Só poderei entender o outro se a mim mesmo entender.
– Gustavo Corção
No texto que escrevi sobre a preocupação presidencial com o possível avanço de uma onda vermelha sobre o Brasil, convidei os leitores a uma conversa. Quem chegou ao quarto parágrafo leu o convite para puxar uma cadeira e participar do bate-papo, talvez até tomando uma cervejinha gelada. Nem todos, contudo, reagiram bem ao convite. Houve quem entrasse chutando a mesa e as cadeiras cuidadosamente dispostas e esbravejando: “Você está errado! Eu tenho razão!”.
Mas não aprendo. E, se não aprendo, é porque não quero aprender. Sei que há muita gente viciada em estar com a razão, mas não me vejo como traficante de certezas. Pelo contrário, se é para viciar as pessoas em algo, que seja na dúvida. Refletir dá uma barato que nem te conto!
Por isso, e a despeito de um ou outro malcriado, insisto no convite: chega mais. Puxe uma cadeira. Não, não essa. Essa é muito dura. Ô, Dani, onde é que tá aquela almofada? Não, não a verde; a amarela. O amigo aqui tá precisando. Melhor assim? Maravilha! Não liga, a Catota é desse jeito mesmo. Logo ela se acostuma com você. Ah, já já o café fica pronto. Vai querer? Daqueles bem fortes. Também tem cerveja na geladeira. Prefere uísque? É pra já! Quantas pedras de gelo? Seja sempre bem-vindo à nossa conversa diária.
Pesquisas eleitorais
Este texto se baseia nos dados de uma recente pesquisa eleitoral. E, sim, eu sei que as pesquisas eleitorais, não é de hoje, sofrem uma grave crise de credibilidade. Sucessivamente, os números das pesquisas insistem em contrariar a realidade que apreendemos intuitivamente. Acontece comigo também. Olho para os lados e não vejo 45% dos familiares e amigos afirmando que votarão em Lula. Por consequência, dou um passo atrás e digo para mim mesmo que, sei não, algo de estranho está estranho.
“Como assim um candidato ex-presidiário que não pode nem ir no barzinho da esquina bebericar sua cachacinha pode estar 20 pontos percentuais à frente do candidato e atual presidente que ainda atrai razoáveis multidões por onde passa?”, você e eu nos perguntamos. E, para essa e tantas outras perguntas, não tenho uma resposta. A lógica me faz crer que os institutos de pesquisa não teriam interesse em fraudar esse tipo de resultado. Afinal, o bem mais valioso para um instituto de pesquisa é, em teoria, sua credibilidade. Se ninguém acredita nas pesquisas de opinião, para que elas servem?
Feitas essas ressalvas necessárias (mas sempre insuficientes), o fato é que uma pesquisa recente mostra que Lula teria 45% dos votos dos brasileiros. Numa conta rápida, levando em consideração que o Brasil tem 147 milhões de pessoas aptas a votar, isso equivaleria a 66 milhões de eleitores. Arredondemos para 65, só para o título ficar bonitinho. Este é o número de brasileiros, nossos concidadãos, pessoas com as quais dividimos o escritório, o transporte público e o restaurante, e que, em teoria, a julgar pelos números de uma pesquisa, estariam dispostas a votar num ex-presidente que já passou 580 dias numa prisão de luxo.
As condenações pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro posteriormente foram malandramente anuladas pelos “guardiões da Constituição”. O que não quer dizer, em hipótese alguma, que Lula tenha sido inocentado.
Ignorância tão profunda que nos escapa
Dito isso, chegou a hora daquele momento que incomoda tanta gente: o de olhar para dentro. A fim de tentar entender onde foi que erramos, enquanto sociedade, a ponto de termos entre nós 65 milhões de semelhantes que no mínimo cogitam votar em Lula – o que significa devolver o poder a um grupo político caracterizado pela corrupção, autoritarismo e mentira.
O que leva um caminhoneiro, por exemplo, a dizer que prefere a corrupção do PT a um governo “que cobra um preço desses pelo diesel”? O que leva um intelectual todo racional, iluminista e ateuzão a depositar todas as suas esperanças (fé) em Lula? O que leva jornalistas – olá, colegas! – a defenderem um partido que despreza a liberdade de expressão? O que leva um cristão a cogitar votar numa facção que já se mostrou antirreligiosa e que, pior, se baseia numa ideologia que tem como base a força, e não a misericórdia?
De todos os exemplos citados, os únicos que fazem algum sentido são o dos intelectuais e o dos jornalistas – grupos tradicionalmente cooptados pelo espírito coletivista que insiste em nos assombrar, mesmo depois de todas as tragédias totalitárias do século XX. Aliás, faz sentido que todas as pessoas que de alguma forma sucumbiram à tentação da engenharia social (incluindo aí médicos, arquitetos e escritores) vejam até com naturalidade a ideia de votar em Lula. Afinal, eles agem movidos pela ambição de um dia construir uma nova Torre de Babel.
Quanto aos demais exemplos e outros tantos que não me ocorrem, resta a dúvida: agem movidos por ignorância ou por uma má-fé disfarçada de “jeitinho brasileiro”? Ora, quem me lê com as devidas frequência & atenção sabe que prefiro sempre pressupor ignorância a cogitar que alguém aja de forma deliberadamente mal-intencionada.
É ela, a ignorância, o que leva uma pessoa honesta a não enxergar a relação entre a crise e, por exemplo, o intervencionismo econômico. É a ignorância o que faz certas pessoas darem de ombros para a liberdade, considerando-a um valor menor. É a ignorância, inclusive a ignorância de si mesmo (daí a frase de Gustavo Corção lá no alto), o que impede alguns de entenderem que o outro às vezes age movido por sentimentos mesquinhos, como a inveja e a vaidade, mesmo que de sua boca saiam palavras a exaltar “o bem comum”.
Honestidade, autonomia, autossacrifício
Se há, portanto, algo de verdadeiro na pesquisa, e se de fato 66 milhões de brasileiros pensam em entronar Lula novamente, é porque, nas últimas duas décadas, não conseguimos, apesar de todos os textos e debates e memes e documentários e cultos e decisões judiciais, criar uma sociedade baseada em valores como a honestidade, a autonomia e o autossacrifício. Pelo contrário, fomentamos essa ignorância que agora nos ameaça com a volta de Lula, exaltando a preguiça sobre a honestidade, a dependência sobre a autonomia e os prazeres sobre o autossacrifício.
Mas me diga: ainda tá bom esse uísque? Não quer mais gelo, não? Acho que vou cortar um salaminho pra gente. Xi, olha que sujeirada! Limpa logo isso, cara. Se a Dani vir vai ficar furiosa! Ah, meu Deus, aí vem ela. Disfarça, disfarça. Oi, amor, tudo bem? Não, não. Eu tava me levantando agora mesmo pra cortar um salaminho pra gente. A Catota? Não tenho a menor ideia de onde essa gata se enfiou. Mas onde é que estávamos mesmo? Ah, sim. Eu falava dos brasileiros que, de acordo com uma pesquisa aí, cogitam votar em Lula. Em Lula! Não dá mesmo pra acreditar numa coisa dessas.
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