Se você é um dos remanescentes da década de 1980 e 1990, muito provavelmente já ouviu falar da Guerra Fria e de suas tensões. Lembro-me, por exemplo, de escutar meus tios debatendo ‒ um conservador e o outro socialista ‒ sobre quem tinha mais razão: os EUA ou a URSS. Desde a doutrina de Truman, em 1947, até a URSS finalmente falecer e se enterrar ‒ ao menos simbolicamente ‒, em 1991, a segunda metade do século XX viveu sob uma tensão permanente e assombrosa.
A URSS e o Ocidente livre travavam uma batalha retórica, política, econômica e bélica pela dominância do globo. As farpas geopolíticas, ameaças e momentos de quase-guerra foram tão gritantes que em muitos países foram construídos milhares de abrigos subterrâneos populares. Famílias estocavam alimentos para meses, tudo sob a certeza de que uma guerra nuclear entre o Ocidente e a URSS era quase inevitável. Houve momentos, afirma o historiador francês Stéphane Courtois, que os tremores da guerra eram tão reais que governantes eram acordados por seus serviços de inteligência durante a madrugada com a missão de se prepararem para a guerra iminente.
É esse o ambiente asfixiante e politicamente caótico que o diretor Dominic Cooke conseguiu recriar com rara maestria no filme pouco purpurinado pelo mainstream nacional, a saber, O espião inglês (disponível no Prime Video, da Amazon). O papel principal ficou a encargo do talentoso Benedict Cumberbatch, encarnando o inglês Greville Wynne, engenheiro mecânico e homem de negócios responsável por implementar indústrias inglesas por toda a Europa. Na trama, foi Wynne o escolhido dos serviços de inteligência MI6 e CIA para missão de ser o contato do espião ocidental infiltrado no alto comando da URSS, o coronel Oleg Penkovsky ‒ encenado memoravelmente por Merab Ninidze.
O filme retrata o momento exato em que, após muito tempo de um vazio de informações, os serviços de inteligência ocidentais passaram a receber relatos privilegiados dos planos militares soviéticos. O trunfo era óbvio, pois, uma vez que as informações secretas eram enviadas a partir de um militar do alto comando do império comunista, isso significava que os dados, documentos e fotos, tinham uma chance colossal de serem informações realmente importantes que garantiriam uma vantagem ocidental sobre os comunistas. Mas havia um problema nisso: como contrabandear tais informações para o Ocidente sem que o conteúdo ‒ cedo ou tarde ‒ despertasse a atenção paranoica da inteligência comunista? É exatamente aí que entra em cena o empresário Wynne.
O filme foi baseado em fatos reais, o que torna o feito de Wynne e Penkovsky ainda mais impressionante. Os conteúdos roubados da URSS pelo coronel ‒ e posteriormente enviados ao Reino Unido e aos EUA ‒ eram nada mais nada menos do que a principal estratégia militar soviética a fim igualar o seu poderio militar ao dos Estados Unidos, isto é: colocar ogivas nucleares em solo cubano, prontas para serem disparadas contra os EUA em uma eventual invasão ou ataque ocidental.
Era de comum entendimento entre os estrategistas ocidentais que, caso isso ocorresse, facilmente a URSS poderia estabelecer a dominância político-estratégica sobre grande parte do mundo civilizado. Fazendo, assim, a balança geopolítica tender fortemente ao comunismo.
O filme tem início quando Penkovsky descobre que os mísseis soviéticos estão sendo enviados para a ilha de Fidel. É neste exato momento que Penkovsky ativa sua missão de espionagem, tornando-se posteriormente um dos espiões mais importantes do Ocidente no século passado.
Como dito anteriormente, tal equivalência bélica da URRS com a dos EUA colocaria o império comunista em pé de igualdade militar com o Ocidente todo, faria países de menor destaque serem praticamente forçados a se dobrarem às vontades soviéticas com o intuito de não se tornarem também alvos em potencial.
Sem nenhum saudosismo temporal e reacionário, é bem fácil conjecturar que a história muito provavelmente poderia ter seguido a via do desprezo às liberdades individuais, econômicas e políticas, findando no limbo autoritário, caso a URSS seguisse com sucesso o plano traçado. O fracasso do projeto político da URSS tem muito a ver com os gastos militares colossais e insustentáveis despendidos com o objetivo de equalização bélica com os EUA. É evidente notar, desta forma, o quanto a coragem e os feitos de Penkovsky e Wynne foram cruciais para a vitória do modelo político e democrático do Ocidente.
Tomarei o devido cuidado, a partir de agora, para não derramar spoilers desnecessários, destaco três pontos fundamentais e louváveis do longa aqui resenhado. Vamos lá.
- Wynne foi retratado como um homem comum, dividido entre o glamour de ser um espião oficial do Ocidente e o medo de acabar com a sua próspera vida no auge. O enredo interno do filme consegue retratar com extrema felicidade esse caráter dúbio da psique de um homem bem-sucedido, com uma família estabelecida, e no ápice financeiro de seus negócios, sendo cooptado pelos serviços de inteligências do Ocidente com a missão de ir à URSS encontrar-se com o coronel e espião ocidental Oleg, sob arriscadas desculpas econômicas. Tudo isso com o intuito central de contrabandear as informações e documentos de lá para cá, obviamente.
- O segundo ponto a se destacar é a descrição muito bem elaborada e fiel das realidades sociais soviéticas, bem como das estratégias comunistas de investigação e punição de traidores. Destaco com maior atenção, porém, a sensibilidade do diretor em recriar a paranoia social descrita nos memoráveis diálogos de Penkovsky durante o filme; a aparente impressão de normalidade social que havia em Moscou ‒ afirma o coronel ‒ não passava de uma normalidade fabricada pelo medo e pela pregação ideológica, maquiagem política essa que escondia a doentia atmosfera de delação política que existia nos círculos mais íntimos da vida soviética. No entanto, tudo isso foi retratado com extrema sutileza e competência, sem soar aos ouvidos mais atentos como uma rasa propaganda ideológica anticomunista. Num dos trechos memoráveis do filme, é patente observar como um simples jantar podia ser algo ensaiado; palavras espontâneas eram seguidas de olhares de soslaio e reflexões ideológicas a fim de checar se nenhuma regra do Estado havia sido quebrada, se nenhuma delação política ao Estado seria necessária ao fim da refeição. “Qualquer um pode ser um delator”, destaca o coronel soviético ao engenheiro inglês, “do garçom ao lixeiro, do motorista de táxi ao engraxate”.
- Os gulags recriados no longa seguem um óbvio estudo de cenário. Quem já leu Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, ou Lasca, de Vladímir Zazúbrin, sente que as prisões ali exibidas saíram diretamente dos livros citados. Toda a obra é muito bem amarrada, a narrativa é contínua e não se torna maçante em nenhum momento. Nem propagandista de uma causa; nem medrosa em expor aquilo que o comunismo era em sua essência política. O roteiro, que pode parecer ser meramente “baseado” em fatos reais, segue um paralelo interessante com a história real dos personagens ‒ o que o torna, inclusive, quase biográfico.
Um filme para salvar na lista de favoritos da Amazon e assistir pelo menos umas duas vezes. Para assistir, aliás, junto ao filho ou sobrinho adolescente tentado a ser militante comunista sem conhecer o que foi de fato o comunismo. O filme é um retrato de anos assustadores do século XX, de conflitos e hostilidades que pareciam infindáveis.
No entanto, de certa forma, foi também uma boa época, de pedagogia social pragmática, tempo onde “senso de honra” na defesa das liberdades individuais não era um “discurso fascista”. Período em que os heróis eram de verdade. Eles podiam ser encontrados em lares mais diversificados, sob cores, gostos e fetiches mais variados. Dias em que a liberdade era assegurada, antes de tudo, pelo sentido de dignidade de cada indivíduo. Tal conclusão pode até parecer ser mero saudosismo reacionário deste que vos escreve, mas pode ser também aquela verdade que os dias sem propósito que nos cercam nos fizeram esquecer.
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