O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, disse à coluna Jogos de Guerra que “existem países que têm pavor do Brasil ser o que é, como celeiro do mundo, em termos de alimentos”. A afirmação ocorre em um momento em que o mundo está à beira de uma nova crise mundial de alimentos.
Na quinta-feira (4), quando a entrevista foi exibida no canal da Gazeta do Povo, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgou que o preço dos alimentos em janeiro deste ano atingiu o maior patamar desde 2011. Naquele ano, a alta contribuiu para as revoltas que derrubaram os governos da Tunísia, do Egito e da Líbia e catalisou outros choques da Primavera Árabe.
O índice da FAO, que mede preços de commodities agrícolas, atingiu 135,7 pontos. Na crise de 2011, quando o mundo árabe foi varrido por uma série de revoluções populares que culminaram na Guerra da Síria, o patamar atingido foi de 131,9 pontos.
Segundo analistas, as revoltas populares de 2011 não foram desencadeadas somente pela alta de preços dos alimentos, mas por uma mistura de problemas como inflação, corrupção e desemprego, além de fatores geopolíticos.
O estopim ocorreu na Tunísia, quando o ambulante Mohamed Bouazizi, de 26 anos, teve seu carrinho de frutas apreendido e por isso ateou fogo no próprio corpo, em frente a um prédio do governo. Menos de um mês depois, ondas de protestos derrubaram o presidente Zine al-Abidine Ben Ali. Depois foram Hosni Mubarak, do Egito, Muammar Kadafi, da Líbia, e Ali Abdullah Saleh, do Iêmen.
Nesses casos, a alta do preço dos alimentos incentivou revoltas e conflitos internos. Mas é quase consenso entre analistas internacionais que cenários de escassez tanto de comida quanto de componentes (como chips de computador) e minerais também têm potencial para aumentar a competitividade entre nações.
Essa rivalidade global pode levar a sanções e barreiras econômicas e sanitárias, protecionismo, represálias diplomáticas, ataques cibernéticos e outras ações agressivas abaixo da linha do conflito armado. Mas, embora menos provável, elas também aumentam a possibilidade de guerra total envolvendo nações.
Mas como fica o Brasil nesse cenário geopolítico?
O Brasil é o quarto maior produtor de grãos do mundo, depois de Estados Unidos, China e Índia, segundo dados de 2020 da Embrapa. Mas os países asiáticos consomem muito de sua produção, o que faz do Brasil o segundo maior exportador de grãos do mundo (19% da produção mundial), atrás apenas dos EUA (21,6%). Em seguida vêm Argentina (8%), França (4,5%), Canadá (5,2%), Ucrânia (8,3%), Rússia (8,1%), Austrália (3,1%), Índia (2,1%) e Alemanha (1,5%).
O Brasil também fica em segundo lugar na exportação de carnes, com 13,4% do mercado, atrás dos EUA (14,8%).
“Existem interesses no mundo de terminar com essa produção brasileira, que torna o mercado mundial quase que cativo do Brasil”, disse o ministro Heleno.
“Então, os países que têm produção de agricultura, eles querem que o Brasil se recolha em termos de produção. Não vai acontecer. O Brasil está destinado, até por providência divina, a ser o celeiro do mundo”, disse.
Heleno não afirmou quais seriam esses países. Mas disse que os rivais dos brasileiros nesse campo atuam para retratar o Brasil como o grande “vilão” do meio ambiente. Eles usam como argumentos crimes ocorridos na Amazônia, como queimadas, extração irregular de madeira, derrubada de árvores para criação de pastos e garimpos ilegais.
Usando esses argumentos, tentam impor barreiras a produtos brasileiros e, em última instância, podem travar uma guerra jurídica em fóruns internacionais para tentar impedir o Brasil de explorar seus recursos na Amazônia Legal.
Esse atrito tem se concentrado principalmente no campo da guerra informacional, com declarações de políticos, debates na imprensa e produção acadêmica de ONGs e Think Tanks.
“Nós somos o país que mais preservou florestas naturais até hoje na humanidade e vamos lutar muito pela preservação, daqui para frente, cada vez maior da Amazônia”, disse Heleno.
O ministro não citou nomes, mas um dos maiores detratores do governo brasileiro na questão ambiental foi o presidente francês Emmanuel Macron. O americano John Kerry, enviado especial climático do governo Joe Biden, também fez críticas à política ambiental brasileira.
Analistas alegam que a pressão da França contra o Brasil ocorreria para impedir a conclusão do tratado de livre comércio entre União Europeia e Mercosul. O objetivo seria proteger o setor agrícola francês.
Já os Estados Unidos estão perdendo mercado para o Brasil na exportação de milho e competem pelo mercado chinês para a venda de soja, segundo relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
Mundo caminha para cenário de escassez
Analistas temem que o mundo esteja entrando em uma nova crise global de alimentos, que pode resultar em cenários de fome em países mais pobres e alta de preços de alimentos em nações mais desenvolvidas e em desenvolvimento.
Esse cenário começou a se configurar no ano passado, a partir de uma combinação de fatores. A maioria deles está relacionada a fatores climáticos, como secas e inundações, e a disrupções em cadeias globais de produção causadas pela pandemia de Covid-19.
A vacinação de populações em 2021 propiciou o fim de políticas de lockdown e uma retomada econômica. Mas a redução do tráfego de bens diminuiu a capacidade do transporte marítimo. O valor do frete subiu e produtos de alto valor agregado tiveram preferência no transporte – enquanto alimentos ficaram em segundo plano.
Além disso, a produção de petróleo havia sido diminuída pelos países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e não foi retomada completamente.
Em paralelo, houve uma alta nos preços do carvão na China que fez o valor do gás natural subir também na Europa. Ocorria ainda a tentativa global de substituição de combustíveis fósseis por energia limpa.
A alta do petróleo impactou ainda os transportes e aumentou a inflação globalmente. Essa “tempestade perfeita” jogava o mundo em uma grave crise energética.
A elevação no preço do gás natural é particularmente importante na questão da crise alimentar, porque ele é usado na produção de alguns tipos de fertilizantes. Fábricas tiveram que fechar, pois o gás foi direcionado para o aquecimento das residências na Europa.
Também ocorreram sanções americanas contra Belarus, um dos maiores produtores de fertilizantes baseados em potássio do mundo. Aliada à paralisação de fábricas nos Estados Unidos pela passagem de furacões, esses fatores iniciaram uma escassez global de insumos agrícolas – entre fertilizantes e defensivos. Os países produtores decidiram parar de exportar para preservar seus mercados internos.
O Brasil detém apenas 2% da produção mundial de fertilizantes, segundo relatório da consultoria Cogo. A falta de insumos deve impactar a safrinha do milho e as safras de inverno, que estão sendo plantadas no início deste ano.
Com custos de produção mais elevados pela escassez de insumos e o real desvalorizado, produtores preferem exportar (para receber em dólar e diminuir suas perdas) ao invés de vender para o mercado interno. O governo diz que não faltará alimentos no país, mas os preços vão subir ainda mais.
Nesse contexto, entra o problema do protecionismo. Em uma economia liberal, não é desejável que o governo intervenha na decisão dos produtores. Na Argentina, o governo impôs restrições à exportação de grãos e carne para abaixar os preços no mercado interno. Segundo analistas, isso ameniza o problema a curto prazo, mas com o passar do tempo pode quebrar os produtores agrícolas.
O medo de ações como a da Argentina, que interrompe cadeias de suprimento internacionais, tem levado países dependentes de importação de alimentos a buscar alternativas pouco ortodoxas.
A mais controversa é a compra ou arrendamento de terras e fontes de água em países pobres, como já fizeram Coreia do Sul, Arábia Saudita e China. Os países alvo foram o Sudão e a Etiópia, na África. Os países mais ricos transportam toda a produção para seu território e acabam exaurindo fontes de água e supostamente danificando o solo nos países “hospedeiros”.
O fato de uma população vítima de insegurança alimentar ver carretas carregadas de alimento saindo do país pode levar a convulsões sociais.
Setores de inteligência do Brasil investigam uma suposta compra de terras pela China na região da Bahia, mas por ora não há provas concretas de que isso tenha acontecido. O governo local nega.
Perspectivas de futuro
Muitas nações tentam diminuir a dependência externa no setor de alimentos irrigando áreas para torná-las produtivas, mas essa solução é temporária. A Arábia Saudita, por exemplo, bombeou água de seus aquíferos por 20 anos até exauri-los. Sua solução agora pode ser trocar petróleo por alimentos em uma crise alimentar mais grave.
Em paralelo, há estimativas de parte dos analistas de que o aumento das temperaturas globais poderia influir na produção global de alimentos ao longo do tempo, supostamente diminuindo a eficácia da produção. Não há garantias de que avanços tecnológicos vão tornar o setor agrícola capaz de acompanhar o aumento da população mundial.
O processo irreversível de transição para a energia limpa também pode fazer com que parte das terras agricultáveis seja destinada à produção de grãos e cana-de-açúcar para geração de etanol – o que vai gerar mais pressão sobre a produção de alimentos.
Em teoria, o Brasil possui reservas de água e terras agricultáveis que podem mudar a balança geopolítica em favor do país. A economia muitas vezes é usada na geopolítica como “arma de guerra”, para forçar suas vontades sobre um rival.
Nesse contexto, segundo Heleno, o Brasil precisa explorar seu território de forma sustentável (sem destruir a floresta tropical) e fortalecer o agronegócio.
Mas isso não basta. É preciso que o país invista em infraestrutura, segundo o analista Gabriel Leal de Barros, economista chefe da RPS Capital. Para que o país continue a desenvolver um setor chave como o agronegócio, é necessário acabar com gargalos. Ou seja, criar formas de transportar a produção de forma mais eficiente, melhorando a logística e a infraestrutura.
Reformas econômicas realizadas no atual governo, como o marco das ferrovias e o programa de incentivo à navegação de cabotagem, são esforços positivos nesse sentido.
Com menos gargalos, o país teria a possibilidade de escapar da “armadilha” que vem proporcionando baixo crescimento econômico desde a década de 1980, segundo o analista.
De forma similar, se o mundo não conseguir produzir mais alimentos com menos água, manter os solos férteis e diminuir os custos de transporte, crises de alimentos como a que se configura hoje podem se tornar uma realidade cada vez mais comum. E em um cenário de escassez, rivalidades globais podem se acirrar e conflitos armados internos ou entre nações se tornarem mais prováveis.
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