Quem eram os “fósforos”, que ganhavam dinheiro para fraudar eleições no Brasil Império

Se você vivesse no Brasil do século 19 e quisesse afirmar que determinada pessoa é intrometida, certamente usaria uma gíria muito comum da época: “fósforo”. Assim como os palitos, que podem ser acesos em qualquer lugar, mesmo que não seja na lateral da caixa a que pertencem originalmente, os fósforos eram aqueles sujeitos que tinham o hábito de se envolver onde não haviam sido chamados.

Por décadas, esses intrometidos foram decisivos nas eleições. “Fósforo é tanto o não qualificado que usurpa o nome, o lugar, o direito do qualificado, como o realmente qualificado, sem direito a sê-lo; em suma, tudo quanto vota ilegitimamente”, explicava, em julho de 1879, o jurista Rui Barbosa. Em 1909, o curta-metragem ‘O Fósforo Eleitoral’, dirigido no Rio de Janeiro por Antônio Serra, explicava o mesmo conceito, mas na forma de comédia.

Fósforos também eram, portanto, eleitores que “riscavam” em diferentes urnas e votavam em nome de outras pessoas, vivas ou mortas. “Se o alistado não podia comparecer por qualquer razão, inclusive por ter morrido, comparecia o fósforo, isto é, uma pessoa que se fazia passar pelo verdadeiro votante”, descreve o historiador José Murilo de Carvalho em seu livro ‘Cidadania no Brasil’.

Ao votar em locais diferentes, por várias vezes, muitos fósforos encontravam nas urnas outro mentiroso, contratado para fingir ser o mesmo eleitor. “Vencia o mais hábil ou o que contasse com claque mais forte”, relata o historiador. Acontecia também de o fósforo encontrar o eleitor legítimo de quem estavam tomando o lugar. “Grande façanha era ganhar tal disputa. Se conseguia, seu pagamento era dobrado”.

Mais eleitores do que na Europa

O solo brasileiro conhece eleições desde, pelo menos, 1532, quando aconteceu a primeira votação de que se tem notícia. Ela resultou na escolha dos integrantes do Conselho Municipal da vila de São Vicente. Quem votava? “Só os homens bons tinham o direito de poder escolher os administradores das vilas”, como informa o livro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a história das eleições no país. “Na época do Brasil Colônia, eram homens bons os nobres de linhagem, os senhores de engenho, e os membros da alta burocracia militar, a esses se acrescentando os homens novos, burgueses enriquecidos pelo comércio”, prossegue o texto.

“Em nossas sociedades, profundamente influenciadas pela mentalidade igualitarista, existe a falaciosa noção de que a cidadania se resume ao direito universal ao voto”, explica Alex Catharino, historiador, editor e professor de filosofia política, além de pesquisador residente do Russell Kirk Center, nos Estados Unidos.

Ainda assim, no contexto do século 16, os colonizadores do Brasil se diferenciavam. “A própria natureza da constituição histórica de Portugal fez que esse Estado nacional fosse mais democrático em comparação às práticas políticas adotadas pela maioria das outras monarquias europeias. Essa característica da política portuguesa é adotada na colônia do Brasil”.

Com a independência do Brasil, prossegue ele, o processo democrático foi ampliado, tanto pelo aumento percentual do número de votantes quanto na extensão dos pleitos para cargos das províncias e do governo nacional. “Apesar do direito de voto, de acordo com a mentalidade do período, não ser concedido para menores de 25 anos solteiros, para soldados, para mulheres, para criminosos, para escravos e para índios, o número de votantes durante o Brasil Império era muito grande”.

“Antes de 1881, em torno de 50% da população adulta masculina brasileira votava. Só para comparar, em 1870 a participação eleitoral na Inglaterra era de 7% da população, na Itália 2%, em Portugal 9% e na Holanda era somente 2,5%. No continente americano, fora o Brasil, a maior participação nas eleições era nos Estados Unidos, onde 18% da população votou para presidente em 1888”, afirma Isaias Lobão Pereira Júnior, professor de história no Instituto Federal do Tocantins (IFT).

A Lei Saraiva, de 1881, instituiu o título de eleitor e mudou as regras de votação, excluindo, por exemplo, analfabetos, o que reduziu de 10% para cerca de 1,5% o número de cidadãos brasileiros habilitados a votar. Mulheres só seriam autorizadas a participar de eleições em 1932.

Cabalistas e capangas

Como lembra José Murilo de Carvalho em sua obra, de fato, para os padrões da época, muitos brasileiros votavam durante a maior parte do período imperial. “A maior parte dos cidadãos do novo país não tinha tido prática do exercício do voto durante a Colônia. Certamente, não tinha também noção do que fosse um governo representativo, do que significava o ato de escolher alguém como seu representante político. Mas votar, muitos votavam”.

Muitas vezes, nem tinham escolha, afirma: “Eram convocados às eleições pelos patrões, pelas autoridades do governo, pelos juízes de paz, pelos delegados de polícia, pelos párocos, pelos comandantes da Guarda Nacional. A luta política era intensa e violenta. O que estava em jogo não era o exercício de um direito de cidadão, mas o domínio político local”. As escolhas eram indiretas: os votantes escolhiam os eleitores de deputados e senadores.

Num primeiro momento, a formação das mesas eleitorais era realizada por aclamação popular. “Aparentemente, um procedimento muito democrático”, prossegue Carvalho. “Mas a consequência era que a votação primária acabava por ser decidida literalmente no grito. Quem gritava mais formava as mesas, e as mesas faziam as eleições de acordo com os interesses de uma facção”.

Quando a formação das mesas acontecia dentro das igrejas, era comum os párocos tomarem o cuidado de guardar as imagens, para que elas não fossem arremessadas contra adversários políticos.

Nesse contexto, os chamados cabalistas eram figuras-chave. Formada a mesa eleitoral, cabia a eles identificar os homens aptos a votar. Era necessário comprovar uma renda mínima para poder participar do pleito, mas a legislação não definia quais critérios deveriam ser utilizados para fazer essa separação. Os cabalistas, que formavam as listas de eleitores, é que forneciam as provas – muitas vezes, declarações verbais de testemunhas pagas para mentir.

Formada a lista, chegado o dia da votação, entravam em cena os fósforos, que se valiam da malandragem e ganhavam de acordo com o número de vezes em que conseguissem votar no candidato que os contratara. Havia ainda um terceiro personagem importante: o capanga. Mais truculento, ele agia fazendo a segurança dos eleitores de seu candidato, e ameaçando os eleitores favoráveis ao adversário. Votar, portanto, era uma prática arriscada.

Mudança lenta

A partir de 1889, a República instauraria o voto direto. A primeira eleição para presidente aconteceu em 1894. Compareceu 2,2% da população total do país. “Tudo indica que, apesar de a República ter abolido o critério censitário e adotado o voto direto, a participação popular continuou sendo muito baixa em virtude, principalmente, da proibição do voto do analfabeto e das mulheres”, informa o livro produzido pelo TSE.

As fraudes e a violência permaneceram por décadas. Em julho de 1955, uma lei tentou resolver o problema. Ela determinava: “Depositado o voto na urna, o eleitor, logo em seguida, introduzirá o dedo mínimo da mão esquerda em um recipiente que contenha tinta fornecida pelo Tribunal Superior Eleitoral ou pelos Tribunais Regionais Eleitorais”. Essa tinta especial deveria permanecer na pele por 12 horas, a fim de evitar fraudes. Mas a lei não foi implementada por um motivo simples: ninguém conseguiu localizar a tal tinta especial.

Até 1986, segundo o próprio livro do TSE, as brechas para fraudes eram grandes, até que fosse realizado um recadastramento único, eletrônico e nacional. “Antes não havia um registro nacional, cada um dos TREs realizava um registro de forma independente, o que abria espaço para a existência de fraudes no cadastramento eleitoral. Eleitores com registro em mais de um estado, pessoas mortas com cadastros ativos, por exemplo, eram algumas das situações de fraude possíveis, que foram evitadas com a criação do cadastro único com numeração nacional”.

A situação melhorou desde ntão, afirma o professor do IFT. “O sufrágio universal é uma realidade. As eleições ocorrem a cada dois anos com relativa segurança. Os eleitores de hoje têm mais consciência da importância do voto que os eleitores do passado. Com o processo de renovação política no Brasil, o país atingiu um nível de politização jamais visto anteriormente”.

Já para Catharino, “voto nunca foi expressão de cidadania. A noção de cidadania é muito mais ampla do que o mero ato de escolher uma pequena parcela de membros dos diferentes níveis do governo. A verdadeira noção de cidadania envolve a garantia de uma série de direitos fundamentais e, em contrapartida, a aceitação de uma série de deveres”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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