Inflação desconfortável pode custar caro para ser controlada. Mas o governo ganha

A inflação acelerou no primeiro semestre e atinge agora o que deve ser seu pico, passando dos 8% ao ano. O custo desse surto pós-pandemia para a sociedade vai ficar mais claro nos próximos meses e pode ser maior do que se imagina. Para o governo, no entanto, a inflação vem em boa hora.

Governos normalmente ganham com surtos inflacionários porque eles servem para ajustar as contas públicas. Inflação leva a um crescimento nominal das receitas e, se os gastos não têm ajustes automáticos no mesmo ritmo, cria-se uma folga fiscal. É o que está acontecendo no cenário 2021-2022.

É verdade que as receitas do governo estão sendo influenciadas por outros fatores, entre eles o ciclo positivo das commodities e a retomada da economia após o tombo de 2020. Com uma dose extra de inflação, a arrecadação maior permite que gastos sejam autorizados e torna menos problemática a despesa fora do teto de gastos para amenizar os efeitos da pandemia sobre as famílias.

Para 2022, a inflação maior abre um espaço sob o teto de gastos, que é ajustado pelo índice de preços medido até meados deste ano (no pico do surto inflacionário). O governo debate o que fazer com essa margem no ano eleitoral – fala-se em novo Bolsa Família e reajuste para servidores.

A ironia é que a mesma inflação que acomoda os gastos públicos extras com o auxílio emergencial é a que reduz o poder de compra dos mais pobres. Se a inflação se prolongar, poderá ser um ingrediente novo no cenário eleitoral de 2022.

O lado positivo do cenário hoje é que as expectativas de mercado parecem ainda ancoradas. O relatório Focus desta semana indica que o mercado espera que o IPCA fique em 6,56% neste ano (bem acima da meta de 3,75%) e caia já em 2022 para 3,8%.

Essa convergência rápida para a meta não é garantida e, se realizada, pode ser com um custo maior do que se espera. A mesma pesquisa Focus já indica que o Banco Central elevará a taxa de juros para 7% neste ano e a manterá neste nível até o fim do ano que vem. Isso quer dizer que os juros vão passar a ser contracionistas e vão ficar assim durante o ano que vem.

A composição dos riscos atual indica que pode haver otimismo demais nas expectativas de mercado. Passamos por isso no fim do ano passado, quando a inflação de 2021 era um problema secundário para a maioria dos analistas. Ela veio mais forte e mais longa do se esperava e pode ser que fique conosco por mais tempo do que se pensa.

O primeiro fator talvez subestimado no ano passado foi a transmissão da desvalorização cambial para os preços finais. O câmbio continua depreciado, mesmo com a elevação recente na taxa de juros, e a aproximação das eleições pode subir a pressão sobre o real em 2022. Mesmo que não haja um susto cambial – com o dólar indo acima de R$ 6 nos meses que antecedem as eleições – o câmbio dificilmente será um fator para segurar a inflação.

Além da expectativa de um ciclo eleitoral tenso, há um fator externo a partir do ano que vem que parece não estar na conta. A inflação vem subindo nos Estados Unidos e deve exigir uma elevação dos juros por lá. O gigantesco estímulo fiscal que vem sendo costurado pelo governo Biden provavelmente vai exigir que o Fed, o BC americano, migre sua política monetária para um nível contracionista. Isso significa que o dólar deve se valorizar diante de outras moedas.

Sem uma valorização do real, o choque dos preços das commodities poderá ser mais longo do que se espera. A retomada das economias no pós-pandemia elevou os preços do petróleo, minério, grãos e carnes. O brasileiro tem sentido isso intensamente e a previsão é que esse ciclo de preços continue.

Não bastasse o aumento das commodities, que afeta o mundo todo, o Brasil tem um problema interno no fornecimento de energia elétrica. As previsões do Operador Nacional do Sistema (ONS) para os meses até novembro são muito ruins. Não se deve descartar um novo aumento no custo da bandeira vermelha, que pode não ser retirada antes do início do ano que vem.

Com o avanço da vacinação, espera-se que o setor de serviços volte ao normal no segundo semestre deste ano. Economistas ainda avaliam como será esse retorno, seu impacto sobre o emprego e a capacidade de repasse de aumento de custos para o consumidor. Em ciclos inflacionários anteriores, o setor de serviços foi uma frente importante de aumento de preços.

Os custos mais altos com energia, combustíveis e outros insumos pode fazer com que o setor de serviços não segure preços na retomada, apesar de uma demanda menor provocada pelo desemprego e pela própria inflação – com preços de alimentos mais altos, o orçamento doméstico perde margem para a contratação de serviços.

Nos próximos três meses, o mercado vai internalizar esses fenômenos em sua previsão de inflação para o ano que vem. Se a perspectiva para 2022 começar a desviar mais da meta, é possível que o Banco Central tenha de elevar mais os juros, como no surto de 2014-2015.

A recuperação da economia, nesse cenário, seria desacelerada pelos juros maiores em 2022-2023, que teriam o efeito também de piorar as contas públicas. Para o governo amenizar esse risco, não há muitas alternativas além da manutenção de uma meta fiscal crível e de uma agenda de reformas que melhore o clima para investimentos.

Há nisso um outro fator que também pode azedar a recuperação da economia. Inflação em ano eleitoral pode levar a novas rodadas de medidas imprevistas, como a mudança no comando da Petrobras no início deste ano e a redução temporária de impostos sobre os combustíveis.

A inflação está desconfortável, talvez exija mais força do BC para ser contida e tem potencial para se tornar um ingrediente político em 2022.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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