No último final de semana, um vídeo da cantora Claudia Leitte invadiu as timelines de milhares de brasileiros nas redes sociais, viralizando o suficiente para que o nome da artista surgisse no topo das buscas no Google e entre os termos mais mencionados do Twitter. Dessa vez, contudo, não era um novo videoclipe, nem um single inédito, mas sim uma montagem que comparava dois momentos: o show lotado que protagonizou na capital paulista, dia 27, e outro, mais antigo, no qual a cantora se diz “preocupada com a quantidade de pessoas que não usa máscara e faz aglomeração”.
A contradição não passou despercebida. Os deputados federais Bia Kicis, Eduardo Bolsonaro e o ministro das Comunicações, Fábio Faria, foram algumas das figuras públicas de relevo que ajudaram a divulgar o vídeo.
O ocorrido teria todas as características de um simples meme satírico para gerar engajamento na internet, mas acabou indo além disso e turbinou uma campanha iniciada dias antes, simbolicamente representada pela hashtag #CancelaoCarnaval, levada adiante, sobretudo, por parte da direita.
Se o objetivo da campanha pode ser facilmente identificado – o cancelamento dos eventos de carnaval, previstos para serem retomados em 2022 -, menos óbvias são suas reais motivações, que vão muito além da preocupação sanitária com a nova variante do coronavírus que assombra os europeus.
Variante ômicron e aumento de casos na Europa
Desde o mês passado, a Europa tem registrado substancial aumento no número de infectados, embora a maior parte da população no continente já esteja completamente imunizada. Até o momento, segundo autoridades de saúde pública, a principal suspeita de ser a causa da nova onda seria a chamada variante ômicron, de origem sul-africana, aparentemente mais contagiosa do que as versões anteriores. A situação levou os países da União Europeia a suspenderem voos provenientes de sete países localizados ao sul do continente africano. A Alemanha chegou a endurecer as restrições para não vacinados, limitando seu acesso a bares, restaurantes, casas noturnas e outros locais fechados.
Questionado na última quinta-feira (25) sobre esse novo avanço da COVID-19, o presidente Bolsonaro afirmou: “Por mim, não teria carnaval”. A frase foi dita em entrevista à Rádio Sociedade da Bahia, acrescida do lembrete de que “segundo o Supremo Tribunal Federal, quem decide são os governadores e os prefeitos”, em referência à decisão do STF que deu autonomia aos estados e municípios para decidirem sobre ações de combate à pandemia.
Ainda que na mesma entrevista Bolsonaro tenha criticado a possibilidade de retorno do lockdown nas cidades brasileiras, a frase sobre o carnaval chamou a atenção de analistas e virou manchete em vários jornais, servindo de gatilho para que seus seguidores dessem início à divulgação da hashtag #CancelaoCarnaval na internet.
Se à primeira vista a mobilização pelo cancelamento da esta parecia contraditório com as posições adotadas por parte da direita durante a pandemia, as reações ao show de Claudia Leitte em São Paulo – estado governado por seu rival, João Doria – expuseram que a preocupação com o risco de contaminação nesse evento, não era, exatamente, o cerne da questão. Do ponto de vista político, a chance de desgastar um oponente, expondo uma contradição era imperdível.
Por que Claudia Leitte entrou na mira
Na montagem do vídeo que viralizou, paralelamente às imagens da multidão eufórica dançando em seu show, sem máscara e, obviamente, sem manter nenhum distanciamento, foi incluída outra filmagem, mais antiga, na qual a cantora diz que a “indigna o fato de que as pessoas não usam máscaras, continuam aglomerando, promovendo aglomerações e incitando aglomerações”. Claudia Leitte conclui o raciocínio afirmando: “Isso mata. Está comprovado”.
Dois dias antes do show polêmico, outro vídeo antigo de Claudia Leitte, gravado em 2019, também havia viralizado nas redes sociais. Nele, quem aparece dançando com a artista no palco e cantando música “We Are Carnaval” é um animado governador João Doria. Na manhã do dia 26, o próprio Doria retuitou o vídeo: “Me divirto com essas coisas”, disse o inimigo visceral de Bolsonaro, provavelmente sem imaginar que estava se vinculando à negativa repercussão do show na capital paulista, previsto para ocorrer no dia seguinte.
Apoiadora de longa data do governador paulista, Claudia Leitte foi indicada para se apresentar em vários eventos sob a gestão de Doria, desde quando ele ocupava a prefeitura da capital.
Vale tudo pelo Carnaval de São Paulo
A festa é tão importante para Doria, e sua retomada tão desejada, que no dia 9 de novembro, numa reunião com a Liga das Escolas de Samba de São Paulo (Liga SP), o Carnaval de São Paulo foi declarado patrimônio imaterial do estado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, órgão subordinado à Secretaria de Cultura. No post em que comemorou o reconhecimento, a Liga SP destacou que aquela era a primeira vez em anos que eram recebidos pelo chefe do Poder Executivo estadual. No encontro, outro desafeto dos apoiadores de Bolsonaro, o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), também estava presente e foi apontado com um dos responsáveis pela conquista do título.
Com tudo engatilhado para a volta da folia, a fala de Bolsonaro e a campanha de seus seguidores acendeu o sinal de alerta nos organizadores que responderam lançando, no dia 26, as próprias hashtags #Carnavalsim e #Osambavive, além do slogan “Carnaval da Vida” e de um texto explicativo no qual argumentam que é possível promover um desfile de escolas de samba, com plateia, seguindo todos os protocolos de segurança sanitária. No dia 28, a Prefeitura de São Paulo divulgou a lista dos blocos de rua do carnaval de 2022, revelando que não apenas o desfile no Sambódromo do Anhembi estava no radar, mas também o retorno de 440 blocos populares, inclusive com estimativa de público: 18 milhões de participantes.
Campanha da Liga SP lançada para defender a viabilidade do Carnaval de São Paulo, mesmo com pandemia.
O prejuízo das celebridades num Brasil sem carnaval
Desde a campanha #EleNao, promovida nas eleições de 2018, ficou explícito o clima de hostilidade entre parte do meio artístico brasileiro e Bolsonaro. Dado o fato de que a participação em carnavais badalados, em especial no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, é extremamente lucrativa para as celebridades – muitas delas, opositoras ao presidente -, isso se tornou um incentivo para parte da população agir pelo cancelamento.
Antes da pandemia, o carnaval brasileiro vinha numa sequência de recordes de público e lucro. Segundo estimativa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em 2020 a festa movimentou 8 bilhões de reais na economia nacional. Uma das categorias mais favorecidas é a artística. Naquele ano, a imprensa especializada falava em cachês que variavam de 20 mil a 150 mil reais por dia, simplesmente para que a estrela estivesse em determinado camarote e fosse fotografada. O valor depende do quanto a celebridade está em alta naquele momento. Um papel de protagonista na novela em exibição, por exemplo, joga o preço para cima.
Independentemente do quão engajados estivessem na defesa de lockdowns, em 2021, quando não houve grandes carnavais, os cantores, modelos e atores politicamente mais ativos também foram severamente atingidos no bolso pelas consequências das restrições aos eventos de massa e, talvez, o tamanho do prejuízo tenha feito com que alguns reconsiderassem o vigor que estavam investindo na defesa de medidas de confinamento.
Rechaço religioso ao carnaval vai além da política
Se as disputas políticas atuais foram determinantes para colocar o carnaval na mira por parte da direita, para os religiosos e conservadores em geral que compõe esse espectro político, ela não era nem sequer necessária para rechaçar a festa. A convergência das motivações apenas uniu forças.
A manifestação sobre a polêmica, feita no Twitter, pelo presidente da Fundação Cultural Palmares, Sergio Camargo, ajuda a explicar essa realidade:
Ainda que historiadores discutam sobre uma remota origem medieval da festa na Europa, que supostamente consistia na despedida do consumo de carne, bebidas alcoólicas e outros prazeres antes da abstinência e jejum que caracterizam a Quaresma no calendário católico, há décadas, o carnaval brasileiro provoca repúdio em cristãos de variadas denominações.
“Nós precisamos levar em consideração o que o carnaval é hoje. Inquestionavelmente, um tempo de perdição, no qual as pessoas se entregam a uma vida extremamente desordenada, comem em excesso, bebem em excesso, fazem uso de drogas, gastam em excesso, brigam umas com as outras, se entregam aos mais diversos tipos de pecados sexuais, dentre muitos outros pecados”, afirma Pedro Luiz Affonseca, presidente do Centro Dom Bosco, uma associação de fiéis católicos, com sede no Rio de Janeiro, que nos últimos anos ganhou notoriedade na imprensa pelas batalhas judiciais que travam contra organizações que ofendem a fé católica. Eles já processaram, por exemplo, o grupo humorista Porta dos Fundos e a ONG pró-aborto Católicas pelo Direito de Decidir.
Em 2020, surgiram notícias de que o grupo entraria com uma ação judicial contra a escola de samba carioca Mangueira, alegando crime contra o sentimento religioso, após esta apresentar um Jesus transexual no desfile. Dessa vez, o processo acabou não se concretizando, mas a entidade admite que estudou essa possibilidade.
Polêmicas envolvendo sátira a símbolos religiosos acabam sendo mais um agravante na controversa relação entre cristãos e os desfiles de carnaval no Brasil. Provocações à fé cristã também foram registradas nos desfiles da Gaviões da Fiel, em 2019, com uma encenação em que Jesus era derrotado por Satanás, e Unidos da Vila Maria, em 2017, com Nossa Senhora sendo representada por dançarinas seminuas. Ambas as apresentações ocorreram no carnaval de São Paulo.
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