A matemática é ciência exata, mas nas mãos da classe política ela ganha contornos muito mais difusos, para não dizer surrealistas. Um exemplo é a ideia de que está “sobrando” espaço nos cofres públicos para mais gastos do governo, ou ao menos que vai “sobrar” algo depois da aprovação da PEC dos Precatórios. Foi exatamente esse o verbo que o presidente Jair Bolsonaro usou, durante viagem ao Oriente Médio, para anunciar uma nova serventia à PEC aprovada na Câmara e em análise no Senado. “Dá para a gente atender os mais necessitados, dá para atender a questão orçamentária, pensamos até em obviamente, dado o espaço que está sobrando, atender em parte os servidores”, afirmou, acrescentando que “em passando a PEC dos Precatórios, tem que ter um pequeno espaço para dar algum reajuste. Não é o que eles [servidores] merecem, mas é o que nós podemos dar”.
A conta da gastança é simples. O calote nos precatórios – não há outra palavra para descrever o fato de o governo encontrar um meio, ainda que transformado em lei, para não pagar dívidas transitadas em julgado e que deveriam constar do Orçamento de 2022 – e a mudança na regra de cálculo do reajuste do teto de gastos abririam a possibilidade de o governo adicionar mais R$ 91,6 bilhões em despesas no ano que vem. Mas o Auxílio Brasil de R$ 400, que é a grande motivação alegada pelo governo para fazer passar a PEC, custa cerca de metade desta quantia, daí a tal “sobra” de espaço. É neste momento que Executivo, Legislativo, situação e oposição se irmanam e decidem: se é possível gastar, gaste-se, no que for. Já se cogitou ampliar o imoral fundão eleitoral e aumentar os recursos das agora suspensas emendas de relator; o reajuste dos servidores é apenas a loucura mais recente para que não se “desperdice” um único centavo de espaço no teto de gastos.
Usar uma necessária ajuda aos brasileiros mais vulneráveis para também afagar o funcionalismo é recolocar o país em um caminho populista do qual tínhamos saído anos atrás e para o qual não podemos retornar
Como jogada política, o aumento ofereceria um afago a uma classe que Bolsonaro jamais ousa contrariar e poderia amenizar as resistências de senadores contrários à PEC, mas que também são ligados ao funcionalismo – tudo isso em ano eleitoral. Como medida econômica, no entanto, seria um desastre, a começar pelo fato de que parte da “sobra” no teto em caso de aprovação da PEC dos Precatórios já está empenhada, com R$ 8,5 bilhões para um vale-gás e o auxílio para caminhoneiros, e R$ 25 bilhões para a correção pela inflação de aposentadorias e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Tanto que ministros como João Roma, da Cidadania; a área técnica do Ministério da Economia; e o relator do Orçamento de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), disseram ter sido pegos de surpresa e que não há espaço para reajuste de servidores nem em caso de aprovação da PEC.
Mas este nem é o problema principal. O reajuste não teria impacto apenas nos gastos de 2022; ele cria uma pressão permanente sobre um governo que já é incapaz de gastar racionalmente o que arrecada e acumula anos seguidos de déficits primários na casa das dezenas de bilhões de reais. Ao incrementar a porcentagem do orçamento destinada ao funcionalismo, o aumento reduz a margem (já muito diminuta) do governo para realizar investimentos e outras despesas de livre escolha. E, como este reajuste estaria sendo concedido à custa do calote nos precatórios, haveria a pressão adicional causada pela necessidade de pagar, mais cedo ou mais tarde, estas dívidas que estão sendo adiadas por meio da PEC.VEJA TAMBÉM:
- A PEC dos Precatórios no Senado (editorial de 13 de novembro de 2021)
- Farra com o dinheiro dos precatórios (editorial de 29 de outubro de 2021)
- Por que o teto importa (editorial de 22 de outubro de 2021)
O funcionalismo tem razão quando se queixa de ver seu salário perdendo poder de compra ao não ser constantemente reajustado pela inflação – o reajuste mais recente ocorreu em 2019. No entanto, é preciso sempre lembrar que os servidores passaram incólumes pela catástrofe da crise econômica legada pelo petismo, quando o desemprego subiu de 6,5% no fim de 2014 para 11,8% em agosto de 2016, quando Dilma Rousseff sofreu o impeachment (e subiria ainda mais, para 13,7%, antes de começar a ceder). Da mesma forma, não sofreram as consequências do “fecha tudo” determinado por prefeitos e governadores em resposta à pandemia de Covid-19 – o funcionalismo nem sequer teve salário e jornada reduzidos, como milhões de trabalhadores da iniciativa privada. Tudo isso estando em carreiras que, em média, já pagam mais que seus equivalentes no setor privado. O governo já não tem dinheiro, e precisa recorrer a um calote nos precatórios para abrir espaço para mais gastos; usar uma necessária ajuda aos brasileiros mais vulneráveis para também afagar o funcionalismo é recolocar o país em um caminho populista do qual tínhamos saído anos atrás e para o qual não podemos retornar, porque o preço será alto já no curto, mas também no médio e no longo prazo – e será pago por todos os demais brasileiros.
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