Cabe ao STF julgar excessos da CPI nas quebras de sigilo, dizem juristas

CPI da Covid retoma os trabalhos nesta terça-feira (3) com dezenas de pedidos de quebra de sigilo de investigados na fila de votação.| Foto: Edison Rodrigues/Agência Senado

As quebras de sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático de investigados pela CPI da Covid vêm causando controvérsia por causa de abusos cometidos por senadores membros da comissão. Como no caso dos requerimentos apresentados que pretendem quebrar os sigilos bancários de donos de sites, de uma produtora de documentários e de um veículo oficial de imprensa: a rádio Jovem Pan.

A alegação dos senadores é de que esses canais, incluindo a rádio, disseminaram informações falsas no âmbito da pandemia. Contudo, chama a atenção a falta de fundamentação no pedido: a justificativa é genérica e replicada de pedidos anteriores, direcionados anteriormente a assessores e ex-assessores do presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos.

Frases que só se aplicam a indivíduos são usadas no requerimento para descrever empresas como a Jovem Pan e a Brasil Paralelo, com informações equivocadas, como “a pessoa contra quem se busca a quebra e a transferência de sigilo é (ou foi) assessora especial do Poder Executivo”.

Já os requerimentos que abrangem Allan dos Santos (Terça Livre), Paulo Enéas (Crítica Nacional) Raul Nascimento (Conexão Política), José Pinheiro Tolentino Filho (Jornal da Cidade), Tarsis de Sousa Gomes (Renova Mídia) e as produtoras Brasil Paralelo e Farol Produções Artísticas (Senso Incomum) têm trechos idênticos, com incorreções nas suas justificativas.

O relator da CPI da Covid, senador Renan Calheiros (MDB-AL), e o senador Humberto Costa (PT-PE) são os autores da maioria desses requerimentos de quebras de sigilo. Costa juntamente com os senadores Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Rogério Carvalho (PT-SE) foram os responsáveis por analisarem toda documentação relacionada à propagação de fake news durante o recesso parlamentar. Neste período, os integrantes da CPI se dividiram em grupos temáticos para análise de documentos.

A comissão volta a se reunir nesta terça-feira (3) após o fim do recesso parlamentar e deve começar justamente pela votação desses requerimentos, entre outros. Os senadores iriam se reunir na noite desta segunda-feira (2) para definir quais requerimentos serão colocados em votação ou não. No final de semana, Calheiros admitiu a aliados, por exemplo, ter dúvidas sobre a quebra de sigilo da rádio Jovem Pan.

Em nota, a rádio Jovem Pan informou que considera o pedido de quebra de sigilo injustificável, uma vez que os balanços da empresa são publicados anualmente no Diário Oficial e republicados no site oficial da Jovem Pan. Além disso, as verbas governamentais repassadas ao grupo também são públicas e podem ser conferidas pelo Portal da Transparência.

A rádio alega ainda não entender porque o pedido de alcance da quebra do sigilo se estende ao ano de 2018, sendo que o objetivo da CPI é “apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil.” A pandemia foi oficializada em março de 2020. Dessa maneira, não se enquadra no fato determinado para criação da comissão parlamentar.

Justificativa para quebras de sigilos deve ser clara e consistente

Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo lembram que a quebra de sigilo é um dos instrumentos mais poderosos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Entretanto, explicam, essas quebras só devem ser feitas com base em argumentações consistentes e que vão na linha das investigações do colegiado, sob risco de serem anuladas pela Justiça.

“Toda quebra de sigilo exige um fato típico (crime) sendo investigado e suspeita razoável de que a pessoa tenha participado desse fato; além de haver necessidade de autorização legal para isso. Não é medida a ser adotada em qualquer investigação, mas quando envolve volumes financeiros significativos, acaba sendo necessária”, explica Ricardo Prado, mestre em Direito Processual Penal e professor da Escola Superior do Ministério Público.

Para Marilene Matos, especialista em Direito Constitucional e integrante da Associação Brasileira de Advogados (ABA), a Constituição confere a uma CPI poderes amplos de investigação, no entanto, em situações de quebras de sigilos, as justificativas devem ter embasamento jurídico. “Toda decisão da CPI precisa ser fundamentada, não adianta fingir que está fundamentando. O grande nó desses novos pedidos de quebras de sigilos é a simples justificativa de que são propagadores de fake news. Se for só isso, eu acho que está muito genérico, não dar para afirmar”, opina.

A especialista acredita que os senadores possam ter informações sigilosas que não podem constar nos requerimentos, mas há riscos envolvidos nessa manobra. “Se esses pedidos não estiverem fundamentados e com uma justificativa plausível com o fato investigado pela CPI, eles atingiriam direitos fundamentais”, diz.

O professor Ricardo Prado afirma que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o órgão apropriado para analisar eventuais excessos cometidos pela CPI. “O Estado-Juiz pode quebrar o sigilo em determinadas hipóteses previstas expressamente em lei. A CPI possui poderes de investigação de um magistrado; mas seus excessos ou desvios podem ser objeto de revisão pelo STF”, explica.

Sobre os erros de digitação nos requerimentos, Marilene Matos acredita que isso não deve ter peso para anular as quebras que forem aprovadas. “Nos requerimentos sobre fake news houve um copia e cola, mas isso não causa nulidade. Vai caber ao Supremo analisar se essas quebras foram ou não indevidas”, afirma.

Excessos causam racha no G7 da CPI

Até o momento, a aprovação dessas novas quebras de sigilo não conta com consenso por parte dos senadores de oposição e independentes ao governo, que formam maioria na CPI. Esses senadores são intitulados de G7, mas recentemente o senador Eduardo Braga (MDB-AM), deixou o grupo por conta de divergências nas decisões.

De acordo com o emedebista, algumas ações da CPI podem extrapolar a Constituição e gerar derrotas no STF. Na última sessão do colegiado antes do recesso, Braga afirmou que era uma “temeridade” chancelar um requerimento do relator Renan Calheiros para ampliar o período de quebra dos sigilos fiscal, bancário, telefônico e telemático de todas as pessoas e empresas investigadas pela comissão.

“Nós queremos estender o efeito do requerimento [de quebra de sigilos] e não tem nenhuma fundamentação! Nós estamos na CPI da Covid-19. Em 2018, tinha Covid? Essa forma, tal qual as outras que a gente não tomou cuidado com a fundamentação, será atacada! Quando você estende o ano fiscal, precisa fundamentar”, afirmou Braga na ocasião.

Para o integrante da base governista na CPI, senador Marco Rogério (DEM-RO), a quebra de sigilo só deveria ocorrer após esgotarem-se todas as possibilidades de investigação, incluindo as oitivas realizadas no Senado. “Infelizmente, o que eu observo é que a quebra de sigilo tem servido como propósito de bisbilhotagem na vida pessoal, profissional ou política das pessoas”, afirmou em declaração à CNN Brasil.

Quebras de sigilo pela CPI sem justificativa legal podem anular provas

Segundo o professor Ricardo Prado, caso o STF entenda que as quebras ocorreram sem justificativa legal, as provas colhidas pela CPI poderão ser anuladas e não serão aproveitadas pelo Ministério Público Federal (MPF) em eventuais denúncias no futuro. “Se a quebra de sigilo for indevida, fora das hipóteses legais, pode levar à invalidade das provas, especialmente àquelas que decorreram da quebra do sigilo”, explica Prado.

Mas Marilene Matos lembra que, além de investigativa, a CPI é uma ação política. “A gente não pode esquecer que a CPI é um processo mais político, então mesmo que [a prova] seja anulada, a finalidade política poderá ter sido alcançada”, completa.

PGR quer uniformização das decisões por parte do STF 

A Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu para que o STF uniformize as decisões a respeito das quebras de sigilo decretadas pela CPI da Covid. A PGR aponta uma “instabilidade” gerada pelas decisões judiciais divergentes sobre o tema e quer uma análise do pedido pelo plenário da Corte.

A manifestação, assinada pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, foi feita no caso da ex-diretora do Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde Francieli Fantinato, que teve o pedido para suspender as quebras de sigilo determinadas pela CPI negado pelo ministro Alexandre de Moraes. O vice-procurador cita as diferentes decisões tomadas pelo Supremo com relação às quebras de sigilo, adotadas por oito diferentes relatores.

Até o momento, a Corte adotou a regra da livre distribuição dos pedidos de testemunhas e investigados por sorteio entre todos os ministros, excluindo o presidente, conforme já ocorreu em outras CPIs. No caso de Fantinato, a própria CPI já determinou a suspensão da quebra de sigilo.

No dia 8 de julho, a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), no exercício da presidência da CPI, transformou a ex-coordenadora do PNI em testemunha. Até então, a ex-servidora da Saúde prestava esclarecimentos na condição de investigada.

“A substituição da condição de investigada para testemunha, portanto, decorrente desta decisão, ficam suspensos os efeitos das quebras de sigilo”, destacou a senadora na ocasião.

Para a PGR, “é possível identificar a oscilação de interpretação do requisito da causa provável pela adequada fundamentação para afastar do sigilo pessoal”. “Assim, com vistas a sanar esse quadro de instabilidade gerado pelas decisões judiciais divergentes e objetivando garantir a segurança jurídica e a jurisprudência uniforme desse Supremo Tribunal Federal, o debate em questão deve ser solucionado pelo órgão colegiado dessa Suprema Corte”.

De acordo com Medeiros, uma decisão do plenário permitirá a homogeneização das premissas para deferimento de afastamentos de sigilos. O recurso não tem data para ser analisado pelo plenário do STF.

Dados do STF, atualizados até o último dia 18 de junho, mostram que dos 14 recursos impetrados na Corte para suspensão das quebras de sigilos feitas pela CPI, somente quatro foram deferidos. Nestes casos, os ministros relatores entenderam que não havia embasamento para que os sigilos fossem quebrados.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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