Se Andrew Cuomo fosse brasileiro, talvez o assédio sexual lhe desse a presidênciaTemos leis duras mas assediadores impunes.

O governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, renunciou após denúncias de assédio sexual contra funcionárias de seu gabinete. Falando assim, parece uma notícia qualquer e lógica. Mas é algo bem mais profundo e que nos obriga a repensar nossos preconceitos e fantasias. Individualmente, o brasileiro repudia assédio sexual. No entanto, nossos assediadores prosperam e as vítimas são esmagadas.

Andrew Cuomo não é qualquer um, é a união de duas dinastias políticas do Partido Democrata dos Estados Unidos. O pai dele, Mario Cuomo, foi governador de Nova Iorque por três mandatos. Ele é pai dos netos de Robert Kennedy, foi casado com Kerry Kennedy, estrela mundial do ativismo de Direitos Humanos. Nem isso o salvou diante de acusações ainda não julgadas de assédio. Aconteceria aqui? De jeito nenhum. A denunciante é que seria demitida.

Ah, mas as leis dos Estados Unidos são muito mais duras e a Justiça funciona. Não é o caso. Sobre assédio sexual nossas leis são bem mais duras que as deles. Infelizmente, somos uma sociedade condescendente com o assédio e assediadores. Cidadãos comuns convivem com notórios assediadores sem o menor constrangimento e não sofrem qualquer problema social por isso.

O que tende a ser um problema social enorme é denunciar assédio sexual. Duvida-se da vítima num primeiro momento e depois obviamente ela quis, é vagabunda, louca, estava mentindo, sempre inventa que foi assediada. Pessoas que presenciaram o assédio ficarão ao lado do assediador sem o menor constrangimento. Amigos e família dessas pessoas não os questionarão por isso, é muito mais fácil socialmente acobertar assediador do que denunciar.

Perguntando individualmente será quase impossível achar alguém no Brasil que minimize assédio sexual. Temos leis duras, aliás até leis novas que podem dar a brasileiros pena 3 vezes maior que a dos Estados Unidos. Ocorre que, na prática, nem governador de dinastia política se sustenta diante de assédio sexual. Aqui, até deputado filmado cometendo abuso e assédio sexual contra deputada na frente dos colegas se safa. Como enfrentar isso?

Você sabe quem é Fernando Cury? Não tem filho com sobrenome Kennedy, não é de dinastia política importante mas nem precisou pensar em renunciar por assédio sexual. Pesam contra Andrew Cuomo denúncias constituídas por relatos feitos ao Ministério Público. Pesou contra o deputado um vídeo feito pela TV Alesp em que ele planeja atacar uma colega, avisa que vai fazer, encoxa, passa a mão no peito e ainda dá risada.

O poderosíssimo Andrew Cuomo não conseguiu apoio político para manter-se no cargo após as denúncias. Ninguém tem como, a sociedade não admitiria a cumplicidade com o assédio sexual. Aqui, isso não é problema. Amiguinho de assediador é tudo gente boa. Sei que sou dura com o palavreado, mas a verdade é mais dura que minhas palavras. Pergunte a qualquer mulher que você ama e passou por isso.

Diante de um vídeo com abuso e assédio contra uma deputada, a Comissão de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo não teve o menor constrangimento ao dar punição de suspensão do mandato por 6 meses. Ou seja, ficou tudo bem manter no cargo. O Ministério Público de São Paulo não moveu um dedo. Vi até gente comentando que pelo menos puniram alguma coisa. Ou seja, toleramos e arrumamos desculpa para quem protege abusadores e assediadores sexuais.

Se os deputados da Comissão de Ética votaram dessa forma é porque sabem que jamais seriam condenados pelo eleitorado por isso. Aliás, você sabe quem foram esses deputados que absolveram o colega? A gente não fica sabendo nem o nome porque realmente não se dá toda essa importância ao fato. E estamos falando aqui de uma vítima que é poderosa, uma parlamentar. Imagine quando a mulher não tem poder.

A cobertura da imprensa sobre o assédio cometido pelo deputado Fernando Cury e a reação a ela são sintomáticas. Os órgãos de comunicação paulistas não ressaltam que colegas defendem continuidade do mandato de um assediador apelando até para a Bíblia. Tratam como se fosse positivo, ressaltando que é a primeira punição de suspensão aplicada pela Alesp. É chocante que se trate com normalidade a manutenção em posição de poder de quem comete assédio.

Fico pensando como a imprensa paulista reagiria se, em vez de apalpar a colega no meio do plenário, o deputado tivesse usado o pronome errado para falar com alguém. Se utilizasse uma expressão como “denegrir” na tribuna. Se falasse que “lugar de mulher é na cozinha”. Seria trucidado. Já sobre assédio mesmo fica difícil condenar porque quem tem telhado de vidro não joga pedra no dos outros.

Recentemente, em junho, o Ministério Público de São Paulo entrou com uma representação contra o deputado. Não era questionando a manutenção do mandato, era para saber se ele exercia ilegalmente o mandato mesmo durante o afastamento. Os promotores o denunciaram antes por crime de importunação sexual, que pode dar até 5 anos de prisão. Qual sua aposta para o resultado da demanda?

Esmiucei este caso não porque o deputado seja especialmente mau, inclusive há outros bem piores que ele. Acontece que essa é a ilustração perfeita de como a nossa sociedade é condescentente com assediadores. Pouco importa quanto poder e quantas provas tenha a mulher, não há lei que funcione quando algo não é condenado socialmente.

A maioria do povo brasileiro é conservador. Por que então admitem assédio sexual e condescendência com quem comete esse crime e seus cúmplices? Desconfio que por desconhecimento. Crimes sexuais são vistos socialmente como exacerbação da virilidade, do desejo, uma tentação que leva à loucura. Só que eles não têm nada a ver com sexo, usam esse recurso como demonstração de poder. É um ato de controle, humilhação, um atentado contra a dignidade e a honra da vítima, a violação daquilo que a ela é mais íntimo.

A imagem do assediador sexual no senso comum é de alguém louco de desejo ou paixão que perdeu a cabeça. Imagina-se que pode acontecer a qualquer um. Ocorre que não pode, não tem nada a ver com sexo, é um ato de perversidade e sadismo. Paixão e desejo demandam retribuição. Quem deseja quer ser desejado, vê o outro como ser humano digno, com sentimentos e vontade. A conquista amorosa ou sexual depende de um ato de vontade da outra pessoa.

Para o assediador, a outra pessoa não tem dignidade e sua vontade pouco importa. Aliás, há os que se deleitem com o sofrimento da vítima, que é físico e moral, envolve nojo e vergonha. É esse o desejo dos assediadores, causar o máximo de emoções terríveis na vítima, fazer com que ela sinta-se despida de dignidade, impedida de exercer a própria vontade. Não está tudo bem proteger uma pessoa assim, muito menos deixar que ela exerça poder.

Até pouco tempo, ainda fazíamos essa confusão de personalidade com os stalkers. A pessoa que persegue a outra era tratada como apaixonadíssima, tentando a felicidade, sem capacidade de fazer mal a quem idolatra. É por meio da conscientização que começamos a mudar essa realidade. Confira quais são os 5 tipos de stalkers catalogados pela criminogia e os danos objetivos que causam na vítima.

E se for uma falsa acusação de assédio sexual? Tratar esse crime como algo menor e o criminosos como alguém que não queria fazer mal mas caiu em tentação também prejudica os falsamente acusados. Não se dá a devida importância ao potencial destrutivo de um ato como esse nem à perversidade e periculosidade de quem o comete.

É preciso de apenas uma pessoa para cometer um abuso ou assédio sexual, mas são necessárias dezenas para acobertar e minimizar as consequências. Embora sejam cúmplices de um crime, não são vistas assim. São vistas como boas pessoas que acolheram alguém que caiu em tentação. Sugiro que comecemos a ver como realmente são, pessoas que compactuam com comportamentos insidiosos, perversos e sádicos e contribuem para sua perpetuação.

Muita gente reclama que agora tudo é assédio. Não pode mais nem dar uma cantada que a pessoa já se sente assediada. Como saber o limite? O limite é a consideração pela livre vontade, a dignidade e o bem estar da outra pessoa. O objetivo de uma paquera é a recíproca verdadeira. O objetivo de enfiar a mão no meio das pernas de uma colega de trabalho ou subordinada não leva em conta a vontade dela. É sadismo e perversidade, possíveis devido ao silêncio dos bons.

O problema de Andrew Cuomo é ter nascido na época e no lugar errado. Fosse décadas atrás, teria sido retratado como um “conquistador”. Fosse no Brasil, a mulher dele provavelmente o defenderia publicamente, os amigos também. Ele ganhou uma separação e ela apareceu pela primeira vez com o novo amor, mais bonito e mais novo, no dia da renúncia. Nem foto, áudio e vídeo tem. Não haveria o menor risco de ser apeado do poder no Brasil. As denunciantes provavelmente não arrumariam mais emprego com nenhum parlamentar. Ganhariam fama de vagabundas desequilibradas ou mentirosas loucas.

Aliás, se não tivesse vídeo e a vítima não fosse menor de idade, provavelmente a gente nem ficaria sabendo do assédio no Brasil. Ele seguiria uma lenda do Partido Democrata, elogiado pela atuação na pandemia e cultuando a alta linhagem familiar. Outros políticos seriam ameaçados de cassação por discursos de apologia ao assédio sexual, mas ele permaneceria intacto porque não fez apologia, só assediou. Se continuasse lacrando nas propostas identitárias e nos discursos, não duvido que nossos lacradores o fariam presidente da República.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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