Feminismo, movimento negro e LGBT: que peso a pauta identitária terá na campanha de Lula

No último dia 2 de janeiro, um dos diretores do PT e da Fundação Perseu Abramo, braço de formulação ideológica do partido, postou no Twitter que “o identitarismo é um erro”. “É uma pauta criada por ativistas dos Estados Unidos e que não tem similaridade com questões brasileiras. É a velha síndrome de colonizado que permeia setores ‘progressistas’. Confundem a questão central – a desigualdade – e se divorciam da realidade do povo”, escreveu Alberto Cantalice, que já foi secretário nacional de comunicação do PT.

A mensagem gerou uma enxurrada de críticas, vindas principalmente de filiados ao partido, na maioria jovens, adeptos dos movimentos negro, LGBT e feminista. Alguns lembraram da atuação de fundadoras do partido que, desde os anos 1980, discutiram maior inserção de mulheres na política e no mercado de trabalho. Outros alertaram que a discriminação contra gays e transexuais ou negros, por exemplo, está imbricada com a desigualdade social, pauta histórica do partido.

A vários desses interlocutores, Cantalice respondeu que o partido abraça movimentos antirracistas, contra a misoginia e a homofobia, mas que também é um “partido de massas”, “dos católicos, dos ateus, dos evangélicos, dos adeptos das religiões de matriz africanas”.

Uma das respostas a Cantalice veio do historiador Fernando Horta, que disse não haver “separação possível entre as lutas descoloniais e a luta contra o capital”. O diretor petista escreveu que ele estava “transformando o secundário em principal”, acrescentando que “todas as vezes que a esquerda radicalizou ‘aventureiristicamente’, a reação venceu”, relembrando 1935, 1954, 1964 e 2013, anos que marcaram derrotas da esquerda no Brasil.

Respondendo a outro interlocutor, que lhe sugeriu “um curso de atualização”, Cantalice escreveu que “a esquerda brasileira, quando se curvou às ‘modernidades’ em 2013, tomou na cabeça e agora amarga o bolsonarismo” – o ano ficou marcado como aquele em que milhões de jovens saíram às ruas de todo o país, em pleno governo Dilma Rousseff (PT), para protestos com pautas difusas: da redução do preço da passagem de ônibus à rejeição à realização da Copa do Mundo no Brasil, passando pela má qualidade dos serviços públicos, corrupção e crise econômica.

No dia 7, Cantalice voltou ao assunto com o seguinte post: “O apoio incondicional às companheiras e companheiros dos movimentos antirracistas, das mulheres, do LGBTQI, e dos PCDs [pessoas com deficiência] está sempre firme. Agora, a disputa com a esquerda escatológica que afasta o povo das lutas, e serve de instrumento para a direita, está só começando.”

Motivada por esse debate, a Gazeta do Povo ouviu alguns importantes políticos e pensadores de esquerda para saber se, na eleição presidencial deste ano, o PT poderá reduzir a importância da chamada pauta identitária. Esquerdistas tradicionais concordam com Cantalice que essa agenda acabou afastando do partido camadas mais populares, na maioria mais conservadoras nos costumes. Mas outro importante dirigente petista, que deverá fazer parte da coordenação de campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto, discorda.

O que dizem Lula e o PT sobre a pauta identitária

Um sinal do tom a ser dado na campanha foi emitido por Lula numa entrevista recente ao podcast Podpah, muito elogiada dentro do PT. Ele abordou a pauta identitária, e lembrou que o partido foi o primeiro a criar cota interna para candidatos negros e a ouvir a comunidade LGBT.

Por outro lado, disse que, se eleito, sua obsessão será eliminar a fome, reduzir a desigualdade social e governar para os pobres – uma indicação de que o discurso de campanha buscará um eleitorado mais amplo e com demandas mais comuns. Nesse contexto, Lula não mencionou discriminação de raça, gênero ou orientação sexual como obstáculos à inclusão social.

Na mesma entrevista, ele reconheceu que o rapper Mano Brown estava certo em 2018, quando criticou a desconexão do PT com o povo. Num breve discurso durante comício do então candidato do partido Fernando Haddad, dias antes do segundo turno, o cantor disparou: “Se não conseguir falar a língua do povo, vai perder mesmo, tio. Falar bem do PT para torcida do PT é fácil […] Partido do povo tem que entender o que o povo quer.”

Naquele ano, cerca de 7 em cada 10 evangélicos votaram no presidente Jair Bolsonaro, segundo o Datafolha. Líderes influentes das maiores igrejas do país que apoiam o presidente sempre lembram de um evento com artistas, em janeiro daquele ano, em que Lula ria olhando para dois homens que se beijavam, ao final de uma apresentação de dança.

Desde o ano passado, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, tem centrado seu discurso em questões econômicas e sociais, aproveitando números desfavoráveis ao atual governo nos índices de inflação (que hoje passa dos 10% no ano) e do desemprego (12%, segundo o IBGE).

Questionada em julho do ano passado pela Folha de S.Paulo sobre a presença da agenda identitária na campanha deste ano, ela disse: “Não temos problema em discutir esses temas, mas eles não podem ser usados para desviar o povo do ponto principal da responsabilidade de um governo”, numa referência a questões como emprego e renda.

À Gazeta do Povo, o deputado federal Rui Falcão, ex-presidente do PT e que deve ser um dos coordenadores da campanha de Lula, disse que a opinião de Cantalice não representa a posição do partido. Citou um documento da própria Fundação Perseu Abramo, publicado em setembro de 2020, com o nome “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil”, em que a luta contra a discriminação de negros, mulheres e pessoas LGBTQI tem lugar de destaque, mas junto com o combate à pobreza e às “desigualdades históricas”.

“Defender a vida, principalmente a vida dos mais vulneráveis excluídos, como negros, mulheres, povos indígenas e pobres em geral, é a grande prioridade […] A vida tem de ser protegida contra a crescente desigualdade de renda e de patrimônio, que condena a maioria da população à exclusão econômica, social e política. A vida tem de ser protegida da fome, do desemprego e da crescente precarização e uberização do mercado de trabalho”, diz trecho do documento.

Logo em seguida, a publicação passa a abordar questões mais específicas, condenando “um sistema de opressão estrutural” do racismo; bem como o machismo e o sexismo, “que assassinam mulheres todos os dias, que ameaçam seus direitos sexuais e reprodutivos e sua liberdade de controlarem seus corpos e as condenam a ganhar menos que os homens, a praticar a dupla jornada e ter posições secundárias numa sociedade patriarcal”. Ainda ataca “os preconceitos e a lgtbtfobia que matam e violentam a população LGBTQI+”.

Rui Falcão diz que essas questões não podem mais ser minimizadas, porque estão relacionadas às desigualdades. “São lutas pelos direitos civis. Não são lutas de minorias, porque somadas essas ditas minorias, são maioria na sociedade. Se contar a população negra, por exemplo, é maior que a população branca, parda e oriental. Então, um partido que quer transformar e construir o socialismo tem que tratar de todas essas questões”, diz.

O dirigente petista considera que a questão central é a “oposição entre as classes sociais” e que o principal é “alterar estruturalmente” o sistema capitalista. “Mas, ao fazer isso, tem de dar conta das outras questões também”, acrescenta Falcão, lembrando que, em relação aos negros no Brasil, a oposição entre as classes foi gerada pela escravidão.

“Tem uma concepção antiga que dizia o seguinte: se você mudar a estrutura econômica, tudo se resolve. Na verdade, não é assim que ocorre. Mesmo no interior de países que fizeram transformações profundas, como Cuba ou a União Soviética, no passado, e a China, remanescia o machismo e a perseguição aos homossexuais”, diz ele, dando outro exemplo.

Ele ainda cita pesquisas que mostram como mulheres ganham menos que homens e têm mais dificuldades de ascensão no mercado de trabalho, assim como negros em relação a brancos. “A simples mudança do poder econômico não resolve essas questões”, diz Rui Falcão.

Por outro lado, ele diz que essas lutas não podem ofuscar um objetivo maior. “O que não pode é ter uma fragmentação achando que a luta por igualdade racial vai se resolver num sistema que originariamente é desigual, que precisa ser desigual, que sobrevive porque explora e se apropria privadamente da produção coletiva”, afirma.

O que dizem políticos e pensadores da esquerda tradicional

Ministro da Coordenação Política, do Esporte, da Ciência e Tecnologia e da Defesa durante os governos petistas, Aldo Rebelo, atualmente sem partido, diz que, apesar do discurso recente do PT, Lula tem “horror” da pauta identitária. Mas crê que o ex-presidente não conseguirá evitar compromissos com esses movimentos porque, segundo Rebelo, os ativistas dessas causas hoje dominam o partido.

“Os grupos identitários são predominantes hoje no PT. Todo o setor sindical do PT tradicional, dos fundadores, desapareceu. Os dirigentes e outros próceres [do início do PT] se aposentaram ou morreram. Então, o PT foi tomado de assalto por esses grupos intelectuais e acadêmicos, da classe média, principalmente de São Paulo. Ele vai tentar fazer média com esse setor”, diz.

Uma demonstração disso está na própria Fundação Perseu Abramo, do PT. A revista mensal “Reconexão Periferias”, uma de suas principais publicações, dedicou várias de suas últimas edições a temas como luta contra o machismo e o racismo, defesa da população carcerária e de uma política mais liberal sobre as drogas, maior reconhecimento de povos indígenas e até a promoção da cultura das mulheres latino-americanas e caribenhas.

O prejuízo com um eventual enfoque prioritário sobre a pauta identitária, diz Aldo Rebelo, poderá ocorrer não apenas com a fuga de políticos, mas principalmente com o afastamento maior do eleitorado. “Os eleitores são sensíveis à educação, saúde, à inclusão social e econômica, mas em outros temas, como comportamento e costumes, são conservadores. Muitos da esquerda tradicional, principalmente aqueles ligados à religião cristã, são contra o aborto”, exemplifica.

Ele considera que as pautas identitárias dividem a população, são importadas dos Estados Unidos e se alimentam da polarização com a direita radical.

“Nós temos aqui uma esquerda acadêmica de Nova York, do partido Democrata, e uma direita de Miami agarrada à agenda do partido Republicano, que se complementam e se retroalimentam. Os dois não têm nada a ver com o Brasil”, diz, destacando nossa miscigenação étnica como traço distintivo em relação aos americanos. Para ele, a violência no Brasil nunca foi fruto dessas diferenças de raça, gênero ou orientação sexual, mas sim da desigualdade social.

Doutor em ciência política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), o professor da PUC-Rio e da UFRJ Luís Fernandes considera legítima a agenda identitária e reconhece que discriminações de raça, gênero e orientação sexual são “geradoras de desigualdade”. Para ele, no entanto, o Estado deve se limitar a proteger a liberdade dessas pessoas. Mas se a pauta delas for colocada no centro da agenda política, há risco de o Estado passar a promover comportamentos pessoais que não são aceitos pela maioria.

A consequência, diz, é a criação de divisão social e a rejeição a partidos de esquerda, por parte de parcelas da população que, a princípio, estariam dispostas a apoiar políticas progressistas – de maior acesso à educação e à saúde públicas, por exemplo –, mas que não toleram o estímulo a comportamentos que consideram imorais – como é o caso de pessoas religiosas que consideram que a homossexualidade é um pecado.

“Embora o Estado deva efetivamente garantir e proteger a liberdade de escolhas dessas pessoas pertencentes a minorias, o mais importante numa agenda progressista é agregar forças, convergir, principalmente em torno daquilo no que é estruturante no combate à desigualdade existente no país”, diz o professor.

Em resposta a críticas como essa à pauta identitária do PT, Rui Falcão, ex-presidente do partido, diz que uma legenda de esquerda não pode pensar apenas em ganhar votos numa eleição aderindo ao senso comum. “Se a gente quer mudar a sociedade, você não pode rebaixar o seu programa, pensando só em ganhar voto. Ao contrário, tem que debater, tem que combater o preconceito. O papel de um partido político como o PT não é se guiar pelo senso comum, é levar em conta que existe o senso comum e procurar modificá-lo.”

Quanto ao discurso de Mano Brown, o dirigente petista diz hoje reconhecer que ele estava certo, mas atribui o distanciamento do povo não à defesa das pautas identitárias, mas à ausência da militância na periferia.

“O fato de ocupar o governo e fazer mudanças profundas, que foram feitas no nosso período, não devia fazer com que o PT descurasse da organização popular, da presença dos territórios, como a gente fazia sempre. A política não pode ser feita só durante a eleição, a cada dois anos. A política é o cotidiano, a presença no bairro, na favela, é acolhimento das demandas e tomar pulso sobre o que está acontecendo”, afirma Falcão. A resposta, segundo ele, foi criar setoriais ligadas à pauta identitária – como de combate ao racismo e defesa das mulheres –, que também estão presentes nas comunidades pobres.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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