Para cientista político Gaudêncio Torquato (USP e Cásper Líbero), antipetismo, ódio à corrupção, cansaço da política e facada em comício elegeram presidente
“Jair Bolsonaro é a figura certa que emergiu no momento exato de um ciclo político em franco processo de esgotamento. Canalizou a vontade da maioria do eleitorado, que enxergou nele o justiceiro e o guerreiro mais violento para enfrentar o lulopetismo”, diz o professor Gaudêncio Torquato, da USP e da Cásper Líbero. Protagonista da semana na série Nêumanne Entrevista, ele observa que o presidente “ganhou votos por ser o guerreiro mais violento contra o petismo; por representar a direita ideológica e o conservadorismo nos costumes; pela tibieza de Ciro Gomes e pelo estilo morno de Geraldo Alckmin; pela saturação da velha política e pela disposição do eleitor de arranjar protagonistas com perfil diferente dos figurantes tradicionais”. E analisa: “O eleitor esgotara sua paciência ao correr de tantos escândalos de corrupção. Bolsonaro, para eles, apresentava-se como ícone de um novo tempo. De repente, aquela imagem do defensor da ditadura, do capitão que tinha como exemplo o coronel Brilhante Ustra, dá lugar ao guerreiro da batalha pela moral e pelos bons costumes”. Só que, em sua opinião, “às vezes Bolsonaro passa a ideia de que não aguenta mais ser presidente. Se estiver pensando como Jânio, esperando que as multidões o aplaudam nas ruas para glorificar seu reinado, comete grande engano. Bolsonaro tem um sério adversário pela frente: o próprio Bolsonaro”.
Em busca da originalidade
Luciano Ornellas
Não são apenas análises políticas os textos que saem da lavra do jornalista e professor Gaudêncio Torquato. São na verdade, um profundo estudo da alma brasileira e suas circunstâncias. Ele busca em seus artigos vencer o desafio de encontrar nichos ainda não trilhados, temáticas ainda não desenvolvidas.
Jornalista por formação – repórter, redator e editor nos principais veículos impressos brasileiros. Aos 21 anos recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo, a maior honraria da Imprensa do Brasil.
Seus artigos são publicados no Blog do Noblat e em diversos periódicos pelo País. Assina também a coluna Porandubas Políticas, uma das mais lidas do site Migalhas.
Precursor do Jornalismo Empresarial,é uma referência nas universidades de Comunicação de todo o País. O livro Tratado de Comunicação Organizacional e Política, de sua autoria, é um clássico para estudiosos do assunto. No total, são treze títulos publicados.
Lecionou na graduação e na pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Metodista.
É membro da Academia Paulista de História; vice-presidente da ABCOP (Associação Brasileira de Consultores Políticos e Eleitorais); Conselheiro do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) e do Instituto Baccarelli. E foi presidente da Intercom, sociedade de estudos interdisciplinares de comunicação, a maior no gênero da América Latina, do qual foi um dos criadores, ao lado do idealizador, professor José Marques de Melo.
.Nêumanne entrevista Gaudêncio Torquato
Nêumanne – Por que Jair Bolsonaro, que não fez uma carreira exatamente brilhante no Exército brasileiro, aposentando-se como capitão, e foi durante 30 anos um vereador e deputado federal do baixíssimo clero, partiu de muito perto do zero na campanha presidencial de 2018 e terminou protagonizando a disputa?
Gaudêncio – Jair Bolsonaro é a figura certa que emergiu no momento exato de um ciclo político em franco processo de esgotamento. Canalizou a vontade da maioria do eleitorado, que enxergou nele o justiceiro e o guerreiro mais violento para enfrentar o lulopetismo. Vocalizou as aspirações de milhões de brasileiros que passaram a ver nele o contraponto ao status quo, sendo ele, pasmem, um quadro com assento fixo no baixo clero, que simboliza o que de pior existe na representação parlamentar. Se havia alguma dúvida sobre o voto, o eleitor tendente a nele votar decidiu fazê-lo após a facada que levou em Juiz de Fora. Facada decisiva para levá-lo ao pódio presidencial. Passou a ser o legítimo intérprete de parcela ponderável da sociedade, reunindo ao seu redor “exércitos” identificados com o conservadorismo nos costumes e o liberalismo na economia. Tornou-se o capitão do time da direita ideológica, e com essa camisa se apresenta à comunidade (nacional e internacional).
N – Que circunstâncias específicas da campanha presidencial de 2018 permitiram que um candidato que não tinha tempo de TV e enfrentava políticos de muitos recall e tempo, além de receber críticas pesadas e com muita antipatia dos meios de comunicação, chegou ao segundo turno no topo das pesquisas e disputando o páreo com um cavalo, no mínimo, manco?
G – A circunstância decisiva foi a facada. Que o transformou em vítima, sendo ele um dos mais virulentos perfis de nossa política. A facada serviu para suavizar a imagem de troglodita que até então o caracterizava. São famosas suas frases de efeito e suas arremetidas linguísticas contra adversários e adversárias, principalmente quadros do petismo. Recebeu cargas negativas de mensagens das mídias tradicionais, mas o momento político quebrou muitos paradigmas do marketing, entre os quais tempo de mídia eleitoral, dinheiro para a campanha, apoios de coligações, etc. Ele construiu sua própria teia de comunicação nas redes sociais, com a ajuda do filho Carlos, que planejou a guerra nas mídias da internet. Passou a estabelecer contato direto com as massas, mais exatamente com seu fiel eleitorado. Quando parte do eleitorado percebeu que ele era a “bola da vez”, migrou para seu lado. Era uma maneira de confrontar o lulopetismo.
N – Como professor de marketing político, com carreira em duas faculdades de comunicação de altíssima reputação, a USP e a Cásper Líbero, explique e ilustre como o senhor se situa em relação à influência da facada sofrida pelo então já candidato favorito em Juiz de Fora, desferida pelo ex-militante do PSOL Adélio Bispo de Oliveira, em comício a céu aberto em 7 de setembro de 2018: ao interromper a campanha, o atentado o prejudicou ou o catapultou?
G– A facada foi o fator imponderável que abriu o caminho da vitória. Ao interromper a campanha, deixou de ser atacado pelos adversários. Escudou-se no papel de vítima. E as fotos de sua recuperação serviram de combustível para animar seu eleitorado. É isso. O imponderável, quando aparece, ninguém segura.
Permita-me, a respeito, contar uma historinha sobre o imponderável. Em 1986, eu coordenava a campanha de Freitas Neto, do ex-PFL, ao governo do Piauí, disputando contra Alberto Silva, do então PMDB. Dia de comício de encerramento da campanha. Os carros de som corriam Teresina convidando o povo para o monumental showmício com Elba Ramalho. Mas o som chegou em cima da hora. Naquele ano, a eleição se deu em 15 de novembro. A parafernália de som de Elba saiu do Rio de Janeiro numa carreta. Chovia muito na Bahia. A carreta teve dificuldade para chegar a tempo. Em cima da hora, chegamos à Praça das Mercês. Vi os eletricistas correndo, atazanados, ligando cabos grossos e caixas de som. Bateu na hora um violento toró. Como se diz no Nordeste, uma chuva de arrebentar cercado. A coisa desandou. Pipoco por todos os lados. Curto-circuito. O som foi pro espaço.
A multidão gritava: Elba, Elba, Elba. A paraibana aproximou-se do candidato, que estava no fundo do palco, e disse: “Sem som não canto. Olhe aqui meu contrato”. Depois de muita insistência, ela pediu: “Me arranjem um acompanhamento”. Apareceu um cara com um banjo. Ela começou a cantar: “Bate, bate, bate, coração”. De repente, parou. E passou a fazer um discurso de reprovação à turba: “Seus canalhas, covardes, assassinos”. Eu não entendi a razão. Até que vi a deplorável cena: no meio da multidão, a galera abria a boca de um jumento e nela derramava uma garrafa de cachaça. A turba passou a vaiar. Foi um anticlímax. Perdemos a eleição que Matheus, do Gallup, garantia ser nossa. Por um índice de 1%. Por isso, quando faço palestras sobre marketing político, da plateia ouço sempre a pergunta: “Professor, o que é o imponderável numa eleição?”. Respondo: “Um jumento bêbado no Piauí”.
N – Qual foi o mais importante motivo para consagrar Bolsonaro definitivamente nas urnas: seu antipetismo autêntico, sem a vergonha de se opor dos tucanos nem a dúvida sobre bater ou lamber de Ciro Gomes, o discurso moralista nos costumes e liberal na economia, ao qual ele se tem adaptado com grande dificuldade, numa mistureba brega de Collor e Jânio, ou a onda de populismo de direita e exaustão do povo com a política, cuja manifestação mais significativa tem sido a de Donald Trump, nos EUA?
G – A mistura de todos esses ingredientes. Ganhou votos por ser o guerreiro mais violento contra o petismo; ganhou votos por representar a direita ideológica e o conservadorismo nos costumes; ganhou votos pela tibieza de Ciro Gomes e pelo estilo morno de Geraldo Alckmin; ganhou votos pela saturação da velha política e pela disposição do eleitor de arranjar protagonistas com perfil diferente dos figurantes tradicionais. O eleitor esgotara sua paciência ao correr de tantos escândalos de corrupção. Bolsonaro, para eles, apresentava-se como ícone de um novo tempo. De repente, aquela imagem do defensor da ditadura, do capitão que tinha como exemplo o coronel Brilhante Ustra, dá lugar ao guerreiro da batalha pela moral e pelos bons costumes.
N – Que tipo de fascínio tem o economista Paulo Guedes para ser considerado o “posto Ipiranga” da economia de um político que elogiou Hugo Chávez e chegou até mesmo a manifestar simpatia por Lula?
G – Tem lógica a observação de César Maia. O ministro Moro já falou que ir para o Supremo é como ganhar na loteria. Sob esse prêmio, anunciado com muita antecedência, Moro fica preso ao governo. O que é muito ruim para a imagem dele. Imaginem ficar ao relento até a saída de Celso de Mello, em novembro de 2020. E ainda terá de passar pela aprovação dos senadores. Que não o vêem com bons olhos pelo fato de ser o carrasco da Lava Jato. Pode ser que desista, a continuar o destroço que Bolsonaro faz na área da segurança. Essa questão do porte e da posse de armas, algumas de uso exclusivo das forças policiais, vai dar muita dor de cabeça a Sergio Moro. A não ser que o pacote de Bolsonaro não passe pelo crivo do Supremo, se lá for contestado. E se sair de um governo desastroso, sem dúvida, passa a ser sério protagonista para 2022.
N – Na sua opinião, a batalha do ex-juiz que pôs atrás das grades o maior empreiteiro do Brasil, Marcelo Odebrecht, e o ex-presidente mais popular segundo as pesquisas, Lula, será escarnecida, mas vitoriosa, como a de Stalingrado para os aliados, ou definitivamente desastrosa, como Waterloo o foi para Napoleão Bonaparte?
G – Como disse acima, sua batalha poderá ser desastrosa caso ele permaneça até o final e Bolsonaro não consiga realizar boa administração. Sofrerá como Napoleão os horrores do inverno devastador, que não o deixará chegar às portas do Planalto. Se o governo se sair bem e ele, Moro, for muito bem-sucedido em seu pacote anticorrupção, terá chance. Mas, e a promessa de Bolsonaro de levá-lo para o STF? Isso o deixará cercado de dúvidas. Teria até final do próximo ano para tomar um rumo. Momento de saída de Celso de Mello da alta Corte.
N – Quais são as chances de Bolsonaro vencer a queda de braço contra o trio parada dura do Centrão – Rodrigo Maia, Paulinho da Força e o condestável sem mandato Valdemar Costa Neto, o Pinheiro Machado contemporâneo –, sem base parlamentar e com o apoio popular se esvaindo por entre os dedos?
G – Rodrigo Maia tem em mente estabelecer uma agenda própria para a Câmara. Sabe-se que arrumou essa alternativa em articulação com Paulo Guedes. Ou seja ,a reforma da Previdência será aprovada, com modificações, claro, mesmo sob a desarticulação do Palácio do Planalto. Não vejo futuro nem para Paulinho da Força nem para Valdemar, perfis que perdem força. Ao contrário de Maia, que faz articulação com todos os blocos e alas da Câmara. Até imagino que o presidente da Câmara pense em ser protagonista em 2022. Bolsonaro pode, ainda, ser salvo pelo núcleo militar em seu entorno, que age como “poder moderador”. Os generais, até o momento, têm demonstrado bom senso. E não vão deixar que o presidente escolha o caminho do escritor da Virgínia.
N – O que leva o presidente a recusar-se peremptoriamente a governar para todos os brasileiros, como prometeu na posse, preferindo refugiar-se na casa filial de seu pitbull Carlos Bolsonaro e na combatividade pornográfica de um professor de redes sociais, Olavo de Carvalho, que se notabiliza mais pela escatologia de sua pregação do que pela lucidez de seu discurso?
G – O presidente Jair passa a impressão de que é refém do filho Carlos. Sabe-se que, no passado, pai e filho brigaram e passaram um tempo – um bom tempo – afastados. O pai conseguiu se aproximar. Comenta-se que não quer arranjar querela com o filho. Procura fazer as vontades do pitbull. Com receio de um afastamento entre eles. Já o professor Olavo parece apreciar ler seu dicionário de baixo calão. Faz de sua pregação um negócio. Comentários de 45 minutos ouvidos e pagos por um contingente de mais de mil pessoas. Vivendo em segurança na Virgínia, dando tiros com suas espingardas, pitando suas cigarrilhas e indicando alunos e simpatizantes ao Ministério de Bolsonaro. Um ócio confortável.
N – O senhor considera as manifestações de rua marcadas para domingo 26 de maio um tiro no pé para Bolsonaro (e que poderá ser o canto do cisne feio para o PSL), como prenunciou Janaina Paschoal, ou a oportunidade de ouro para o povo ir à rua e pôr o Centrão contra a parede, como prega a senadora Soraya Thronique?
G – Um tiro no pé. Lembremo-nos de Collor, que convocou a galera estudantil a ir às ruas para defendê-lo. Foi um bumerangue. Bolsoanaro não faz boa leitura do mundo real. Já não dispõe da força que tinha quando alcançou a vitória. E essa mania de atiçar seus “cães de caça” pode ser desastrosa. Veremos grupos nas ruas. Mas não em quantidade e vigor como alguns imaginam. Às vezes Bolsonaro passa a ideia de que não aguenta mais ser presidente. Se estiver pensando como Jânio, esperando que as multidões o aplaudam nas ruas para glorificar seu reinado, comete grande engano. Bolsonaro tem um sério adversário pela frente: o próprio Bolsonaro.
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