação, parece-me que, falando sempre em tese, caso declarem motivo discriminatório, poderão ser considerados incursos no tipo penal em exame [culpados]. Não me parece que o ordenamento jurídico brasileiro tenha espaço para comportar ressalvas de convicção pessoal daquele que oferece serviços ao público em geral em relação aos seus clientes, seja por questão de raça, orientação sexual ou de qualquer outra espécie, de modo que – sempre falando em tese – seria inadmissível no Brasil uma decisão que legitimasse comportamento como aquele do confeiteiro americano [caso Jack Phillips] que se recusou a confeccionar um bolo de casamento para um casal homossexual por entender que violaria sua própria moral cristã.
Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social. Pena: reclusão de dois a quatro anos.
Pergunta: um padre, pastor ou igreja que se recuse a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo viola o artigo 14?
Gustavo Badaró, advogado: Acredito que não, a depender das regras de cada igreja. Por exemplo, na Igreja Católica os padres não podem se casar. Isso não é crime. É um dogma da igreja, do celibato. Por outro lado, assim com o Código Civil prevê certos requisitos para o casamento válido, o direito canônico também o faz. Logo, é razoável que uma igreja preveja em suas regras que pessoas do mesmo sexo nela não possam se casar. Em uma certa medida, o tabelião também está sujeito a essa regra. O Código Civil brasileiro não permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em tese, ele não comete crime, mas estará no estrito cumprimento do dever legal, ao se recusar a celebrar esse casamento, até que a lei brasileira, expressamente, admita o casamento entre pessoas do mesmo sexo [Embora o STF tenha decidido pela possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo e o CNJ, a regulamentado]. Diferente é a questão no que diz respeito a “Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, […] convivência familiar e social”. Isso porque, aqui não se trata de regras legais, mas sim de padrões sociais de convivência e de sociabilidade. Nesse caso, a lei – interpretada pelo STF – pode ser aplicada e, por exemplo, um pai que impeça a convivência familiar de seus filhos com um outro filho, porque este é homossexual, poderá ter a sua conduta considerada crime. Da mesma forma que, por racismo (no conceito tradicional, embora infeliz e errôneo biologicamente) cometerá o mesmo crime se impedir que alguém frequente sua casa por ser ariano, negro ou de qualquer outra “raça”. Ou um clube não aceite um associado, exclusivamente por uma questão racial ou, agora, de homofobia ou transfobia.
Rodrigo Chemin, procurador: Nesse caso a conduta também parece ser típica, porém não antijurídica e, assim, lícita, na ponderação dos bens jurídicos tutelados. Se a religião prega que casamento é apenas entre pessoas de sexos diferentes, o direito à liberdade de religião não pode ser violado pelo direito de casamento homoafetivo. [É um caso de] ponderação de bens jurídicos tutelados como excludente de ilicitude (exercício regular de um direito assegurado constitucionalmente). No limite, como dito na resposta à primeira pergunta, também uma exculpante, já que há ampla polêmica sobre o tema e nem mesmo o Judiciário tem posição unânime no assunto.
Otávio Toledo, desembargador: Entendo que não viola a norma acima mencionada, haja vista a negativa de celebração de casamento não reconhecido pelo sistema de crenças da autoridade religiosa está claramente incluída na ressalva realizada pela Suprema Corte para a proteção da liberdade religiosa, que também é valor constitucionalmente protegido.
Art. 6º Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau. Pena: reclusão de três a cinco anos.
Pergunta: um seminário católico ou faculdade de teologia que se recusar a receber a matrícula ou ingresso de alunos homossexuais ou transgênero viola o artigo 6º?
Gustavo Badaró, advogado: Em tese, sim. Caso se recuse a receber um aluno por homofobia ou transfobia. Todavia, acho que nesse ponto a questão é mais sensível. Isso porque as escolas confessionais têm claramente um propósito relacionado à difusão do conhecimento, mas com a prevalência dos seus valores. Ninguém é obrigado a frequentar uma escola confessional. Mas, se quiser fazê-lo, deverá se adequar às regras que são de sua essência. Acho que, neste ponto, haveria um conflito de valores entre o direito de não discriminação racial (por conceito de raça social), de um lado, e a liberdade religiosa, do outro. Particularmente, acho que, neste caso, a liberdade religiosa deve prevalecer, até para preservar os direitos dos alunos e pessoas que professam aquela religião e querem estudar ou que seus filhos estudem em tais escolas.
Rodrigo Chemin, procurador: Neste caso, a conduta parece ser criminosa, já que a recusa é quanto à inscrição ou ingresso no estabelecimento de ensino e, aqui, a invocação da liberdade de religião não pode ser invocada.
Otávio Toledo, desembargador: Esse problema mescla as teses da primeira e da segunda questões. A negativa de prestação de serviços por discriminação racial ou equiparada é vedada, inclusive e principalmente aqueles ligados à educação, conduta considerada delito mais grave (pena mínima deste é o triplo da fixada à conduta descrita no artigo 5º). No entanto, em se tratando de organização de cunho religioso, passa a ser necessário analisar se há compatibilidade com o exercício da liberdade religiosa, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, novamente falando em tese, não há resposta ampla ao questionamento. Caso se trate de um seminário ou grupo de natureza religiosa, me parece que pode ser aceita a negativa de matrícula de pessoa de orientação sexual incompatível com o sistema de crenças lá professado. Entretanto, uma faculdade de teologia, apenas pela natureza da matéria estudada, pode não ter a mesma prerrogativa.
Be the first to comment on "STF criminalizou homofobia. E agora? Advogado, procurador e juiz respondem"