O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomará, nesta quarta-feira (1º), o julgamento que poderá manter, ou não, a validade do chamado “marco temporal” para demarcação de terras indígenas. Trata-se de um critério, inspirado numa decisão de 2009 do próprio tribunal, que garante aos índios a posse das áreas que ocupavam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição.
A discussão opõe grupos indígenas a produtores rurais, que defendem o atual entendimento, que restringe os territórios passíveis de demarcação. E tem potencial para acirrar ainda mais a crise política entre o presidente Jair Bolsonaro e os ministros do Supremo. O presidente é favorável ao marco temporal e diz que uma mudança nesse critério pode “inviabilizar o nosso agronegócio”.
Em maio, o relator do caso no STF, Edson Fachin, proferiu uma liminar suspendendo todos os processos na Justiça envolvendo demarcações que envolvessem a questão. Eram ao menos 82 disputas judiciais sobre terras que discutiam se elas eram ou não “tradicionalmente” ocupadas pelos índios, como exige o texto constitucional, que não fornece maiores detalhes sobre os critérios de aferição do tempo dessa ocupação.
A suspensão interrompeu o andamento de ações de reintegração de posse que haviam sido determinadas pela Justiça, porque, segundo Fachin, elas poderiam levar tribos inteiras para a beira de estradas, num grave momento da pandemia de Covid-19. Entidades de defesa dos direitos indígenas calculam que mais de 300 áreas em processo de demarcação, em âmbito administrativo, ainda podem ser afetadas pela decisão da Corte.
O caso em análise pelo STF envolve a reserva indígena de Ibirama-La Klanõ, localizada numa parte da reserva biológica do Sassafrás e cuja área, de 37.108 hectares, é reivindicada pelo estado de Santa Catarina. A Fundação Nacional do Índio (Funai), que atua em favor da tribo, diz que em 2003 o Ministério da Justiça reconheceu que a região era ocupada tradicionalmente pelos índios.
A Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma), vinculada ao governo catarinense, alega ser possuidora do imóvel, com base em registro de cartório. Diz que a área foi invadida em 2009 por cerca de 100 índios que começaram a devastar a reserva, que é de proteção ambiental.
Relator votou contra marco temporal
A decisão a ser tomada pelo STF, no entanto, tem repercussão geral e servirá de parâmetro para todas as áreas em disputa, principalmente aquelas reivindicadas por produtores rurais, os maiores interessados.
No início de junho, Fachin levou o processo para julgamento virtual e adiantou seu entendimento: considerou que o marco temporal não é um critério válido, porque muitas tribos foram expulsas de territórios que ocupavam e não teriam meios para comprovar que lá estavam mais de três décadas atrás. O “elemento fundamental” para a demarcação, para o ministro, deve ser um laudo antropológico da Funai, que demonstraria ou não a “tradicionalidade” daquela ocupação.
A garantia de posse de determinada área pelos índios também exigiria, segundo o ministro, que ela seja habitada em “caráter permanente” e utilizada para suas “atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recurso ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural”. De posse daquela terra, eles teriam o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes”.
A demarcação poderia ser feita mesmo contra registros civis que davam a posse a particulares ou a entes estatais — sem direito a indenização, exceto para benfeitorias feitas de boa-fé — e poderia até mesmo redimensionar uma área, de modo a estender aos índios sua posse, desde que configurada a ocupação tradicional.
No mesmo dia em que Fachin proferiu esse voto, numa sessão virtual, o ministro Alexandre de Moraes interrompeu o julgamento, para discutir o tema no plenário físico do tribunal. O plenário analisaria o caso no dia 30 de junho, mas houve novo adiamento, para agosto. Na última quinta-feira (26), o julgamento foi retomado, com o voto do relatório da ação, que apenas resume a controvérsia.
Na sessão desta quarta falarão advogados das partes e representantes de mais de 30 entidades que pediram para participar do julgamento como “amicus curiae” (amigos da Corte), terceiros interessados que incluem associações ligadas aos indígenas e entidades representativas do agronegócio, principalmente.
Nos últimos meses, mais de uma centena de organizações, dos dois segmentos, enviaram dezenas de manifestações para os ministros.
Os produtores rurais dizem basicamente que o fim do marco temporal — estabelecido pelo próprio STF, no julgamento em 2009 da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, como uma das condicionantes para a demarcação — representaria o fim da segurança jurídica, afetando o processo de regularização fundiária e prejudicando a produção agrícola do país.
Apoiados por ONGs e instituições humanitárias, bem como de boa parte do Ministério Público Federal, os indígenas alegam direito à sobrevivência, sobretudo em razão de constantes conflitos com produtores pela ocupação da terra. Desde a semana passada, cerca de 6 mil indígenas estão acampados na Esplanada dos Ministérios à espera desse julgamento — um telão foi instalado em frente ao STF para acompanhar cada detalhe da sessão.VEJA TAMBÉM:
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O que Bolsonaro pensa a respeito do julgamento
O presidente Jair Bolsonaro disse, no último sábado (28) que, se o STF acabar com o marco temporal, vai tomar uma decisão contrária que “interessa ao povo brasileiro”. Segundo ele, o fim do critério poderia dar aos índios, além dos 14% do território brasileiro já demarcado, uma área equivalente a toda a região Sul do país.
“Seria um caos para o Brasil e também uma grande perda para o mundo. Essas terras que hoje são produtivas poderiam deixar de ser produtivas. E outras reservas, pela combinação geográfica das mesmas, poderiam inviabilizar outras áreas produtivas”, afirmou o presidente, numa entrevista ao Canal Rural, no último dia 20.
A pressão sobre os ministros, de ambos os lados, e o temor de que Bolsonaro transforme uma decisão contrária ao agro numa nova frente de embate com o Supremo, pode levar um dos integrantes da Corte a pedir vista e adiar uma decisão definitiva sobre o assunto. Isso também pode ocorrer porque o Congresso também discute o tema e há ministros que preferem deixar a regulamentação para o Legislativo. Na Câmara e no Senado, a expectativa é que a bancada ruralista vença no voto a oposição, que, em sua maior parte, defende os direitos indígenas.
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