O Congresso deve analisar nesta semana os seis vetos do presidente Jair Bolsonaro à lei que estabelece a quebra temporária de patentes de vacinas e insumos em períodos de emergência de saúde nacional ou internacional, como a pandemia de Covid-19. A pauta coloca em debate o barateamento potencial de remédios e imunizantes sob o argumento de preservar vidas ao custo de atentar contra o direito à propriedade intelectual e o respeito a tratados internacionais.
Ao todo, o Congresso agendou para esta segunda-feira (27) a análise dos vetos presidenciais a 36 propostas. Os vetos serão analisados primeiro pelos deputados, a partir das 10h, e mais tarde, a partir das 16h, pelos senadores. A análise dos vetos ao projeto de quebra de patentes consta da pauta oficial desta segunda, mas pode ficar apenas para quinta-feira (30) devido a um acordo fechado entre os líderes na última sexta (24).
A Lei 14.200 foi parcialmente sancionada por Bolsonaro em 2 de setembro e passou a vigorar no dia seguinte, após publicação oficial no Diário Oficial da União. Foram vetados seis pontos que obrigavam o proprietário da patente a efetuar a transferência de conhecimento e a fornecer os insumos de medicamentos e vacinas.
Entidades e parlamentares defensores ao restabelecimento dos pontos vetados – ou seja, favoráveis à derrubada dos vetos – defendem que os pontos rejeitados por Bolsonaro podem ampliar a oferta de vacinas e baratear medicamentos utilizados para a recuperação de pacientes via produção e aquisição de genéricos.
Por outro lado, as entidades e parlamentares que defendem a manutenção dos vetos apontam para os riscos da não preservação da propriedade intelectual e até econômicos de se derrubar os pontos rejeitados por Bolsonaro. O apoio aos vetos levou até mesmo o Parlamento Europeu – o Congresso da União Europeia – a enviar cartas aos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O apelo foi protocolado na quinta-feira (23).
O que está por trás do apoio do Parlamento Europeu aos vetos
A preocupação do Parlamento Europeu atende, naturalmente, a um interesse de seus membros, que, por sua vez, correspondem a interesses econômicos de empresas do Velho Continente. A Gazeta do Povo foi informada que a carta encaminhada a Lira e Pacheco é assinada por 12 integrantes de cinco nacionalidades: Itália, Espanha, Portugal, Eslovênia e Eslováquia.
Os autores são de membros da direita e da esquerda política do Parlamento Europeu que ficaram preocupados com o desenvolvimento econômico, sobretudo das indústrias europeias e principalmente do setor farmacêutico. A Gazeta do Povo foi informada que a anglo-sueca AstraZeneca é uma das empresas que pressionou os congressistas europeus a apelarem ao Congresso Nacional.
A vacina Oxford/AstraZeneca já é produzida no Brasil em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na prática, a lei parcialmente sancionada por Bolsonaro retiraria temporariamente de empresas farmacêuticas como a AstraZeneca os direitos de produção e comercialização com exclusividade de vacinas e medicamentos.
O problema alertado pelo Parlamento Europeu não é a quebra de patentes em si, mas o risco de derrubada dos vetos, que obrigaria as indústrias e empresas europeias que inovam e criam tecnologias a serem obrigadas a fornecer todas as informações para que empresas brasileiras possam reproduzir sua propriedade intelectual.
Para muitas indústrias e empresas no mundo, a propriedade intelectual é um ativo muito importante por ser a principal forma de desenvolvimento e valorização de empresas como as gigantes farmacêuticas. Na prática, o que essas companhias alegam é o risco de desestimular o desenvolvimento científico, o que, por consequência, pode gerar impactos à economia.
O que dizem os trechos vetados e quais as justificativas de Bolsonaro
O primeiro trecho vetado por Bolsonaro expressa que o “titular da patente ou do pedido de patente objeto de licença compulsória” deve “fornecer as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução” do medicamento ou insumo, “assim como os resultados de testes e outros dados necessários à concessão de seu registro pelas autoridades competentes”.
O segundo previa que, caso houvesse “material biológico essencial à realização prática do objeto protegido pela patente ou pelo pedido de patente”, o titular deveria “fornecer tal material ao licenciado”. Ambos os trechos foram vetados por Bolsonaro sob a justificativa de “trazer caos ao sistema patentário nacional”.
Sob aconselhamento técnico do governo, Bolsonaro entendeu que os trechos poderiam “suscitar conflitos com as indústrias farmacêutica e farmoquímica”. “Destaca-se, ainda, que o know how é de titularidade exclusiva da empresa, a qual terá a prerrogativa de licenciá-lo ou não”, justificou.
Também foi vetado um trecho que previa que a licença compulsória poderia ser concedida em lei, fato que levou Bolsonaro a rejeitar sob a justificativa de que “incorreria na inobservância ao devido processo administrativo”. Outro ponto vetado previa que a emergência em saúde pública de importância nacional (Espin) “declarada em decorrência da infecção humana” pela Covid-19 “caracteriza-se como emergência nacional nos termos da Lei de Propriedade Industrial”.
Bolsonaro vetou sob a justificativa de que é “desnecessário ratificar em lei que a declaração de emergência em saúde pública de importância nacional relacionada ao coronavírus configura hipótese que autoriza o acionamento da Lei de Propriedade Industrial”. “Pois poderia ensejar o entendimento de que todas as hipóteses previstas naquele dispositivo deveriam ser declaradas em lei para que o licenciamento compulsório fosse validado”, complementou.
Quais os riscos da derrubada dos vetos com a quebra de patentes
Empresas multinacionais e até nacionais estão atentas e preocupadas com a discussão dos vetos à lei de quebra de patentes. A leitura feita por essas companhias é de que os trechos rejeitados por Bolsonaro serão derrubados pelo Congresso.
Anteriormente, elas atuaram junto ao presidente da República e seus ministros para convencê-los dos riscos de uma transferência compulsória de informações para a reprodução de vacinas e medicamentos, que incluiria segredos científicos.
O discurso apresentado ao governo é de que a sanção da lei como foi aprovada no Congresso colocaria em risco o estímulo de empresas se instalarem no mercado brasileiro. Companhias comunicaram auxiliares de Bolsonaro sobre a possibilidade de o Brasil lidar com a fuga de capital intelectual e registro de patentes.
O argumento de dar segurança jurídica à propriedade intelectual e estimular as empresas brasileiras a registrarem patentes e reterem suas inovações e capital intelectual em solo brasileiro convenceram Bolsonaro. Não apenas pela pressão exercida por empresas farmacêuticas, mas, também, do agronegócio.
Embora a lei parcialmente sancionada preveja normas para a quebra temporária de patentes de vacinas e insumos em períodos de pandemia, o governo foi alertado para os riscos à insegurança jurídica do direito à propriedade intelectual à atividade econômica como um todo. Entidades do agronegócio se juntaram às farmacêuticas para atuar junto ao governo e mitigar os danos aos negócios.
A Crop Life Brasil, associação que reúne empresas das áreas de produção agrícola sustentável, biotecnologia, defensivos químicos e produtos biológicos, e outras sete entidades – incluindo a Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI) – assinam uma carta que foi enviada ao Congresso defendendo a manutenção dos vetos.
As entidades destacam que os vetos de Bolsonaro “mantêm a legislação em harmonia aos ditames constitucionais vigentes e cumprem dispositivos dos Tratados Internacionais adotados” e que, “passados mais de 18 meses do surgimento da Covid-19, não se tem qualquer notícia de que houve concessão de licença compulsória para o combate da atual pandemia em nenhum país do mundo”. “O Brasil, felizmente, já vacinou 88% da população com a 1º dose e caminha rapidamente para alcançar níveis de total imunização”, afirmam no texto.
As associações sustentam, ainda, que “produtos de alta complexidade tecnológica não são facilmente desenvolvidos, tampouco replicados” e ressaltam que os produtos são “resultantes de longos processos de pesquisa e emprego de diferentes recursos, incluindo recursos humanos”. Também enfatizam que “não há ambiente favorável a investimentos em inovação por qualquer empresa, qualquer que seja o setor econômico, sem um sistema de propriedade intelectual equilibrado e juridicamente estável”.
Quais os argumentos de quem defende a derrubada dos vetos
O convencimento pela derrubada dos vetos é capitaneado pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, composto por entidades e especialistas em saúde, como a organização não governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras. Em nota, esse grupo alega que os vetos de Bolsonaro impedem o país de reduzir seus custos com medicamentos em até 80%.
Esse grupo defende que a derrubada dos vetos pode reduzir custos de remédios utilizados em outros países na recuperação de pacientes. Os medicamentos apontados têm a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) por não terem recebido a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o uso contra a Covid-19.
Um dos medicamentos apontados é o Tocilizumabe, que é usado na rede privada de saúde para a recuperação de pacientes. O grupo informa que, no Brasil, o custo desse remédio chega a superar R$ 6 mil, enquanto versões genéricas têm custo equivalente a 1/80 do preço de referência (R$ 3.203). O medicamento reduz em 40% o risco de morte em pacientes graves e foi aprovado pela Anvisa.
“Se Bolsonaro não tivesse feito vetos, a nova lei permitiria que os fármacos genéricos já em produção no exterior pudessem ser adquiridos no Brasil com rapidez e usados pelo SUS após aprovação da Anvisa e incorporação pela Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS]”, reforça nota do grupo divulgada pela revista “Carta Capital”.
Em nota publicada pelo site “Metrópoles”, o grupo diz que a derrubada dos vetos permitirá “que o país tenha mais ofertas de vacinas e possa adquirir genéricos, a preços menores, de medicações de alto custo que têm sido usadas para tratar os pacientes graves de Covid-19”.
Quem também se manifestou favoravelmente à quebra de patentes foi o Vaticano, que, em junho, defendeu o direito universal às vacinas contra a Covid-19. O documento foi uma resposta a uma carta que a Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado havia enviado ao papa Francisco, em que os senadores pediam que o pontífice intercedesse pelo povo brasileiro.VEJA TAMBÉM:
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Quais as chances de os vetos de Bolsonaro serem derrubados
Apesar dos esforços de multinacionais e nacionais brasileiras em manter os vetos, são altas as chances de derrubada dos trechos rejeitados por Bolsonaro. O retrospecto do placar de aprovação da legislação ainda na forma do Projeto de Lei (PL) 12/2021, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), é um sinal disso.
O texto foi aprovado pela primeira vez no Senado por 55 votos a 19, em abril. Enviado à Câmara, foi aprovado por 425 votos a 15 em julho. Por ter sido modificado pelos deputados federais, o texto retornou ao Senado e foi aprovado por uma margem ainda maior, 61 a 13, em agosto.
Para que um voto presidencial seja derrubado basta a maioria absoluta dos votos de deputados e senadores, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores, computados separadamente. Se os votos pró-derrubada não alcançarem essas marcas em uma das casas, o veto presidencial é mantido.
O clima no Congresso é favorável à derrubada dos vetos nas duas Casas. Na Câmara, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual calcula ter o apoio de 19 dos 25 partidos, segundo o site “Metrópoles”. A votação dos vetos da lei à lei de quebra de patentes estava prevista para esta segunda-feira, e ainda consta da agenda oficial, mas a análise foi adiado para a quinta-feira (30) após reunião de líderes na sexta-feira (24).
“Foi combinado e com anuência de todos os demais que essa matéria vai ser apreciada só na sessão de quinta-feira. Não será nesta segunda, até porque existe possibilidade de entendimento por parte das lideranças do Congresso junto com o governo federal, através da chefia da Casa Civil, de poder entender e pactuar a derrubada do veto em três artigos”, afirma à Gazeta do Povo o líder do PSD no Senado, Nelsinho Trad (MS).
Os vetos de Bolsonaro que expressam o fornecimento compulsório de informações e materiais biológicos estão entre os três trechos que o Congresso busca negociar com o governo, mas alguns parlamentares acreditam ter maioria para derrubar mesmo sem a anuência do Palácio do Planalto.
“A questão da transferência biológica é algo que nos é mais caro. Se, através desse entendimento, encontrarmos um caminho para poder pactuar com a Casa Civil, eu tenho a convicção de que, daí, sairá um bom entendimento e o projeto conseguirá atingir o seu objetivo”, destaca Trad, que foi relator do PL 12/21.
Apesar de pressões de entidades e do Parlamento Europeu, o senador mantém posicionamento favorável ao restabelecimento dos pontos vetados. “É mais do que natural e isso foi desde sua concepção, que os países ricos, aqueles que detêm as tecnologias e vacinas para todo mundo, são contra esse projeto, ao passo que aqueles que estão mais necessitados, que precisam da vacina, os denominados países em desenvolvimento, países pobres, eles são a favor. É uma luta do lado econômico com o lado da vida. Eu prefiro ficar do lado da vida”, diz Trad.
O que diz a minoria que defende os vetos da lei de quebra de patentes
Os defensores da manutenção do veto formam uma minoria que promete lutar pelo direito à propriedade intelectual e o desenvolvimento científico e econômico até o último instante. A defesa é feita majoritariamente por parlamentares liberais da centro-esquerda à direita.
O deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) é um dos que votou contra o projeto e pretende manter seu voto por entender que o direito de propriedade é uma forma de proteger o mercado e o consumidor com o estímulo à inovação.
“Precisamos reconhecer como as patentes, acordos de licenciamento, processos transparentes de revisão regulatória, formas de proteção às boas ideias e a propriedade intelectual estão permitindo a rápida transferência de conhecimento dessas descobertas para pesquisadores e inovadores em todos os lugares”, defende Rigoni.
O líder do Novo na Câmara, Paulo Ganime (RJ), é outro defensor da permanência dos vetos. “Forçar a transferência de tecnologia negaria aos inovadores a certeza e a previsibilidade necessárias para investir com confiança e acelerar o lançamento de novos produtos no Brasil”, pondera.
O deputado Marcel van Hattem reforça. “Nós entendemos que a propriedade intelectual, como qualquer outra propriedade, precisa ser respeitada. A inovação precisa chegar ao maior número de pessoas e só vai chegar se os que criam tiverem seus diretos resguardados”, sustenta.
Os três deputados são membros da Frente Parlamentar pelo Livre Mercado, que questiona o populismo defendido pelos favoráveis à derrubada dos vetos em detrimento do desenvolvimento econômico, científico e intelectual.
“O veto à lei proporcionou uma nova oportunidade de reflexão sobre o assunto, ainda em tempo de salvar o direito a propriedade no Brasil. Acompanhamos de perto as negociações para que o Congresso não derrube o veto, garantindo o direito dos desenvolvedores e protegendo a economia do país”, informa a bancada temática
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