Uma das memórias mais antigas de Rob Henderson, veterano da Força Aérea dos Estados Unidos e doutorando em psicologia pela Universidade de Cambridge, é a imagem da própria mãe algemada ao seu lado em um longo corredor branco, depois de ser arrastada por dois policiais. Pouco tempo depois, o menino de três anos daria entrada no sistema de assistência social da região de Los Angeles. Nunca mais encontraria a mãe, uma mulher viciada em drogas que sequer sabia quem era o pai de seu único filho.
Antes de ingressar nas forças armadas aos 17 anos, Henderson passou por sete lares adotivos no estado da Califórnia, além de cinco escolas diferentes. Em suas palavras, acostumou-se a reunir seus pertences “em uma caixa de sapatos ou em um saco de lixo e mudar em poucos meses”. Trabalhou como empacotador de supermercado, lavador de pratos e ajudante de garçom. Depois do serviço militar, conquistou uma bolsa de estudos na Universidade de Yale através da Fundação Gates. E foi nesta jóia da educação liberal, uma das prestigiadas universidades da Ivy League, que Henderson foi chamado pela primeira vez de “privilegiado”.
Sem saber, o então estudante de psicologia assistiu de camarote a um dos primeiros escândalos que chamaria a atenção da imprensa para o recrudescimento da cultura “woke” nas faculdades americanas: em 2015, a professora Erika Christakis questionou um e-mail institucional veiculado pelo Conselho de Assuntos Interculturais da faculdade às vésperas do Halloween. O texto continha uma lista de fantasias “inaceitáveis” para a festa e pedia que os estudantes refletissem se seus trajes estariam ofendendo alguém, ao que a docente respondeu: “não há mais espaço para que um jovem seja desagradável ou inapropriado?”. Depois de ler e reler o e-mail pelo qual a professora e seu marido, o sociólogo Nicholas Christakis, foram acusados de atentar contra o bem-estar dos alunos, Henderson inocentemente questionou o que havia, afinal, de tão ofensivo no posicionamento do casal. “Você é privilegiado demais para entender a dor que este e-mail causou”, ouviu de uma colega de classe.
Tendo crescido na pobreza – mesmo depois de adotado, aos 9 anos, o menino acabaria viciado em álcool e drogas, sofreria com o divórcio dos pais adotivos e se envolveria em conflitos violentos nas ruas -, Henderson acabou por ocupar um espaço bastante “privilegiado” para identificar um fenômeno comum aos novos guerreiros da justiça social: os absurdos que você só pode acreditar se for rico o suficiente para não arcar com as consequências.
Comparando sua experiência pessoal e as melhores pesquisas disponíveis com as pregações idílicas das elites universitárias auto proclamadas defensoras dos oprimidos, Henderson cunhou o termo “crenças de luxo”, que acabou pegando entre intelectuais conservadores e progressistas críticos à cultura do cancelamento e à extrema-esquerda: o pesquisador foi entrevistado pela jornalista Bari Weiss, ex-editora de opinião do The New York Times, pelo psicólogo canadense Jordan Peterson e escreveu artigos sobre o assunto na imprensa americana.
Família tradicional
“Um ex-colega de classe de Yale me disse recentemente que ‘a monogamia é meio ultrapassada’ e não é boa para a sociedade. Perguntei a ela como foi sua criação e se ela planejava se casar. Ela disse que vem de uma família abastada e trabalha em uma empresa de tecnologia bem conhecida. Sim, ela pessoalmente pretende ter um casamento monogâmico – mas rapidamente acrescentou que o casamento não deveria ser para todos”, conta Henderson, em um dos exemplos mais famosos das “crenças de luxo”. Trocando em miúdos, a moça em questão foi criada por uma família tradicional e pretendia ter uma família tradicional, sustentando que “famílias tradicionais são antiquadas e a sociedade deve ‘evoluir’ além delas”.
Ocorre que há dados substanciais apontando que a estabilidade familiar é, sim, um relevante preditor de longevidade, saúde e sucesso profissional. Não à toa, as taxas de casamento entre americanos de classe alta continuam praticamente as mesmas desde a década de 1960, enquanto as classes mais pobres arcam com os custos da erosão da família, resultado da “crença de luxo” de que ela não é importante.
“As evidências são claras de que as famílias com pais casados são as mais benéficas para crianças pequenas. E, no entanto, pessoas ricas e criadas por pais casados são mais propensas do que outras a acreditar que a monogamia está ultrapassada, que o casamento é uma farsa ou que todas as famílias são iguais”, explica Henderson.
Atitudes relaxadas sobre o casamento chegam à classe trabalhadora e aos pobres. Na década de 1960, as taxas de casamento entre americanos de classe alta e classe baixa eram quase idênticas. Mas durante esse período, americanos ricos afrouxaram as normas sociais, expressando ceticismo em relação ao casamento e à monogamia.
“Essa crença de luxo contribuiu para a erosão da família. Hoje, as taxas de casamento de americanos ricos são quase as mesmas que eram na década de 1960. Mas as pessoas da classe trabalhadora são muito menos propensas a se casar. Além disso, as taxas de natalidade fora do casamento são mais de 10 vezes maiores do que eram em 1960, principalmente entre os pobres e a classe trabalhadora. Pessoas ricas raramente têm filhos fora do casamento, mas são mais propensas do que outras a expressar a crença de luxo de que isso não tem importância”, afirma o psicólogo.
Nesse sentido, o argumento de Henderson está em consonância com a análise do cientista político Patrick Deneen, autor de “Por que o liberalismo fracassou?”. “As elites mantêm um silêncio estudado sobre as bases familiares de seu sucesso relativo. A estabilidade conjugal é hoje uma forma de vantagem competitiva para as classes superiores, uma vantagem amplificada pela insistência de que a formação familiar é uma questão de escolha individual e até mesmo um obstáculo para a autonomia”, explica o autor. “A ironia é a criação de uma nova aristocracia que goza de privilégios herdados, papéis econômicos predeterminados e posições sociais fixas”.
Um mundo sem religião e sem polícia
O mesmo acontece com relação aos debates sobre o papel da religião na sociedade, a gestão da segurança pública e a qualidade dos serviços ofertados pelo Estado. É comum ouvir as elites progressistas defenderem, por exemplo, que a religião é irracional, alienante e deve ser banida dos espaços públicos, quando, na verdade, os vínculos religiosos geram redes de apoio e estabilidade imprescindíveis especialmente para os mais pobres. A ideia de que a polícia ou o sistema prisional têm que acabar também é comum na esquerda, sendo não apenas desaprovada pelos mais pobres, que desejam mais investimentos e melhorias no sistema policial, quanto prejudicial para as comunidades carentes que sofrem com o aumento da criminalidade enquanto as elites desfrutam de seus sistemas de segurança particular. Tome-se por exemplo o rastro de destruição deixado pelos protestos do Black Lives Matter nos bairros pobres de Seattle e a reação da população local à proposta progressista de cortar o financiamento da polícia.
A lista é extensa e engloba as mais diferentes áreas: dos influenciadores que alardeiam a superioridade dos serviços públicos de educação e saúde sem depender deles aos defensores do fechamento das escolas que desconsideram o impacto cognitivo e emocional que afetou de forma ainda mais intensa as crianças mais pobres. O dado mais alarmante acerca dessas “crenças de luxo”, contudo, é o fato de que elas se reproduzem dentro do próprio sistema educacional. Mas o que leva, afinal, um influenciador, um universitário ou um pesquisador a se deixar seduzir tão facilmente por estas falácias?
Segundo Henderson, é o próprio privilégio. “Como com anéis de diamante ou roupas de grife, os membros da elite usam suas crenças de luxo para se afastar da classe trabalhadora. Essas crenças, por sua vez, produzem consequências reais e tangíveis para os desfavorecidos, ampliando ainda mais a divisão. Assim como as roupas da moda que em breve estarão desatualizadas, as crenças da moda de hoje também passarão. No futuro, espere que a classe alta reforme ainda mais valores – incluindo aqueles que hoje prezam – em sua busca para se manter na vanguarda”. É preciso, afinal, ser muito “privilegiado” para não arcar com as consequências dos experimentos com a natureza humana.
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