Entrará em votação no Parlamento Europeu (PE), nesta quarta-feira (23), a resolução que propõe a aplicação do chamado “Relatório Matić”, do eurodeputado croata de centro-esquerda Predrag Fred Matić. Entre outros assuntos, o relatório intitulado “A situação da saúde sexual e reprodutiva e dos direitos na UE na perspectiva da saúde da mulher” propõe que o aborto seja defendido como um “direito humano” sem qualquer restrição.
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Apesar de ser considerado como uma resolução ilegal pelo Centro Europeu de Direito e Justiça, o documento, considerado um dos mais agressivos e enfáticos propostos no Parlamento Europeu, pede a remoção de possíveis impedimentos ao acesso ao aborto, como períodos de espera antes da tomada de decisão pelo procedimento, etapas de aconselhamento ou qualquer autorização de terceiros.
A resolução ainda apela pela abolição do direito à objeção de consciência dos médicos, pelo uso de métodos de contracepção para meninas – independentemente da idade –, defende o ensino da ideologia de gênero na escola primária sem informar ou exigir o consentimento dos pais, impõe cirurgias de transexualização – inclusive para menores –, além de interferir, de forma clara, na soberania dos Estados-membros e nas definições e gestão de seus sistemas de saúde.
De acordo com o próprio relatório, o objetivo é “solicitar à União Europeia [UE], às suas instituições e aos Estados‑membros que reconheçam plenamente que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos e, como tal, devem ser alcançados, independentemente das circunstâncias — durante a crise sanitária [do COVID-19], para além dela e sem discriminar quem quer que seja.”
Direito para (quase) todas as vidas
De acordo com o relatório, a discussão sobre a saúde da mulher surge num momento crucial da UE, e parte do entendimento de que “um retrocesso” e “uma regressão dos direitos das mulheres” ganham terreno a cada dia e contribuem para a “erosão dos direitos adquiridos”, além de um “perigo a saúde das mulheres”.
Entretanto, como muitas das narrativas chamadas de “progressistas” (na verdade, retrógradas por relativizar a vida), o ataque à vida é disfarçado com a desculpa da garantia de direitos. Para Lenise Garcia, professora aposentada do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida Brasil Sem Aborto, essa é uma estratégia conhecida dos movimentos que lutam pela legalização do aborto. “Colocam uma série de direitos que, efetivamente, todos nós concordamos — por exemplo, o direito à saúde, a questão da violência obstétrica, etc. —, e inserem neste conjunto a questão do aborto”, explica. “Vejo que este assunto está colocado pelo relatório de um modo extremamente radical”, afirma.
Outro fato relacionado ao aborto – e que para Lenise é considerado uma incoerência – é o de que, ao mesmo tempo em que a vida é defendida em todos os seus ciclos, o relatório desconsidera o seu início. “Falam do direito à vida no decorrer de todo o relatório, mas evidentemente desconsideram a vida do ser humano em seu estágio inicial”, afirma. “Além disso, o que me parece é que está sendo desconsiderado o direito da criança por nascer”.
Do ponto de vista do direito internacional, o juiz e pós-doutor em Antropologia Filosófica André Gonçalves Fernandes afirma que “aprovando o aborto como política-pública de saúde, cria-se uma série de ações que são insolúveis não só do ponto de vista histórico ou legal, como também em termos de interpretação, que vai de encontro à toda tradição de direito e normas internacionais que, desde a Segunda Guerra Mundial, sempre foram no sentido oposto. É inconcebível colocar no patamar de direito humano a temática do aborto”.
O direito para as mulheres
A resolução ainda afirma que “o retrocesso em matéria dos direitos das mulheres, tem uma influência direta sobre os processos de abalo da democratização na UE”. Para a proposta a ser votada no Parlamento Europeu, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos (SDSR) vêm sofrendo cada vez mais com o processo de “erosão da democracia e das liberdades individuais”, uma vez que são coordenados por “atores que instrumentalizam para alcançar determinados objetivos demográficos”.
Lenise, que também é coautora do livro “Abortos Forçados – Como a Legalização do Aborto Tira das Mulheres Seus Direitos Reprodutivos”, afirma que apesar de se buscar uma liberdade total para a mulher nas questões sexuais, elas ainda sofrem interferências e influências de grupos e pessoas. “É ilusório que isso seja em benefício da liberdade da mulher, pois sabemos que a questão não é esta”, diz. “As mulheres raramente tomam a decisão por realizar um aborto sozinhas. Frequentemente são pressionadas a fazer um aborto e, muitas vezes, são, literalmente, levadas a fazê-lo”. Segundo a especialista, mais de 50% das americanas não escolheram abortar por conta própria, mas sofreram pressões externas para que realizassem o procedimento.
Além disso, a sigla “SDSR”, utilizada frequentemente na resolução pode ser entendida como um eufemismo para a possível liberação do aborto. “Muitas vezes inserem a questão do aborto com uma terminologia muito ambígua, que é a de direitos sexuais e reprodutivos”, afirma Garcia. “Uma estratégia que começou desde a Conferência de Pequim, em 1995.”
Sobre a situação demográfica do Velho Continente, ela ainda reforça: “a Europa, hoje, precisa desesperadamente de crianças. É totalmente diferente da situação populacional que se quis colocar no relatório para introduzir a questão do aborto que, já nessa altura, diz respeito à população de terceiro mundo, que era a que está crescendo muito. O próprio Brasil, hoje, já está em uma situação de descenso populacional, pelo menos é o que se visualiza a longo prazo.”
Negação da objeção de consciência para médicos em casos de aborto
A objeção de consciência dos médicos – quando um profissional se recusa a realizar um procedimento, alegando convicções éticas, morais ou religiosas – é apontada pelo “Relatório Matić” como “um dos obstáculos mais problemáticos”. O documento diz que “esta situação não só nega às mulheres o direito à saúde e a atos médicos, como também levanta a questão dos sistemas públicos de encaminhamento de doentes”. De acordo com o projeto de resolução, deve ser proibida a possibilidade de um profissional médico recusar uma atividade considerada incompatível com suas convicções religiosas, morais, filosóficas ou éticas. O “Relatório Matić” considera ainda que essa atitude deve ser tratada como uma recusa de cuidados médicos.
“Do ponto de vista institucional”, afirma Lenise, “temos inúmeras organizações que se posicionam contra o aborto”. E continua: “eu conheço instituições que se tiverem que se posicionar a favor da criminalização do aborto o vão fazer. E são instituições que têm um peso importante para as discussões da medicina. Contudo, estas, provavelmente, precisarão fechar as portas caso um relatório como o ‘Matić’ seja aprovado”.
A soberania dos países sobre aborto
Sem dúvida, uma das principais questões relatadas no documento é a interferência direta da UE na soberania de seus Estados-membros. Depois de o jornal britânico The Spectator, denunciar que a Comunidade já havia iniciado silenciosamente um ataque a seus Estados-membros, processando nada menos que sete deles no Tribunal de Justiça por violar a lei da UE, agora chegou a vez de o aborto se tornar um motivo para uma intervenção ainda maior.
Os cuidados de saúde são matéria exclusiva de cada um dos países e a UE não tem jurisdição sobre esse assunto. Se adotado, o relatório será uma grave interferência na soberania dos Estados-membros da Comunidade Internacional. O monopólio dos Estados-Membros sobre esta questão foi lembrado em várias ocasiões por diversos organismos europeus. Recentemente, a Comissão Europeia declarou que “os poderes legislativos sobre saúde sexual e reprodutiva e direitos, incluindo o aborto, residem com os Estados-Membros”.
Em um movimento “de cima para baixo”, o relatório afirma que “é sobre os Estados‑membros que recai a responsabilidade de assegurar o acesso a uma gama completa de serviços de SDSR”. Depois disso, acrescenta e deixa claro que a restrição ao aborto praticada em dois países (Malta e Polônia) “suscita preocupações, e exige uma resposta firme da UE”. O documento acrescenta ainda que esta restrição é um “retrocesso evidente em termos de direitos das mulheres”.
“Vale lembrar que os dois países [Malta e Polônia] sofreram, no século passado, com regimes comunistas e, portanto, têm no histórico a realidade em que aborto era completamente liberado justamente contra a vontade de seus povos”, afirma Lenise Garcia. “Hoje, no momento em que, democraticamente, as populações puderam ter mais influência nas leis do próprio país para defender a vida, o assunto é tratado como um retrocesso. Trata-se nada mais nada menos que um jogo de narrativa.”
Mas é arriscado pensar que as consequências do relatório podem se limitar somente ao ambiente europeu. Sobre possíveis consequências da aprovação da resolução pelo Parlamento Europeu, acrescenta Fernandes: “Mais cedo ou mais tarde essas questões internacionais batem à porta do Brasil, para bem ou para mal, sobretudo quando estão encampadas, evidentemente, por viés ideológico. E some-se também a isso, o fato de que o Brasil possui uma série de tratados internacionais com a UE. Então, de certa maneira, acabam catapultando esta perspectiva europeia para o Brasil”.
Possíveis envolvidos
O “Relatório Matić” cita algumas instituições que possuem histórico na agenda pró-aborto e que fazem, mesmo que indiretamente, parte da construção da resolução que será discutida pelo PE. Materiais de entidades como a Center of Reproductive Rights e a European Network da International Planned Parenthood Federation (IPPF), maior conglomerado de clínicas de aborto do mundo, dão base argumentativa para a construção de uma narrativa pró-aborto. Marlon Derosa, master em Bioética e autor dos livros “Abortos forçados”, “Abortos ocultos” e organizador/coautor do livro “Precisamos falar sobre aborto: mitos e verdades”, afirma que “trata de uma iniciativa para reforçar a pressão em prol da indústria da morte”.
A Comissão das Conferências dos Bispos da União Europeia (Comece), que é composta por bispos delegados pelas Conferências dos Bispos Católicos dos 27 Estados-Membros da União Europeia, bem como outras ONGs de todo o mundo, se pronunciaram contra a resolução que será discutida na quarta-feira. Duas integrantes do Parlamento Europeu, a espanhola Margarita de la Pisa Carrión e a polonesa Jadwiga Wiśniewska definiram-na como uma “posição minoritária” e argumentaram que o relatório não tinha “nenhum rigor legal ou formal”. Elas afirmam: “Ele [relatório] vai além de suas atribuições ao abordar questões como saúde, educação sexual e reprodução, assim como aborto e educação, que são prerrogativas legislativas dos Estados-membros”.
A ONG internacional CitizenGO, contrária à iniciativa, iniciou uma campanha para reunir assinaturas contra o relatório. Para isso, está trabalhando numa petição online, que já conta com milhares de pessoas. O resultado será enviado para o Parlamento Europeu como forma de pressão contra a medida.
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