Continuemos com as diferenças entre os progressismos de matriz europeia e norte-americana. Este segundo é marcado por um tremendo puritanismo, enquanto que o outro leva a bandeira da liberdade sexual à condenação da família. É provável que isso tenha a ver com o fato de os Estados Unidos serem um país religioso e a Europa, sobretudo a não-latina, pender para o ateísmo.
O tratamento das causas feminista e gay mostra essa diferença com clareza. Nos Estados Unidos, a propaganda pró-casamento gay se insere na chave da diversidade. Aplicada à família, a diversidade reza que as famílias são todas iguais, exceto pelo fato de que os casais podem ser homem-mulher, homem-homem ou mulher-mulher. A imagem do gay libertino é condenada como mero preconceito completamente destituído de base factual. Em vez disso, devemos acreditar que todos os gays sonham com família, fidelidade sexual entre marido e marido, sem divórcio e com vários filhos. Ou seja, a velha família de propaganda de margarina, só que com casal do mesmo sexo. A obrigatoriedade da família de margarina é exatamente o alvo dos movimentos de liberação sexual.
Por adotarem, os gays são pintados ainda como anjos caridosos, que recolhem dos orfanatos os filhos que casais heterossexuais desalmados largaram lá. Exorcizada a figura do gay promíscuo, lança-se a do hétero promíscuo, cujo desregramento lota os orfanatos. O fato elementar de que gays não correm o risco de gravidez indesejada é deixado de fora desse cálculo moralista e coletivista: os heterossexuais libidinosos lotam os orfanatos enquanto anjos gays vão resgatar as criancinhas abandonadas. (A propósito: descrever o ato de adoção como uma caridade é um tanto quanto perturbador. Que pais se dizem caridosos por terem tido filhos? E se casais brancos abastados adotam meninos negros, que tipo de inferência racial se poderia tirar, caso queiramos seguir com explicações coletivistas?)
Eu já tive, na faculdade, um professor velho, “espartano” e anarquista, contrário ao casamento gay. Achava que casamento servia para produzir mão de obra para o capital, e ser gay era ser livre. De minha parte, objetava que os heterossexuais já podem ser “livres” se quiserem, ao passo que os gays é que não podiam se casar e adotar filhos se quisessem. Eu objetava em vão: a família era uma coisa ruim em si mesma porque existia para a formação de mão de obra. Coisa de foucaultianos, para os quais tudo — os hospitais, as escolas, as prisões, as famílias — pode ser explicado de uma maneira conspiratória.
Moralismo às avessas na família gay
Douglas Murray é ateu, inglês, gay e conservador, autor de “A loucura das massas”, já comentado aqui. Nesse livro, diz: “Agora que o casamento gay existe, devemos esperar que os casais gays sejam monogâmicos, como se espera dos casais heterossexuais?” (Nota minha: nos países de formação puritana, onde divórcio existe, se espera tal coisa. Nos de formação católica, onde o divórcio é recente, espera-se que os homens tenham casos com discrição.) “Se não tiverem filhos para uni-los, faz sentido esperar que dois homens ou duas mulheres que se conheceram antes dos trinta anos se casem e transem exclusivamente um com o outro pelas próximas seis décadas ou mais? Será que estarão dispostos a isso? E, se não estiverem, quais serão as consequências sociais?” Em seguida, relata o caso de um casal gay famoso que se esforçou muito para que não descobrissem que tinham um relacionamento aberto.
Pois bem: se no tempo do meu professor ser gay era ser sexualmente livre, eis que agora, para os que seguem o progressismo puritano, ser gay é virar um pai de família como outro qualquer, sob o mesmo escrutínio público das comadres.
(Vale frisar, porém, que é difícil reclamar da situação atual dos gays na Inglaterra, dado que há décadas o país estava castrando quimicamente Alan Turing. Por outro lado, o Brasil só teve lei contra gay na Inquisição. Tirando isso, os homens podiam ter seus “sobrinhos” rotativos em paz.)
Mulheres-incubadoras
Douglas Murray trata também de um assunto mais espinhoso, que é a procriação. Afinal, com avanços da tecnologia, os gays não precisam adotar para ter filhos. Agora os gays ricos, como Elton John, podem contratar barrigas de aluguel. Usa-se o sêmen de um gay mais o óvulo de alguma doadora e a barriga de uma chocadeira profissional, que em geral não é a dona do óvulo — do contrário, seria o mesmo que vender o filho biológico.
Cito Murray: “Uma antiga piada gay dizia: ‘Ainda não tivemos um bebê, mas estamos tentando.’ Mas eis aqui uma história [de celebridades gays anunciando que vão ter um bebê] sugerindo o primeiro progresso nessa área. E logo ficou claro que qualquer um que perguntasse ‘Mas como dois homens podem ter um bebê?’ receberia esta resposta: ‘Por que não? Seu preconceituoso.’ Naturalmente, um colunista do Daily Mail tropeçou nessa mina terrestre. Porém, a pergunta ‘Como, exatamente?’ dificilmente era injustificada. Uma das razões é que se concordara, em anos precedentes, que excluir as mulheres de qualquer coisa era um sério faux pas. E lá estavam dois homens gays excluindo completamente ao menos uma mulher – que teve de ser relevante em algum ponto da jornada – da história. De fato, excluindo uma mulher daquela que provavelmente é a mais importante história da qual qualquer um pode participar. ”
Notem bem que a expressão “barriga de aluguel” no Brasil é amiúde confundida com a “barriga solidária”, prevista pela nossa lei. Aqui uma irmã pode emprestar o útero para a outra, caso esta tenha complicações de gravidez. Não há questões pecuniárias envolvidas. Nos países ricos, é possível ter filho offshore, mandar o embrião feito em laboratório para a barriga de uma indiana. Assim, o filho desses gays (na verdade, filho biológico de apenas um desses gays) vai ter o DNA de uma doadora de óvulo (se há vendedoras de óvulos, não sei) e será gestado por uma grávida profissional. Sem mãe. (Vou confessar que não sei detalhes de leis dos Estados Unidos e dos países europeus. Tentando descobrir o que Paulo Gustavo e o marido fizeram, vi é possível alugar barriga nos Estados Unidos.)
A vida dessas grávidas na certa se parece muito com o “Conto da Aia”, da escritora feminista não-identitária Margaret Atwood, em que as mulheres perdem a liberdade e se tornam versões humanas de vacas parideiras e leiteiras.
Então ficamos assim: o ideal puritano progressista de uma família gay pode ser construído sobre a vilificação da condição feminina, agora reduzida a incubadora. No frigir dos ovos, o progressismo puritano inventou a família de origem casta, que pode ser constituída em laboratório por padres e freiras virgens.
E uma consequência dessas práticas que nunca vi ser discutida é a possibilidade de planejamento eugênico de crianças em laboratório. Se as mulheres já estão imitando as vacas, por que a humanidade não imitaria logo os bovinos, havendo seleção genética de garanhões reprodutores? E se a personalidade é em parte herdada, não seria possível planejar o nascimento de gente dócil?
Narrativas de oposição à liberação sexual
Eu não creio que o meu professor foucaultiano tenha querido constituir família até ler Foucault. Creio que algumas pessoas querem constituir família, outras não. E que é assim desde que a humanidade é humanidade. Volta e meia aparecem as narrativas que querem dizer que todos são obrigados a constituir família, ou que todos são obrigados a não constituir família. Aí, quem é mais intelectualizado e politizado, se inteira dessas narrativas para transformar sua propensão em norma.
A narrativa de que a família é um mal em si mesma pode ser usada para apoiar o casamento gay. Sobretudo se o seu adepto for um ateu revoltado com a Igreja. Aí a família tradicional é pichada, com dois homens – de preferência, bem libidinosos – casando e descasando sem filhos, usando drogas e curtindo à vontade. É uma imagem aparentada da feminista enfiando objetos sacros em partes pudendas. Esse tipo de feminista tem obsessão pelo aborto, e dela falaremos no próximo texto.
Por outro lado, a narrativa de que ninguém pode ser um indivíduo solteiro, até libidinoso, e ter uma vida realizada, também pode ser usada para apoiar o casamento gay. Os gays então são colocados na cama de Procusto do casamento tradicional mais puritano.
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