Como o peronismo destruiu a Argentina

Atribuída ao rei Luís XIV, que a teria proferido diante do Parlamento francês em resposta a uma discussão acalorada, a frase “o Estado sou eu” entrou para a história como a epítome do que não se deseja de um governo: a concentração do poder nas mãos de um homem que se julga acima de todas as instituições.

Quase quatro séculos depois, pouquíssimas monarquias absolutistas sobreviveram à emergência dos ideais republicanos. Contudo, o “espírito” que transfere a um único indivíduo o status de salvador de uma nação mudou de forma, ganhou disfarces democráticos e viajou pelo mundo, assumindo a forma de ditaduras ou de governos populistas que devastaram a cultura e a economia de suas nações, sob a mãos de ferro de líderes carismático, paternalistas e com ares messiânicos. Foi assim com o fascismo de Benito Mussolini, cuja influência atravessou o Atlântico e aterrissou em um país que, no começo do século XX, despontava como potência mundial. Graças a este mesmo espírito, há uma Argentina antes e outra depois de Juan Domingo Perón.

Quase cinquenta anos após a morte do ex-secretário do trabalho que ascendeu à presidência da Argentina sem esconder sua admiração pelo fascismo italiano, seu nome continua a ser ouvido nas convenções do Partido Justicialista e até mesmo em eventos de Estado protagonizados pela legenda: “Por esse grande argentino/Que aprendeu a cativar/A grande massa do povo/Combatendo o capital/Perón, como você é grande!”.

Ocorre que o “combate” de Perón ao capital foi, no mínimo, seletivo: quando morreu, em 1974, seu pequeno patrimônio se transformara em barras de ouro e prata, joias, peças de marfim, dezenas de carros e motocicletas, um avião, duas lanchas e mais de 11 milhões de pesos entre ações na empresa Santa Maria del Monte, sua própria fundação e construções em bairros ricos de Buenos Aires.

São heranças de seu governo também as principais estatais argentinas, bem como uma rígida legislação trabalhista, inspirada na Carta del Lavoro de Mussolini e que sofreu pouquíssimas alterações em meio século – hoje, os produtores argentinos contam com nada menos do que 67 mil regulamentações. Com 40% de sua população na pobreza, 10 milhões de pessoas nas ruas e 60% do orçamento comprometido com programas assistencialistas, a Argentina encara também a fuga da elite financeira do país, graças aos impostos recém-aprovados sobre grandes fortunas, e de jovens cientistas que preferem estudar nos Estados Unidos. A classe média, que já chegou a abranger mais de 60% da população, caiu pela metade.

Os esforços para conter a crise parecem insuficientes, uma vez que a redução de um Estado inflado passa longe da conversa. “O problema é que, de forma geral, os argentinos são intervencionistas e estatistas justamente porque somos paternalistas. Delegamos nossas responsabilidades e decisões ao Estado só porque é muito mais confortável viver sob as asas do papai. O que a gente não percebe é que acabamos abrindo mão dos direitos também. E este é o problema que o peronismo consolidou na Argentina”, explica o economista argentino Aldo Abram, diretor-executivo do think tank Libertad y Progreso.

Carismático e “justiceiro”

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, quando a Argentina comemorou o primeiro centenário de sua independência, a renda per capita do país era superior à de países como Espanha, Itália, Suíça e Suécia, principalmente graças aos bons preços da carne no mercado internacional e a uma constituição essencialmente liberal, que garantia o direito à propriedade, estimulava a imigração e favorecia a entrada de capital estrangeiro. A partir de 1929, contudo, a quebra da Bolsa de Nova York derruba a demanda por commodities e incentiva o protecionismo. Cria-se o terreno perfeito para o surgimento das ideologias nacionalistas.

Em 1943, um golpe militar tiraria o presidente Ramón Castillo do poder; e o secretário de Trabalho que se gabava de ter conversado com o próprio Mussolini em viagem à Itália ganhava a confiança do público ao ajudar a reconstruir a cidade de San Juan, destruída por um terremoto. Foi nesta ocasião que Juan Domingo Perón conquistou não apenas a confiança do público, como a devoção da mulher que seria sua segunda esposa e principal palanque político, Eva Perón. Depois de ser deposto e exilado por um novo golpe, voltou sob o clamor dos sindicatos inflamados por seus discursos — capitaneados pela esposa. Em 1946, seria eleito pela Argentina com quase 53% dos votos.

Perón recebeu um país rico: contava com um grande nível de capitalização em infraestrutura, como trens, serviços públicos e investimento na produção. Recebeu também um Banco Central com grandes reservas de ouro. “Isso lhe permitiu fazer um governo paternalista que, hoje, chamamos de populista. Perón fechou ainda mais a economia já prejudicada pela guerra, ao invés de começar a abrir como outros países fizeram. Implementou uma substituição de importações que serviu para que se criassem empresas estatais com as mesmas funções das que já existiam, mas ineficientes e muito mais caras”, explica Abram. Setores estratégicos como bancos, ferrovias e companhias de eletricidade foram estatizados.

Nascia assim um capitalismo de Estado: uma nova burguesia apegada às benesses do governo distribuídas entre as estatais e uma classe média dependente de gastos públicos. “Os peronistas dirão que os ‘direitos dos trabalhadores’ são suas maiores contribuições para o país, mas sabemos que a qualidade de vida dos trabalhadores não melhora com leis, mas com investimentos e mais oportunidades de trabalho. Agora, toda uma volumosa legislação trabalhista reduz as possibilidades de crescimento”, avalia o economista Martín Krause, da Universidade de Buenos Aires.

“Com os recursos de que dispunham, fizeram um governo extremamente generoso, dando muitos presentes ao povo para construir o poder e, com isso, finalmente conseguiram mudar a Constituição para maximizar sua hegemonia. Como resultado, o que se viveu no segundo mandato de Perón foi o declínio político e econômico”, diz Aldo Abram. As dívidas, o déficit de papel-moeda, os altos impostos e a turbulência do mercado, afinal, viriam cobrar seu preço.

Uma nova cultura

A longevidade do peronismo, entretanto, não pode ser explicada sem levar em conta seu impacto cultural na Argentina. E a peça-chave desta influência era Eva. Bonita e tão carismática quanto o marido, Eva Perón tratava o cônjuge, literalmente, como o “ideal encarnado” da revolução. “Perón é tudo”, dizia. “Ele é a alma, o nervo, a esperança e a realidade do povo argentino. Sabemos que só há apenas um homem aqui, em nosso movimento, com sua própria fonte de luz. É Perón. Todos nos alimentamos da sua luz”. Na primeira assembleia do Partido das Mulheres Peronistas, da qual foi fundadora, descreveu que “ser peronista é, para uma mulher, ser leal e ter confiança cega em Perón”.

É este culto quase religioso ao presidente que acaba por corroer a relação entre o peronismo e a Igreja Católica, que o apoiou no início do governo. Sem nenhum disfarce, a doutrinação peronista alcançou a escola. “Algo positivo foi a expansão de um sistema educacional que havia perdido essa capacidade. Por outro lado, houve a politização da educação, usada como um instrumento. Ainda que de forma mais atenuada, isso continua até hoje”, diz Francisco de Santibañes, especialista em economia internacional e autor do livro “La Argentina después de la tormenta” (sem tradução no Brasil).

“Se alguém não ensinasse o que o governo queria, perdia o emprego. Essa foi uma das questões que levou a uma certa saciedade na sociedade e deixou o terreno fértil para o golpe subsequente, além dos confrontos sucessivos com a Igreja. Eles eram lógicos ao apontar que o peronismo era instituído quase de forma religiosa. Os livros didáticos das escolas ensinavam ‘Eva e Perón nos amam’ para que as crianças aprendessem a ler — e

isso foi amplamente documentado”, descreve Abram.

O autoritarismo de Perón o afastava dos liberais e da própria esquerda. Nessa época, jornais que criticavam os Perón eram “visitados” por fiscais do governo que forjavam acusações e multavam jornalistas. “O impacto do peronismo na cultura política e social da Argentina foi péssimo pois, como todo populismo, este pensamento não acredita que as instituições são importantes ou crê que elas têm que se submeter ao poder da maioria. Isso destruiu a qualidade institucional do país”, avalia Krause.

Os “novos peronismos”

As rupturas do peronismo conduziram a um novo golpe de Estado que, em 1955, resultou na morte de mais de 300 pessoas em meio aos bombardeios à capital argentina promovidos pelos próprios militares e no exílio de Juan Perón na Espanha. De volta em 1973, foi eleito com 62% dos votos com a terceira esposa como vice (Eva faleceu em 1952) e governou até sua morte, no ano seguinte. Ao longo de sua vida, Perón teve relações diferentes com o radicalismo: chegou ao governo rechaçando o marxismo e retornou do exílio prometendo reformas estruturais contra o capital; para, ao final da vida, se opor aos “montoneros” – a extrema-esquerda peronista. Mas nunca deixou de fomentar o culto à própria figura.

Mais um golpe se seguiu à morte do líder (foram nada menos do que seis, ao longo de um século de história argentina), dando início a uma sangrenta ditadura militar que pouco faria para desmantelar a raiz do problema econômico e político da Argentina: a falta de liberdade e o tamanho do Estado. Tal como no Brasil, serviria para associar a direita ao autoritarismo e permitir que a esquerda dominasse o discurso democrático, sempre atrelado à memória de Perón.

Seis anos após a redemocratização, o peronismo estava de volta ao poder na figura de Carlos Menem, que consegue controlar a hiperinflação às custas de uma política insustentável de conversibilidade entre o peso e o dólar. Foi condenado por corrupção e escapou da pena graças à imunidade parlamentar para, então, ser sucedido por Nestor Kirschner e Cristina Kirschner. O resto é história.

A vitória de Maurício Macri, que prometia uma lufada de ar em meio à crise, sucumbiu aos problemas estruturais. “Foi uma tentativa muito tímida que não atingiu as raízes do problema, o tamanho do Estado e seu peso na atividade produtiva; buscou financiar o déficit com dívidas e desabou quando os mercados disseram que não iriam mais emprestar dinheiro”, diz Krause. Ainda que o atual presidente, Alberto Fernandez, declarado peronista, consiga reestruturar a dívida argentina junto aos credores internacionais, o caminho pela frente ainda é longo – e não deveria passar pelo confisco de riquezas.

“Devemos eliminar um enorme emaranhado de regulamentações que não fazem sentido para as pessoas, que sabem fazer seu trabalho e administrar seus negócios melhor do que qualquer funcionário público que acredita ser Deus. E, finalmente, o Estado deve ser reformado para que sirva ao povo e para que o povo possa pagar por isso”, diz Aldo Abram. “Este processo deve nos levar adiante, caso se consolide ao longo do tempo. Para isso, é necessário um amadurecimento cívico”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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