Como o embargo da China pode (ou não) aliviar o preço da carne no Brasil

À medida que se arrasta a suspensão de exportação de carne bovina para a China, cresce a expectativa de que o produto fique mais barato ao consumidor. O veto foi imposto em 4 de setembro, motivado pelo registro de dois casos “atípicos” de mal de “vaca louca” em território brasileiro.

A expectativa de queda do preço é reflexo puro e simples da lei da oferta e da procura: uma vez suspensas as vendas à China, maior mercado da comunidade internacional, sobra mais carne no Brasil. E esse estoque maior, em tese, levaria comerciantes a baixar o preço. Mas quais as chances de que o impasse entre Brasil e China acabe por aliviar o valor da proteína animal na ponta?

Entenda: Por que as exportações de carne para a China foram suspensas

Queda no atacado ainda não chegou ao varejo. Vai chegar?

Até agora, analistas notaram uma queda dos preços no atacado, isto é, os preços baixaram no início da cadeia produtiva. Desde a suspensão das vendas, em 4 de setembro, a cotação da arroba do boi já caiu, na média nacional, de 9% a 10%, segundo a Safras & Mercado.

Ainda segundo a consultoria, o preço do corte dianteiro no atacado em São Paulo está cotado a R$ 13,50 o kg. Um mês atrás, esse mesmo corte estava R$ 16,20. Isso significa uma queda de quase 17%.

Em paralelo, o IPA-10 de outubro – índice da Fundação Getulio Vargas (FGV) que mostra o comportamento do preço de matérias-primas– indica queda de 4% no preço do “bovino vivo” no atacado.

“Primeiro, o animal negociado fica mais barato, e aquilo vai, aos poucos, chegando ao consumidor. A lógica é fácil, mas nem sempre vem na velocidade que nós imaginamos”, explica André Braz, economista e coordenador de índices de preços do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV).

Por ora, o consumidor final mal notou mudança de preço. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) deste mês, que o IBGE divulgou nesta terça-feira (26), indicou que o preço das carnes recuou pela primeira vez em 16 meses. Mas a baixa foi insignificante: de 15 de setembro a 15 de outubro, o preço médio caiu 0,31%. Isso significa que, em um mês, uma compra de R$ 50 ficou uns R$ 0,16 mais barata.

Dentre os diversos cortes bovinos pesquisados pelo IBGE, a maior queda nesses 30 dias foi da capa de filé, que ficou 1,83% mais barata na média nacional. O preço da costela recuou 1,68% e o do músculo, 0,82%. Alguns cortes até ficaram mais caros, como a picanha (+2,88%).

A análise do economista Fernando Iglesias, analista da consultoria Safras & Mercado, é otimista quanto à queda dos preços ao consumidor final, sem deixar de considerar que o varejo tem por característica repassar esses movimentos de uma maneira mais lenta.

“O varejista, muitas vezes, tem seu estoque feito. Na hora que tiver a renovação de estoque, pegando a carne com preço efetivamente em níveis mais baixos, aí sim é que há movimentos de queda do preço do varejo”, diz ele. “Até lá, o patamar do preço do varejo vai continuar bem acentuado.”

Um outro levantamento, feito pela Scot Consultoria, identificou um movimento de alta de preços no atacado de setembro para cá. Segundo a consultoria, o preço do boi no atacado subiu 4,4% na média nacional em 50 dias (entre 1.º de setembro e 20 de outubro).

“No geral, no atacado, os preços ficaram relativamente mais firmes, porque os cortes de traseiro acabaram não sofrendo esse reflexo [do embargo chinês]”, diz Jessica Olivier, analista da Scot. Segundo o levantamento, os preços médios do traseiro subiram 6,2% no período.

Olivier explica que o movimento de alta no preço médio no atacado identificado pela Scot se deve ao fato de que as carnes exportadas para a China geralmente são as do “dianteiro”, conhecidas pelos brasileiros como de “segunda”. Essas ficaram 2,5% mais baratas em 50 dias, em média.

Por que o preço para o consumidor não cai

Enquanto alguns levantamentos indicam queda do preço no início da cadeia produtiva, os consumidores não veem mudança significativa nas tabelas de açougues e supermercados. Entre os motivos que explicam isso está o alto custo da produção para pecuaristas e frigoríficos e o movimento do varejo para recompor a margem.

“O varejo trabalha para recompor sua margem e, portanto, existe essa menor capacidade de repasse. Se acontece, tende a ser um movimento mais comedido, não costuma ser tão agressivo como observamos no atacado”, diz Iglesias, da Safras & Mercado.

Com a inflação acumulada, o preço precisaria recuar muito para que voltasse a ser um produto permanente na mesa das famílias. “A carne é um bem de primeira necessidade. Seu preço já subiu 24% em 12 meses, isto é, mais do que o dobro da inflação acumulada também para os últimos 12 meses. Mesmo que o preço caia, não vai cair a ponto de devolver todo esse aumento”, explica André Braz, do Ibre/FGV.

“Vai ser bom, porque os preços estão finalmente recuando no mercado, mas não do jeito que gostaríamos de ver. Continuará sendo um item raro na mesa da maioria. Digamos que caia 4% – é uma queda expressiva para o curto prazo. Mas isso não fará com que a carne volte a ser comprada pelas famílias de baixa renda, porque ainda assim vai acumular alta de 20% em 12 meses”, diz.

Por que as exportações de carne para a China foram suspensas

Em 1º de setembro, o Ministério da Agricultura passou a investigar duas suspeitas da doença “vaca louca” em frigoríficos de Minas Gerais e Mato Grosso.

Os casos foram classificados como atípicos, isso é, “ocorrem de forma espontânea e esporádica e não estão relacionados à ingestão de alimentos contaminados”, de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Em uma das situações, por exemplo, tratava-se de um animal mais velho.

Nos casos considerados “clássicos”, o boi pode contrair a doença ao consumir ração contaminada e há potencial de contaminação do rebanho e de consumidores da carne.

Após confirmados os casos, o Brasil suspendeu voluntariamente as exportações de carne bovina para a China, maior comprador do item.

De acordo com dados da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), entre janeiro e setembro de 2021, por exemplo, os chineses foram responsáveis por 50% das exportações de carne bovina. Isso equivale a 1,27 milhão de toneladas. O valor de setembro é ainda mais expressivo: o país asiático importou 60,2% da produção de carne bovina do Brasil.

No início de outubro, relatório da Organização Mundial da Saúde Animal, conhecida pela sigla OIE, descartou risco de proliferação da doença ou risco de contaminação para os consumidores. Após as investigações, a OIE também manteve o status do Brasil de “país com risco insignificante para a Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB)”, nome científico da doença.

Com o aval da OIE, a expectativa das autoridades brasileiras era de que a China logo retomasse as compras, o que não ocorreu. Nesse ínterim, o Brasil chegou a embarcar 100 mil toneladas de carne com certificação sanitária anterior à suspensão do comércio, mas a carga foi recusada pela China. A informação é de que o produto ficou parado na alfândega.

Em razão do veto da China, o Ministério da Agricultura autorizou frigoríficos a estocar os produtos anteriores ao embargo em contêineres refrigerados pelo prazo de 60 dias. Até então, carne só podia ser armazenada em câmaras frias. O governo brasileiro também orientou os frigoríficos a venderem a carne bovina ao mercado interno.

Estratégia comercial, retaliação política, estoques cheios?

Para a maior parte dos especialistas, a demora da China em retomar as compras de carne do Brasil se deve ao fato de que o país é mais pragmático e atento à segurança sanitária, mesmo que órgãos internacionais já tenham dado aval para as exportações brasileiras.

“Do ponto de vista sanitário, não há mais nada que justifique a continuidade desse embargo. Tudo terminou quando a OIE deu o caso como encerrado e manteve o status brasileiro como risco insignificante para a propagação da doença”, diz Iglesias, da Safras & Mercado.

“A China viu que esse fenômeno já foi investigado, e ela quer ganhar tempo também para avaliar se isso de fato foi um caso esporádico ou se vão aparecer outros. Se ela retoma imediatamente, toma o risco de haver algum problema sanitário presente na carne e também de perder uma oportunidade de negociar questões comerciais que são relevantes, dado o fato que ela compra em grandes quantidades”, afirma Braz, do Ibre/FGV.

O recuo chinês significa, para muitos, uma estratégia comercial do país asiático a fim de negociar valores mais baixos para a carne. “A China tenta reduzir preço da proteína animal ao longo deste ano, e esse caso atípico de vaca louca caiu como uma luva”, diz Iglesias.

Há quem acredite, ainda, que a demora para a retomada decorra da crise diplomática entre os dois países iniciada na pandemia de Covid-19. A manutenção do embargo seria, assim, uma retaliação política ao governo brasileiro.

Outro motivo para a lentidão na retomada pode ser o fato de que a China importou muita carne nos últimos meses e, por isso, está abastecida, com estoque da proteína animal. “O silêncio do país não permite tirar nenhuma conclusão”, diz Jessica Olivier, da Scot Consultoria.

Impasse pode aliviar preço, mas tem reflexos negativos para a produção

Ao mesmo tempo em que pode levar a uma queda de preços no mercado interno, beneficiando o consumidor e aliviando a pressão sobre a inflação, o impasse entre China e Brasil prejudica a pecuária e pode ter reflexos negativos sobre a economia no médio e longo prazo.

A exportação de carne bovina caiu pela metade em outubro. Em termos de arrecadação, computa-se uma perda de cerca de US$ 500 milhões.

“Os pecuaristas e a indústria sofrem muito com a situação. Para o pecuarista, a arroba do boi gordo caiu de R$ 300 para menos de R$ 250. Os prejuízos geram efeitos de médio e longo prazo, pois a agropecuária é uma atividade de longo prazo. Teremos consequências nos próximos dois ou três anos”, diz o analista da Safras & Mercado.

“A cada dia sem a retomada da compra da China, pior se torna o quadro, mais pressionado fica o mercado. O pecuarista não tem capacidade de manter o animal no confinamento, já que o custo da nutrição é muito alto, da mesma maneira que a indústria tem câmaras frias lotadas, está com estoques abarrotados de carne e precisa dar vazão ao estoque. Estoque parado também é custo para a indústria”, diz Iglesias.

Braz, do Ibre/FGV, diz que a suspensão dessas exportações pode afetar a taxa de câmbio. “À medida que exportamos, a entrada de dólares é favorável à estabilidade do câmbio. E o ambiente doméstico, com incertezas quanto à dívida pública e medidas recentes do governo em expandir o teto de gastos, agrava ainda mais a questão cambial”, afirma.

Expectativa de retomada

Até a manhã desta terça-feira (26), não havia informação sobre a retomada das relações comerciais entre os dois países. Alguns especialistas, porém, acreditam que o cenário melhore até o fim do mês.

A ministra Tereza Cristina chegou a enviar uma carta à China informando que estava à disposição para ir pessoalmente ao país a fim de resolver o impasse. Mas segundo interlocutores, a titular da pasta decidiu permanecer no Brasil diante da expectativa de retomada das compras chinesas.

“Essa questão com a China não vai durar pra sempre. Ela quer aumentar o poder de barganha, e deve retomar quando conseguir melhores condições”, diz Braz. “Na minha opinião, o país não vai abrir mão da carne brasileira. Por um lado, pela necessidade e, por outro, pela qualidade do produto do Brasil.”

Segundo informou o Itamaraty na última semana, após reunião virtual entre o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, e o ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, o assunto será “resolvido rapidamente”.

“Existe uma expectativa de que possivelmente a China retome as compras em novembro, pensando nas comemorações do ano-novo lunar do país, que ocorre em fevereiro. Ela costuma se preparar para o feriado de maior demanda fazendo estoque”, diz Iglesias.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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