O Talibã – e agora?

Para compreender o que muda com a ascensão do Talibã ao poder, eu conversei com Igor Sabino, que é bacharel e mestre em Relações Internacionais (UEPB) e doutorando em Ciência Política (UFPE). Igor escreveu o excelente livro Por Amor Aos Patriarcas: reflexões brasileiras sobre e antissemitismo e sionismo cristãos e é líder do Philos Brasil. Um dos destaques das preocupações de Igor diz respeito à situação dos cristãos no Afeganistão.

Você poderia fazer um resumo do que afinal está acontecendo no Afeganistão?

Para compreendermos o que está acontecendo agora no Afeganistão é preciso retroceder cerca de 20 anos na história, ao fatídico 11 de setembro de 2001. Os atentados terroristas no World Trade Center, em Nova York, deram início a uma nova fase não apenas na política externa dos EUA, mas nas relações internacionais como um todo. Teve início a chamada “Guerra ao Terror” e foi posta em xeque a supremacia americana no mundo pós-Guerra Fria. Como consequência dos ataques, os EUA decidiram intervir no Afeganistão em outubro daquele mesmo ano a fim de capturar Osama Bin Laden e destruir a Al-Qaeda, organização terrorista responsável pelos atentados. Para isso, porém, seria necessário enfrentar também o Talibã, grupo radical islâmico que governava o Afeganistão desde a década de 1980 após a expulsão dos soviéticos, e era aliado de Bin Laden.

O mais irônico é que foram os próprios americanos que armaram os talibãs e os ajudaram a chegar ao poder a fim de enfraquecer a ex-URSS. O fato é que, em 2001, os EUA pensavam que sua presença no Afeganistão seria breve. Porém, os desafios encontrados foram muito mais amplos, requerendo uma estratégia de “construção nacional” (em inglês, state building), para a qual eles não estavam preparados. Ademais, por vários motivos, não seria possível “exportar” os ideais americanos de democracia e livre mercado, como alguns tomadores de decisão esperavam. Com o passar do tempo, os muitos gastos militares e o grande número de baixas, o apoio civil americano ao conflito diminuiu, levando todos os presidentes que seguiram George W. Bush a tentar negociar a retirada das tropas do Afeganistão.

“O Talibã faz parte de um fenômeno chamado de ‘Islã Político’, uma ideologia política baseada em elementos islâmicos que pode tanto ser violenta e usar a força para chegar ao poder ou, como no caso da Irmandade Muçulmana, no Egito, usar vias democráticas.”

Igor Sabino

O primeiro a tentar fazer isso foi Barack Obama, responsável pela saída dos EUA do Iraque, em 2011. O país havia sido invadido em 2003, também na esteira da Guerra ao Terror, e também foi um fracasso militar, resultando na ascensão do Estado Islâmico em 2014. Isso fez com que o próprio Obama e, em seguida, Trump tivessem mais cautela em relação ao Afeganistão, buscando fazer acordos de paz com o Talibã e diminuindo aos poucos a presença americana no país. Ano passado, Trump fechou um acordo com os terroristas e diminuiu para 2,5 mil o número de soldados, afirmando que o governo afegão local já havia recebido dos americanos treinamento suficiente para lidar com os terroristas. Devido aos riscos de que o Talibã pudesse conquistar o país, como estamos vendo acontecer, muitos analistas acreditavam que Biden não daria continuidade ao plano de Trump, principalmente devido aos baixos custos da manutenção das tropas. O atual presidente dos EUA, porém, afirmou que tinha evidências de que era seguro e necessário retirar as tropas. Porém, tudo o que ele disse que não aconteceria; ocorreu exatamente de maneira oposta poucos dias depois do anúncio da retirada. Inclusive, foi necessário enviar um número adicional de 7 mil soldados apenas para evacuar os diplomatas americanos que estavam no Afeganistão.

Quem é o Talibã e qual a relação com o Islã?

O Talibã é um grupo radical islâmico sunita, ou seja, tem uma interpretação bastante específica da fé islâmica e busca impô-la sobre todos os que estão debaixo de seu domínio, apresentando-a como a única visão correta do Islã. Uma característica importante do Talibã, que o diferencia do Estado Islâmico e da Al-Qaeda (embora coopere com eles), por exemplo, é o fato de sua atuação estar restrita principalmente ao Afeganistão e ao Paquistão, sendo formado principalmente por indivíduos da etnia pashtun. Isso significa que questões étnicas e culturais também influenciam a atuação do grupo.

Nesse sentido, é importante ressaltar que o Islã é uma religião praticada por mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo inteiro. Logo, não é uma religião monolítica, tendo várias correntes e possibilidades de interpretação. Sem falar que o Talibã faz parte de um fenômeno chamado de “Islã Político”. Ou seja, uma ideologia política baseada em elementos islâmicos que pode tanto ser violenta e usar a força para chegar ao poder ou, como no caso da Irmandade Muçulmana, no Egito, usar vias democráticas, ainda que, no geral, seus valores se choquem com muitas noções ocidentais de igualdade, liberdade e direitos humanos. No caso de grupos como Talibã, Estado Islâmico e Al-Qaeda, sua visão de mundo totalitária advém de interpretações de escritos sobre a vida do profeta Maomé durante o século 6.º d.C., não necessariamente do Alcorão, o qual, como qualquer livro sagrado, possui várias possibilidades de interpretação, cabendo apenas aos seus seguidores definir quais são corretas e quais devem ser rejeitadas.VEJA TAMBÉM:

Como fica a situação dos cristãos, com o novo governo extremista?

Diferentemente do Iraque, onde havia uma população expressiva de cristãos nativos que foi diretamente afetada pela invasão dos EUA em 2003 e pela ascensão do Estado Islâmico, em 2014, o número de cristãos no Afeganistão já era reduzido. Isso porque, conforme mencionado anteriormente, desde os anos 1980 o Talibã controlava o país, impondo um regime totalitário islâmico, onde a liberdade religiosa era inexistente. De acordo com o último relatório da US Commission for Religious Freedom (USCIRF), o órgão dos EUA para liberdade religiosa, em 2020 a população afegã era 99,7% muçulmana (com 84,7 a 89,7% de sunitas e 10% a 15% de xiitas). O outro 0,3% é composto por hindus, sikhs, baha’is, cristãos, budistas, zoroastras e um único judeu – o qual, inclusive, já afirmou que não deixará o país mesmo agora que o Talibã retornou ao poder. A maioria dos cristãos é formada por ex-muçulmanos que foram evangelizados por missionários ocidentais quando os EUA ainda estavam no país e vivem em segredo, nas chamadas igrejas subterrâneas. Muitos deles já receberam ameaças do Talibã e não têm para onde ir, já que as fronteiras estão fechadas e não existe mais uma embaixada dos EUA onde eles poderiam requerer refúgio.

E suas preocupações com relação aos refugiados?

O problema dos refugiados afegãos, infelizmente, é antigo. Assim como no caso dos iraquianos, intensificou-se principalmente depois das intervenções militares dos EUA. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), há cerca de 3,5 milhões de deslocados forçados afegãos, 2 milhões deles já com status de refugiados; 90% encontram-se nos vizinhos Irã e Paquistão.

Desde janeiro, porém, cerca de 230 mil pessoas já se tornaram refugiadas. O Acnur estima que esses números possam aumentar ainda mais, agora que os EUA retiraram as tropas do Afeganistão. Essa previsão é confirmada pelas imagens de milhares de pessoas desesperadas no aeroporto de Cabul, agarrando-se a aeronaves em movimento para fugir. O grande questionamento é: quais países receberão esses refugiados? O Canadá afirmou que receberá 20 mil afegãos. Nos EUA ainda se debate quantos serão aceitos.

“Como em outras crises, a maneira mais eficaz de lidar com a situação é por meio da cooperação internacional, o que, sinceramente, acho difícil de acontecer.”

Igor Sabino

Na Europa, por sua vez, Angela Merkel afirmou que a União Europeia precisa facilitar o acesso de requerentes de refúgio ao continente. Uma ação nesse sentido é importante até para evitar o fortalecimento das redes de tráfico e contrabando de seres humanos, como ocorreu em 2015, com a crise de refugiados sírios. Emmanuel Macron, porém, sinalizou que a Europa não pode lidar com isso sozinha e que precisará do apoio do Irã e da Turquia. Apoiar-se nesses países para cuidar dos refugiados é uma manobra arriscada em termos de geopolítica, pois lhes dará muito mais força de barganha em relação à Europa. Isso já acontece, por exemplo, em relação à Turquia de Erdogan. O presidente turco vive ameaçando romper o acordo firmado com a Alemanha e “inundar” a Europa com refugiados. É muito preocupante também a situação das minorias religiosas, já que tanto Irã quanto Afeganistão são países que perseguem os cristãos, forçando-os a se tornar refugiados em outros países. Eu mesmo já ajudei a reassentar no Brasil cristãos paquistaneses que sofriam ameaça de morte. Logo, a ONU precisa criar políticas específicas para as minorias religiosas, priorizando-as nas vagas de reassentamento no Ocidente.

A situação também é delicada para os afegãos que trabalharam como intérpretes para as tropas americanas. Acredito que os EUA e os membros da Otan têm uma responsabilidade internacional maior quanto a esses refugiados, devido ao seu envolvimento no conflito. Porém, como em outras crises, a maneira mais eficaz de lidar com a situação é por meio da cooperação internacional, o que, sinceramente, acho difícil de acontecer, tendo em vista o drama dos sírios, venezuelanos e outras populações forçadas a deixarem suas casas.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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