A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou no dia 11 de março que o mundo ultrapassou 450 milhões de casos de COVID-19 e seis milhões de mortes. O anúncio vem no marco de dois anos desde que a organização declarou a doença uma pandemia. Na época da (já atrasada) decisão de declarar a doença uma pandemia, já haviam sido registrados 160 mil casos e oito mil mortos. Há imprecisões nessas estimativas que levam ao ceticismo de quem pensa que as vítimas da doença teriam morrido de outros problemas de saúde que foram fatores causais mais importantes — o que tornaria o número de mortos uma superestimativa —, e ao ceticismo de quem acha que a quantidade limitada de testes leva a uma subestimativa.
Desde o começo, uma forma indireta, porém objetiva de estimar o impacto da pandemia foi comparar a taxa de mortalidade desde a ascensão do vírus com a taxa típica dos anos anteriores — é o método do excesso de mortalidade. Foi com este método que foi feita uma nova estimativa de números de vítimas da pandemia publicada na revista médica The Lancet por um grupo de quase 100 pesquisadores. A conclusão é pela subestimativa nos números apresentados pela OMS: a pandemia matou 18 milhões de pessoas, número três vezes maior que o oficial.
Métodos
Os quase 100 cientistas utilizaram as estimativas de mortalidade antes e durante a pandemia de 191 países e territórios e em 252 áreas internas de países (como estados e províncias). O período estudado é de 1º de janeiro de 2020 a 31 de dezembro de 2021. Os dados de mortalidade anteriores à pandemia compreendem o período de no máximo 11 anos. O excesso de mortalidade por COVID-19 é dado pela mortalidade durante a pandemia subtraída a mortalidade esperada de acordo com a normalidade dos anos anteriores.
Para assegurar que a mortalidade foi estimada de forma precisa, os pesquisadores tiveram o cuidado de remover dados de regiões em que houve anomalias como ondas de calor, além de dados que levaram muito tempo para serem registrados. As ondas de calor em questão aconteceram durante a pandemia, portanto sua remoção dos dados evita que seja superestimado o impacto da pandemia. Seis modelos diferentes foram usados para estimar o excesso de mortalidade, e o número escolhido como mais preciso resulta de uma mescla deles.
Para tapar o buraco de lugares sem dados disponíveis dos períodos anteriores, os autores fizeram um modelo estatístico que prevê o que seria típico desses lugares com base nos outros em que a informação está disponível.
O método do excesso de mortalidade é um método de prospecção bruta. Mais estudos são necessários para saber quais mortes resultaram diretamente do vírus SARS-CoV-2 e quais resultaram, por exemplo, de consequências econômicas e de saúde pública das políticas de fechamento, confinamento e lockdown.
Resultados
A conclusão é que nesse período de dois anos 18,2 milhões de pessoas morreram por causa da pandemia de COVID-19 no mundo. Na “margem de erro”, o número pode variar entre 17,1 e 19,6 milhões. As regiões com os maiores números de mortos extras são o Sul da Ásia, Norte da África, Oriente Médio e Leste da Europa.
Em números absolutos, o topo da lista do excesso de mortalidade são Índia, com quatro milhões; Estados Unidos, com um milhão e 130 mil; Rússia, com um milhão e 70 mil; México, com quase 800 mil; Brasil, com 792 mil; Indonésia (736 mil) e Paquistão (664 mil). Na taxa de excesso de mortes por 100 mil habitantes, o Brasil e os Estados Unidos são estatisticamente indistinguíveis (em torno de 180 a 190 por 100 mil) e no topo da lista do excesso de mortalidade relativa ao tamanho da população estão a América Latina na região dos Andes, a Europa oriental e central.
A estimativa não está sozinha. A revista The Economist usou um método próprio com um algoritmo de inteligência artificial para estimar o excesso de mortalidade. Também deu o resultado de 18 milhões de mortos extras no mundo (com “margem de erro” mais ampla, de 10,9 a 24,4 milhões). A estimativa da revista, que faz um jornalismo padrão, é interessante por não ser acadêmica e não ter sido submetida à revisão por pares, o que é um incentivo para mais veículos de imprensa investirem em análises independentes do tipo. É uma iniciativa mais trabalhosa que a “checagem de fatos”, mas com produtos mais valiosos e menos politicamente polarizantes.
Os autores do estudo comentam que “na comunidade médica global não há uma concordância universal a respeito de quando a morte de alguém infectado com o SARS-CoV-2 pode ser registrada como uma morte causada pela COVID-19”, daí a importância de estimativas como essa. Sobre os outros motivos para o excesso de mortes além do vírus, eles comentam que a mortalidade devido à redução no acesso a serviços de saúde deve vir mais nos próximos anos do que imediatamente no período estudado.
Além disso, “há evidências convincentes de que as taxas de ansiedade e depressão aumentaram no período pandêmico, (…) no entanto, até agora, as evidências de uma mortalidade por suicídio aumentada são escassas, exceto no Japão”.
Aumentaram as mortes por overdose com drogas opioides nos Estados Unidos, o que contribuiu para o excesso observado. Fortalecendo a hipótese de maior participação da covid nessas mortes, houve uma queda das mortes por gripe e vírus sincicial respiratório entre janeiro e março de 2021 no hemisfério norte. Se outras doenças que atacam o pulmão diminuíram seu efeito durante o período da pandemia, a COVID-19 fica mais nítida como causa dessas mortes.
A covid não foi só uma gripe, embora agora esteja evoluindo para ser algo similar a uma gripe. A nova estimativa de vítimas baseada no excesso de mortalidade confirma que foi a maior tragédia médica que atingiu a humanidade desde a gripe espanhola no começo do século XX.
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