Um partido político decidido a torcer a Constituição e a contornar o Poder Legislativo para fazer prevalecer sua plataforma política encontra um ministro do Supremo Tribunal Federal incapaz de interpretar corretamente um simples trecho da Carta Magna. É assim que devemos entender o voto do relator Marco Aurélio Mello na ação em que o PSol pede ao STF que obrigue o Congresso Nacional a aprovar uma lei que institua o imposto sobre grandes fortunas. A ação foi proposta em 2019 e entra em plenário virtual nesta sexta-feira, dia 25, já com a posição do relator. Os demais ministros terão até 2 de agosto para votar – um prazo dilatado devido ao recesso judiciário.
O PSol buscou a Justiça alegando “omissão” do Congresso, pois a não implantação do imposto sobre grandes fortunas violaria o artigo 153, inciso VII da Constituição, segundo o qual “Compete à União instituir impostos sobre (…) grandes fortunas, nos termos de lei complementar”. No entanto, uma leitura rápida do texto constitucional já permite concluir que ele não impõe nenhuma obrigação à União neste sentido; apenas estabelece a competência – ou seja, tal imposto só pode ser instituído pelo poder público federal, jamais por estados, Distrito Federal ou municípios. Da mesma forma, o artigo 155 enumera os tributos que podem ser cobrados pelos estados e o 156, pelos municípios.
Mesmo quem defende a instituição do imposto precisa repudiar o truque usado pelo PSol e endossado por Marco Aurélio para contornar o Poder Legislativo
Tanto a Procuradoria-Geral da República quanto a Advocacia-Geral da União lembraram esta diferença óbvia, ainda em 2019, mas Marco Aurélio resolveu ignorá-la, ao escrever, em seu voto, que, “passados 31 anos da previsão constitucional, que venha o imposto, presente a eficácia, a concretude da Constituição Federal. Com a palavra o Congresso Nacional”, fazendo a única concessão de não estabelecer prazo para que o Legislativo aprove o imposto.
Afinal, é disso que se trata – para o PSol e para Marco Aurélio, não basta que o Congresso coloque em votação um projeto de lei instituindo o imposto sobre grandes fortunas: é preciso aprová-lo. Nenhum outro resultado serve. Anula-se, portanto, qualquer autonomia da parte dos representantes escolhidos pela população. Um partido político demonstra, assim, seu desprezo pela via legislativa e pelo parlamento, buscando que o Judiciário imponha não apenas o que o Congresso tem de votar, mas como deve votar. No dicionário dos partidos de esquerda que constantemente recorrem a esse tipo de expediente, e também no dicionário de ao menos alguns ministros do STF, “omissão” é, na verdade, “omissão em produzir os resultados que eu desejo”.VEJA TAMBÉM:
Importante ressalvar, aqui, que não nos interessa neste momento analisar o imposto sobre grandes fortunas propriamente dito. Seus defensores alegam, por exemplo, que ele serve como fator de justiça tributária, a desejada situação na qual quem tem mais contribui com mais. Os contrários apontam para experiências de fuga de capitais em outros países que o instituíram. De qualquer forma, como temos enfatizado em toda a discussão sobre o fatiamento da reforma tributária, imposto nenhum pode ser instituído sem analisar como ele afeta todo o restante da tributação. O que é preciso ressaltar, neste momento, é que o locus para a discussão deste tema é o Congresso Nacional, jamais o STF. Mesmo quem defende a instituição do imposto precisa repudiar o truque usado pelo PSol e endossado por Marco Aurélio para contornar o Poder Legislativo.
Que um partido incapaz de conquistar amplo apoio popular nas urnas – o que se reflete em número baixo de parlamentares eleitos – queira buscar no Poder Judiciário um meio de impor as plataformas que não consegue fazer prevalecer pela via do debate no Legislativo é algo que se tornou bastante corriqueiro no Brasil atual, até porque no Supremo há muitos ministros dispostos a jogar esse jogo. Que esse mesmo partido pretenda distorcer um texto bastante simples da Constituição para atingir seu objetivo também não chega a ser surpreendente. Mas que o mais experiente membro da corte concorde com uma distorção tão evidente é motivo para enorme preocupação, que só reforça a sensação de que o maior promotor de insegurança jurídica no país é justamente a corte que deveria zelar pela segurança e pela estabilidade advindas da fidelidade à Constituição.
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