Crime organizado & política – o “estado paralelo”

No Brasil, como em toda a América Latina, o Estado não está em crise apenas por razão de natureza fiscal ou de má gestão – ambas reais. Há uma outra causa, menos aparente – e mais grave! –, que explica parte considerável da falência e da ineficiência das estruturas estatais no continente: o crime organizado, infiltrado nas teias das várias instituições públicas e alimentado por camarilhas de “colarinho branco”, pelo narcotráfico e demais organizações criminosas – em íntima parceria.

Trata-se de uma “economia” paralela, ascendente, que já “emprega” milhões de pessoas e que se alastra ad infinitum ao preço da disseminação da corrupção, da chantagem e da violência, resultando num verdadeiro estado de guerra civil e de barbárie, estampado, diariamente – e com veemência crescente –, na maioria dos espaços institucionais, tanto quanto nas extensões dos campos e nas ruas e esquinas das grandes cidades.

Cuba, Venezuela, Bolívia, Colômbia e Peru são alguns dos exemplos mais tradicionais e ilustrativos. Brasil, Argentina e, agora, Chile já seguem, passos largos, na mesma trajetória, com inúmeros “representantes” da contravenção estrategicamente instalados nas artérias das principais instâncias do sistema público de governança e da Justiça, por esses monitorados e manipulados.

É isso que elucida, em boa medida, a institucionalização da impunidade, a compra de políticos e magistrados, o financiamento de campanhas eleitorais por meio de “caixa 2” e a grande dificuldade de reversão do estado burocrático em que vivemos – cuja complexidade é funcional para o sucesso das ações cartoriais que se movem, em surdina, nos incontáveis labirintos protocolares.

Muitas das agremiações partidárias que proliferaram no país ao longo dos últimos anos, como “negócio”, são mantidas por esses recursos canalizados do contrabando e da contravenção, para além do Fundo (público) Eleitoral – hoje previsto em lei –, descriminalizando, “oficialmente”, a bandidagem.

São organizações formais de fachada, protegidas pela legislação ordinária e pela própria Constituição, que não obstante escondem da massa de militantes – inocentes úteis – e da sociedade em geral as verdadeiras motivações que movem a sua “ação política”.

O crime organizado manipula bancadas parlamentares em todos os níveis, das Câmaras de Vereadores ao Congresso Nacional, passando pelas Assembleias Legislativas, da mesma forma que captura executivos de primeiro e segundo escalões dos entes federativos e seduz e corrompe delegados, policiais, procuradores e juízes (incluídos desembargadores e ministros das Altas Cortes), garantindo, ao fim e ao cabo, o conteúdo cleptocrático que permeia e compromete a já frágil e instrumentalizada “democracia representativa” no continente.

Fortes indícios de vultuosos financiamentos externos a partidos políticos, explicitamente proibidos pela Constituição de 1988, já foram identificados em terra brasilis e estão, no momento, sob detalhada investigação (inclusive internacional). Uma vez comprovados, poderão levar à cassação definitiva de algumas dessas agremiações contraventoras, independentemente da relevância das siglas envolvidas – e desde vencidas as reações em contrário que emergirão do sistema (!) –, com forte impacto na vida política do país.

Tal afronta (e, mesmo, desdém) ao Estado de Direito denota, de forma particularmente ilustrativa, a gravidade do nível de metástase sistêmica a que se chegou e a face mais sombria de uma realidade que aponta para a ausência de uma institucionalidade que se aproxime, minimamente, do que se poderia esperar de uma república efetiva.

Um dos maiores analistas da evolução do modelo democrático liberal na contemporaneidade, o filósofo italiano Norberto Bobbio, já alertava para o fenômeno do “poder invisível” – ou do “duplo Estado”, na acepção do cientista político norte-americano Alan Wolfe –, por ele(s) considerado(s) uma das maiores ameaças à consolidação e avanços desse regime político, no presente e no futuro.

Segundo os autores, tal “poder” se manifesta e age, secretamente, nos escaninhos mais recônditos das instâncias públicas de governança, influenciando e contaminando agentes políticos estrategicamente situados em suas respectivas arenas decisórias (Executivo, Legislativo e Judiciário), os quais passam a redirecionar o produto de suas ações (leis, normas, sentenças, jurisprudência, atos governamentais, etc.) para fins unicamente corporativos (e ilícitos), favoráveis a seus apoiadores e financiadores, subvertendo a lógica republicana de compromisso com o “interesse geral” (da maioria da população) e ferindo de morte a própria democracia.

São máfias, lojas maçônicas anômalas, serviços secretos, agências de agiotagem e chantagem, hackers, seitas religiosas e/ou ideológicas, redes de narcotráfico, etc. (de feição local, nacional e/ou internacional) que, associados a influentes agências financeiras e, mesmo, governos de países intervencionistas, uma vez infiltrados nas estruturas oficiais de poder, apropriam-se das “trincheiras” do Estado e da sociedade civil (entidades de classe, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, imprensa, redes sociais, etc.) para fins estritamente delituosos, ora custeando e mobilizando grupos e organizações a ações de desestabilização da ordem vigente (inclusive de maneira violenta), ora desviando e desvirtuando políticas públicas em favor dos próprios interesses, com debilitação e esgotamento do ordenamento político-econômico corrente e o inevitável comprometimento de sua sustentabilidade no tempo – além de enormes prejuízos civilizatórios, em longo prazo.

Fato é que a “hegemonia do crime” não é uma questão de natureza unicamente moral ou política. Trata-se, igualmente (e sobretudo), de um problema de ordem econômica.

Tráfico de drogas, propina, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha não rimam com produção sustentável de riquezas, desenvolvimento, progresso humano, tampouco com qualificação profissional, meritocracia, competitividade e inovação.

Ao contrário: combinam com subdesenvolvimento, caos, saque e atraso, importando numa espécie de “extrativismo econômico” que, a médio prazo, lega à sociedade, tão somente, os buracos estéreis do roubo.

E isto é gravíssimo num mundo movido, cada vez mais, pelo conhecimento, pela inovação, pelo desenvolvimento científico e tecnológico e pelo empreendedorismo produtivo, que supõem, para a sua efetivação conjunta, a acumulação concertada de boas práticas institucionais – e não a extração de riquezas para fins improdutivos.

Diante desse quadro ameaçador, não menos relevante é reconhecer que o controle público do poder – portanto, a pujança e a solidez da democracia – torna-se ainda mais necessário e decisivo que antanho, particularmente num contexto em que, graças aos avanços das tecnologias da informação e comunicação (TIC), os decision makers (tomadores de decisão), de forma inédita, passam a dispor, como jamais outrora, de conhecimento amplo e detalhado sobre o que faz e o que pensa cada um dos cidadãos (reduzidos a bits), com potencial para se materializar, por uso abusivo desses recursos, a profecia de George Orwell quanto ao advento de uma época apavorante de despotismo cibernético – agravada e temperada, em continente latino-americano, por uma sórdida devassidão de uma medíocre e degenerada classe dirigente.

Sim, no Brasil e na América Latina, a tenra e frágil “ordem democrática”, sempre açoitada pela história e seus algozes de plantão, ante as novas ameaças de legalização despudorada de progressivas salvaguardas à delinquência – patrocinada, justo, pelos agentes do “Estado paralelo” (deep state) –, vive um momento crucial de sua trajetória: ou avança sobre o crime e redesenha as suas instituições na base de novos regramentos e mentalidade, forjados por uma ética verdadeiramente democrática e republicana (voltada ao “interesse geral” da sociedade), ou sucumbe, em definitivo, ao império da transgressão e do corporativismo sicário (malfeitor) – emulação à qual se vinculam os desdobramentos correspondentes de seu futuro e destino.

A opção entre Democracia e Cleptocracia – ou entre Civilização e Barbárie – é a bifurcação inescapável que se apresenta no horizonte mais imediato do cruzamento de nossa história – e o que estará em jogo nas próximas e vindouras eleições.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

Confira a matéria no Jornal da Cidade

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