Por que os lobisomens eram mais democráticos que LGBTQUIABOs

Por aqui o povo está sempre planejando um passeio. Os políticos se aproveitam disso e, quando um passeio fica famoso, colam com os peões para oferecer alguma coisa e botar o próprio nome. Alguns peões não gostam e ficam fulos; outros não estão nem aí e outros tomam gosto pelo político. Eu chutaria que a maioria não está nem aí; que, para ganhar a simpatia deles, não é necessário nem suficiente dar as coisas, e sim eles acharem que o político é uma boa pessoa. Mas como eles chegam a essa conclusão, só Deus sabe.

Ia eu contando, então, que um indivíduo estava no bar planejando fazer um passeio de barco, e, enquanto planejava, deixou muito claro que eu estava excluída porque seria um passeio só de homens. Já a presença de Fulano ia depender do mês, porque Fulano é seis meses homem e seis meses mulher. Ouvindo isso, encarei os circunstantes à espera de um desmentido. Para a minha surpresa, todos fizeram que “sim” com a cabeça. Eu era a última a saber que Fulano, que sumia no inverno, era seis meses homem e seis meses mulher. “Quando Fulano é mulher, vai à oficina atrás dos homens!”, queixou-se o dono da oficina.

Perante essa situação, vocês acham que eu vou:

1) Tentar corrigir todo mundo e dizer que ninguém vira mulher;

2) Interpretar os fatos à luz da Ciência, buscando decidir se ele é um homossexual reprimido que precisa de terapia ou se a sigla LGBTQUIABO deve crescer o bastante para abarcar o transgênero sazonal; ou

3) Considerar que Fulano “é mulher” no inverno?

Em Roma, como os romanos

Senhoras e senhores, fico com a terceira opção sem pestanejar. Longe de mim brigar com a cidade inteira, fazendo-a crer numa coisa tão elementar quanto que homens são homens e mulheres são mulheres. O próprio Fulano é casado e pai de vários; se a mulher dele não conseguiu convencê-lo de que ele é homem em todas as estações, não sou eu que vou conseguir.

Como vocês hão de imaginar, a peãozada tem índole bastante conservadora e os homens da oficina repelem Fulano quando ele é mulher. Se eu não sei direito o significado da sigla LGBTQUIABO, muito menos eles. E não obstante eles aceitam que Fulano é seis meses homem e seis meses mulher. Devem ter um bom motivo para isso, e nem que eu tivesse formação de geneticista em Cambridge feito Eli Vieira eu teria autoridade para, caindo de paraquedas, fazê-los acreditar em algo contrário a toda a sua experiência com Fulano.

Quanto à postura número dois, tenho uma imensa preguiça. Essas tentativas de encontrar uma explicação última para toda anomalia comportamental sempre resvalam para a pseudociência. Então jogo pro alto e prefiro considerar que o homem é mulher por seis meses. Em Roma, como os romanos.

Aí está, ao meu ver, uma dose saudável de relativismo, que se confunde com a ideia de tolerância. Dá para tocar uma sociedade em que alguns são esquisitões, e mesmo um esquisitão como esse consegue ter trabalho, esposa, filhos criados, amigos e ser benquisto pelos conterrâneos. Daí não se segue, porém, que todo tipo de esquisitice seja conciliável com uma vida em sociedade. Se a esquisitice incluísse pedofilia, estupro ou assassinato, por exemplo, a sociedade se mobilizaria contra o esquisitão.

Outra coisa interessante do caso é que a esquisitice individual prescinde de chancela estatal. Está claro que basta os habitantes participarem da sua realidade mental, e está tudo certo. Não passa pela cabeça que o Estado ou a Ciência devam se imiscuir nisso.

Lobisomens X LGBTQUIABO

Os cientistas parecem tentar tomar o esquisitão apenas como um indivíduo e explicar sua a esquisitice por meio de causas materiais ou psíquicas profundas, sem deixar muito espaço para o papel do acaso ou a sociedade.

Vejam por exemplo o caso dos lobisomens. Quando uma sociedade acredita em lobisomens, há o cara que acredita ser ele próprio um lobisomem e as pessoas que acreditam que um terceiro é um lobisomem. Trata-se de uma esquisitice social que irmana o esquisito (lobisomem) e os que acreditam em algo esquisito (na existência de lobisomens). A Europa chegou pelo menos ao século XVII acreditando piamente na existência de lobisomens. O peão, a lavadeira, o filósofo, o demonólogo, o eclesiástico: todos formavam, por assim dizer, uma comunidade de crença. Lobisomens existem, quis o destino que João fosse lobisomem. Cuidado com ele nas luas cheias!

Hoje, por outro lado, uma criatura escolarizada entra na internet, estuda, contempla a própria individualidade e conclui: sou um trans não-binárie, meus pronomes são elu delu! O peão não sabe o que é um pronome, nem o que é um não-binárie, nem nada.

Em vez de negociar seu reconhecimento com a sociedade, a primeira coisa que o esquisitão vai fazer é procurar o Estado para que ele passe leis “inclusivas” e mude formalmente o seu nome. Depois, vai dar chilique contra o peão (ou o primo “bolsonarista”) que não o tratou pelo pronome correto. Se possível, vai botá-lo na cadeia por crime de ódio.

Não se pode dizer que haja uma comunidade de crença. Há a imposição de uma crença. É algo aparentado à tomada de um povo por uma teocracia intolerante.

Se tivesse lobisomem hoje em país rico

Se no mundo rico os letrados ainda acreditassem em lobisomens, a mentalidade atual lidaria com eles de uma maneira bem diferente. Primeiro, o lobisomem seria uma pessoa especialíssima por ser diferente – como se a pressuposição de uniformidade humana valesse mais entre eles do que entre nós ou entre os europeus antigos. Uma Parada do Orgulho Lobisomem seria cogitada. O histórico de repressão aos lobisomens pela Inquisição seria trazido para comover a sociedade. Depois, seria necessária uma sanção estatal para reconhecer a existência do lobisomem. Como o Estado moderno não gosta de espontaneidade nem de acaso, seria necessária a figura da Ciência para chancelar a existência de lobisomens. Escaneariam o cérebro, fariam o diabo a quatro, encontrariam coisas interessantes, mas não conclusivas para a causa da licantropia.

Nesse ínterim, a licantropia seria assunto de debates acalorados nas classes média e alta; a universidade se veria cheia de lobisomens.

Apareceria, então, a disciplina Werewolf Studies (traduzida como “estudos de licantropia”, embora os paulistas preferissem dizer werewolf enquanto marcam um meeting no rooftop para praticar howling na lua cheia).

Os especialistas em estudos de licantropia teriam uma série de verdades científicas que você tem que acatar, do contrário vira licantropofóbico. Obscurantistas que não acreditam que homem vira lobo encarnariam a culpa de séculos de marginalização e perseguição de lobisomens. Especialistas ensinariam as crianças a detectarem os primeiros sinais de que elas são lobisomens. Divulgadores de ciência explicariam que é perfeitamente normal virar lobo e uivar para a lua cheia.

Ah, sim. Além da moda, viriam os incentivos materiais. Em nome da diversidade, da inclusão e das reparações históricas, o Estado e os RHs teriam cota para lobisomem. Daí ia ser tanto lobisomem que as noites de lua cheia iam ficar impossíveis. Teria de haver lobisomens certificados, com crachá, habilitados para uivar na lua cheia – além de uns bons policiais para dar uma sova em lobisomens não-certificados. A carteirinha de lobisomem ia valer ouro, já que dá direito a vaga em Medicina.

Daria para uma sociedade ser funcional assim?

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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