Em 2018, o brasileiro chegou a se empolgar com a greve dos caminhoneiros, apoiando o movimento em seu início apesar de todos os transtornos que a categoria causou ao país. Mas logo ficou claro que a greve não passava de mais uma ação motivada apenas por interesses próprios, com a diferença de que os caminhoneiros quiseram colocar o país de joelhos e o fizeram, voltando ao trabalho quando o presidente Michel Temer fez concessões que interessavam apenas àqueles profissionais. Desta vez, escaldada pelos acontecimentos de 2018, a sociedade não sente o menor entusiasmo pela paralisação iniciada em 1.º de novembro, ciente de que ela serve apenas aos próprios caminhoneiros. Isto nem chega a ser um problema; pelo contrário, espera-se que seja assim – é da natureza de qualquer greve que as reivindicações girem em torno dos interesses dos grevistas, e cruzar os braços é direito garantido constitucionalmente. O problema, aqui, são os meios que os caminhoneiros estão dispostos a usar para atingir seus objetivos.
Um instrumento bastante usado no início da greve de 2018 foi o bloqueio total de estradas, que causou desabastecimento até mesmo de insumos básicos, incluindo itens de uso hospitalar, em diversas cidades. Apenas com a greve já em andamento, governo federal e Supremo Tribunal Federal agiram para liberar as rodovias, com base em um princípio muito simples: o direito de greve não pode ser abusado para impedir que outras pessoas também exerçam os seus direitos, como o de ir e vir (garantido no artigo 5.º da Carta Magna) e o direito da sociedade de ter suas necessidades inadiáveis atendidas, previsto no mesmo artigo 9.º da Constituição que trata do direito de greve. Como já afirmamos em diversas ocasiões, a respeito dos mais diversos tipos de manifestação, nenhuma reivindicação, ainda que considerada sumamente nobre, justifica o uso da força ou a violação dos direitos dos demais – o que, aliás, está previsto na própria Lei de Greve, que no artigo 6.º deixa claro que “em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem”.
Nenhuma reivindicação, ainda que considerada sumamente nobre, justifica o uso da força ou a violação dos direitos dos demais
Os caminhoneiros, no entanto, jamais absorveram esta verdade básica da cultura democrática. Desta vez governo e Justiça agiram de forma preventiva, com uma série de decisões judiciais em todo o país que proibiam o bloqueio de estradas e do acesso a instalações como refinarias e portos, sem prejudicar outras formas legítimas de protesto, como a aglomeração de caminhões em acostamentos ou postos de parada. Mas ao menos parte da categoria demonstrou que seu interesse era mesmo interromper o fluxo nas rodovias, ao buscar a Justiça para derrubar as liminares.
E seu objetivo foi conseguido, ao menos por algumas horas. Na noite de terça-feira, a desembargadora Ângela Catão, do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (que cobre toda a Região Norte e partes de Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste), havia derrubado as proibições de bloqueio nos estados de Minas Gerais, Goiás, Pará, Tocantins, Bahia, Amazonas, Piauí, Roraima e Maranhão. A desembargadora alegou questões formais, afirmando que decisões judiciais sobre o exercício do direito de greve cabem não à Justiça Comum, mas à Justiça do Trabalho. Uma argumentação que, embora correta, está incompleta, pois, como já vimos, o bloqueio de estradas não tem relação apenas com o direito de greve, mas com uma série de outros direitos básicos que passam a estar em risco com a permissão para bloqueios – risco este que justifica totalmente a ação da Justiça Comum na salvaguarda de tais direitos.VEJA TAMBÉM:
- A paralisação dos caminhoneiros e a falta de cultura democrática (editorial de 9 de setembro de 2021)
- Convicções da Gazeta: Cultura democrática
- O combustível caro e as respostas simplistas (editorial de 14 de setembro de 2021)
Além disso, a desembargadora trilhou caminhos bastante perigosos ao afirmar que o direito de greve extrapola as questões ligadas à categoria que cruza os braços, reconhecendo a possibilidade da “greve política”. No entanto, em 2019 o Tribunal Superior do Trabalho decidiu pelo caráter abusivo de greves motivadas pela possibilidade de privatização de estatais. Da mesma forma, greves contra reformas como a trabalhista e a previdenciária também já foram declaradas abusivas em ocasiões recentes. Felizmente, na tarde de quarta-feira o ministro Luiz Fux, presidente do STF, restaurou todos os interditos proibitórios a pedido da União, restabelecendo a proibição de bloqueios nas rodovias e fechando a porta que o TRF-1 havia aberto de forma perigosa.
Em vídeo divulgado para comemorar a decisão do TRF-1, o líder caminhoneiro Wallace Landim afirmou que “essa luta não é só nossa, não. Essa luta é de toda a população para a gente reduzir o preço do combustível”, em uma tentativa de angariar o apoio de brasileiros insatisfeitos para algo difícil de conseguir sem criar distorções na tributação ou na política de preços da Petrobras. Mas o brasileiro se lembra de como bastou a Temer instituir uma tabela de frete inconstitucional e reduzir e congelar o preço do diesel para que a “luta de todos” em 2018 fosse abandonada. O discurso é mera tentativa de amaciar a opinião pública caso os caminhoneiros tentassem repetir o roteiro de três anos atrás e quisessem vencer pela força após causar todo tipo de transtorno à população. Essa possibilidade, felizmente, volta a estar proibida; o STF acerta ao restaurar o veto aos bloqueios, preservando os direitos dos brasileiros – inclusive o de bem realizar uma greve.
Be the first to comment on "Os caminhoneiros e a briga na Justiça pelos bloqueios em estradas"