Uma das dificuldades em se chegar a consensos na reforma tributária fatiada não é apenas técnica e econômica, mas também política. Desde sua campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro fez aliados e assumiu compromissos junto a empresários de todos os setores da economia. Agora, ele está preocupado em não pesar mais a “carga” sobre uma atividade em detrimento de outra ou mais.
A construção das “fatias” restantes da reforma tributária pelo Ministério da Economia se arrasta devido a dificuldades encontradas pelo ministro Paulo Guedes em buscar o ponto de equilíbrio que traga menos impactos para a indústria, o comércio, os serviços e a agropecuária, como mostrou a Gazeta do Povo.
Mas até esse consenso mínimo tem sido um desafio. Ainda mais diante dos apoios que Bolsonaro construiu junto a empresários. O presidente da República não pressiona ou interfere nos debates sobre a agenda, mas deixou a Guedes clara a preocupação e a contrariedade quanto a um possível aumento de carga a qualquer setor.
Como os setores podem ser impactados na reforma tributária
O agronegócio é um dos setores que pode ser atingido na reforma tributária fatiada. Na reforma do Imposto de Renda, por exemplo, para ampliar a isenção do IR da pessoa física (IRPF) de R$ 1,9 mil para R$ 2,3 mil, como planeja Paulo Guedes, a equipe econômica estuda rever a isenção fiscal da Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) — um produto financeiro — para compensar o reajuste do piso de isenção do IRPF.
A isenção fiscal para um título como a LCA incentiva investidores a direcionar suas escolhas de investimento. Tal como a Letra de Crédito Imobiliário (LCI) é um produto que aquece o mercado imobiliário, ela ajuda a financiar plantios e a produção agropecuária.
Uma revisão sobre a isenção da LCA causaria, consequentemente, um aumento da carga tributária a um título financeiro considerado importante para o desenvolvimento do agronegócio brasileiro. Algo que Bolsonaro é contrário.
“Dentro da reforma do IR de pessoa física teríamos que compensar com extensão da taxação em cima da letra [de crédito] da agricultura e outros tipos de aplicação incentivadas que seriam taxadas em alíquota única”, afirma um interlocutor do Ministério da Economia. “Mas o Palácio [do Planalto] teme que haja reação da área da agricultura”, complementa.
A indústria e os setores de comércio e serviços são outros setores que podem ser impactados pela reforma tributária fatiada. A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), texto já enviado pela equipe econômica ao Congresso para propor a unificação do PIS e Cofins, enfrenta resistências da indústria.
O projeto de lei original da CBS previa alíquota de 12% para todos os contribuintes, mas, na semana passada, Guedes anunciou possíveis mudanças, com uma alíquota mais baixa, de 8%, para o setor de comércio e serviços, enquanto a alíquota da indústria permaneceria em 12%. Os industriais são contrários, e o setor terciário diz que, sem um tratamento diferenciado, não há reforma tributária.
Receio de Bolsonaro em desagradar aliados dificulta a reforma tributária
Em meio às disputas setoriais está Guedes, que dialoga com empresários de todos os setores a fim de mitigar ao máximo os impactos, ciente de que os desconfortos não ajudam a prosseguir com a agenda. “Onde se mexe tem reação de um lado e do outro, e tem que ir para negociação”, diz um interlocutor da equipe econômica.
Assessores de Guedes e empresários que dialogam com o ministro afirmam que ele está disposto a buscar o melhor acordo possível junto aos setores produtivos, mas que não vai ceder a lobbys. A única forma de se chegar a uma reforma tributária que agrade a gregos e troianos, segundo ele, é com a aprovação de um imposto sobre transações digitais aos moldes da extinta Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF).
Contudo, diante das dificuldades políticas em se aprovar uma nova CPMF, alguns empresários do setor terciário estão pouco confiantes sobre as chances de aprovação da reforma tributária. A leitura é que, na tentativa de não desagradar nenhum setor, Bolsonaro não se empenhará em apoiar a aprovação da reforma tributária.
“Se a indústria esticar muito a corda, não vai ter nenhuma reforma. Bolsonaro não vai entrar em guerra com o setor de serviços às vésperas das eleições. Seria muita gritaria”, diz um grande empresário do setor de serviços. “Ele [Bolsonaro] não tem mais um ano e meio [de governo]. Ele tem até setembro [para aprovar a reforma], outubro estourando”, complementa, em referência ao período eleitoral.
Sem Bolsonaro usar seu capital político para intermediar as conversas com representantes dos setores produtivos e ele próprio enfrentar as divergências em busca de um ponto de equilíbrio para a reforma, a leitura feita entre empresários é que essa agenda vai caminhar com o “freio de mão” puxado.
“O presidente é super atencioso com nós [empresários]. Por isso, acho muito improvável que ele vai buscar atrito com os dois lados [indústria e serviços] neste momento. Pode até colocar lá no Congresso [as ‘fatias’ restantes da reforma], mas não acredito que ele vai brigar para aprová-las”, destaca um grande empresário do varejo.
Como é a relação de Bolsonaro com o agro, a indústria, o comércio e os serviços
A agropecuária é um dos setores que Bolsonaro melhor prestigiou e menos quer desagradar na reforma tributária. A Gazeta do Povo mapeou na agenda oficial do presidente da República que, desde janeiro de 2020, ele cumpriu seis agendas voltadas exclusivamente para o agronegócio.
No mesmo período, a indústria foi o setor mais atendido. Em 16 ocasiões diferentes com o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf. Ele também atendeu em três ocasiões representantes da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Por duas vezes, também recebeu o presidente do Instituto Aço Brasil, Marco Polo de Mello Lopes, sendo que, em uma das ocasiões, esteve acompanhado de representantes de 14 segmentos da indústria.
Tamanha proximidade entre Bolsonaro e os empresários da indústria criou laços políticos entre o presidente e o setor. E agora, nas discussões da reforma tributária, os empresários cobram um apoio do governo, admite o deputado federal Newton Cardoso Jr. (MDB-MG), presidente da Frente Parlamentar Mista Nacional da Indústria (FPI).
“A maior parte dos industriais no país é fortemente apoiadora do presidente Bolsonaro. Não sei dizer se a elite industrial, mas a grande parte da pequena e média indústria nacional sempre o apoiou, e acredito que ainda siga nesse caminho, por opção política. Agora, de fato, penso que a falta de um posicionamento firme a favor desse setor está comprometendo esse apoiamento”, diz Cardoso.
Já o deputado federal Laércio Oliveira (PP-SE), presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Setor de Serviços, entende que Bolsonaro não tem que tomar partido por um setor ou outro e age corretamente ao não manifestar apoio. Tampouco acha que a falta de manifestação impacta as chances de aprovação da reforma.
“A disposição do presidente da República nessa discussão que nem começou ainda é exatamente aquilo que poderia ser neste momento. O presidente não precisa entrar neste momento em nenhuma bola dividida, não deve comentar o assunto porque está fora do script dele”, diz Oliveira.
O setor de comércio e serviços é outro muito ouvido por Bolsonaro. Só este ano, ele esteve em três agendas com representantes de ambas as atividades. Além disso, participou de um jantar em abril onde foi ovacionado e chamado de “mito” por alguns empresários. Em 2020, prestigiou empresários em duas agendas oficiais.VEJA TAMBÉM:
Fatiamento blinda alguns setores, critica Frente Parlamentar da Indústria
A indústria é o setor mais avesso à ideia de fatiamento da reforma tributária. O deputado Newton Cardoso Jr. faz críticas contundentes contra a ideia vigente, proposta por Guedes e aceita pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
“Reforma tributária só tem uma, a PEC [proposta de emenda à Constituição] 45/2019. O fatiamento representa a morte da reforma tributária e a blindagem de alguns setores que não aceitam o aumento de tributação”, diz Cardoso. “Mas eu entendo esses setores, é compreensível e razoável em um país que tem quase 40% do PIB [Produto Interno Bruto] em termos de tributação”, destaca Cardoso.
O presidente da Frente Parlamentar Mista Nacional da Indústria (FPI) questiona, no entanto, o atual contexto político em que o governo discute duas alíquota para a CBS, na qual a indústria seria mais tributada que o setor terciário.
“O presidente [Bolsonaro] precisa avaliar qual é a proposta que ele tem para a indústria, que é o único setor que tem chances de garantir estabilidade e recuperação econômica”, diz Cardoso. “Não podemos acreditar que as commodities serão eternamente sustentadoras da nossa exportação e do nosso eventual superávit primário, que nem acontece mais, estamos com déficit primário”, acrescenta.
Para Cardoso, Bolsonaro tem todas as chances de continuar sendo referência entre os empresários da indústria, mas que pode depender da equipe econômica revisar sua proposta. “Da forma como anda, a equipe [de Guedes], com medo de perder arrecadação, acaba desacreditando o futuro da expansão da indústria no Brasil”, critica.
Frente Parlamentar dos Serviços defende alíquota diferenciada
Na contramão da indústria, o setor terciário defende uma alíquota diferenciada da CBS por entender que, na prática, a atividade paga, proporcionalmente, mais impostos do que os industriais. “A indústria teria uma alíquota de 12%, só que, na cadeia produtiva, ela compensa tudo, praticamente. O setor de serviços, não”, diz o deputado Laércio Oliveira.
O parlamentar faz referência aos chamados créditos tributários. A legislação prevê benefícios fiscais concedidos para determinados segmentos da indústria, que podem ser tomados em créditos tributários em alguns casos. Em março deste ano, Guedes acusou o que considera ser uma “indústria de crédito tributário” no país. “Acho que o Judiciário tem que dar uma olhada pra esse negócio aí”, disse, em entrevista à rádio Jovem Pan.
Com os créditos tributários, Láercio Oliveira entende que, em vez de uma alíquota de 12%, a indústria conseguiria reduzir, via compensações, para abaixo de 8%. “O setor de serviços, que não tem o que compensar, fica com 8%. Queremos colocar luz em cima da reforma para que a gente consiga avançar exatamente nisso”, diz.
O presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Setor de Serviços destaca, contudo, que o debate acerca das alíquotas da CBS ainda vai se desenvolver na Câmara. “Ainda é uma coisa que se discute bastante. É um debate que vai ser posto à mesa nos próximos dias, mas tenho a impressão por tudo o que eu ouvi que vamos avançar positivamente”, afirma.
Diferentemente do pensamento da indústria, Oliveira defende a reforma tributária fatiada. “Esse modelo que o governo federal tenta apresentar através do Ministério da Economia é inteligente, vai ter bom êxito nas tratativas que serão enfrentadas. O debate vai ser acalorado, existem alguns nichos que já estão definidos, mas precisamos avançar para equilibrar a carga tributária, eliminar ao máximo a burocracia e oferecer segurança jurídica”, destaca.
Frente Parlamentar da Agropecuária vai atuar contra aumento de carga
Enquanto a indústria, o comércio e os serviços se digladiam em uma das “fatias” da reforma tributária, a agropecuária promete enfrentar o governo em outra área da agenda econômica. A ideia de rever a isenção fiscal da LCA para compensar o reajuste do piso de isenção do IRPF repercutiu mal no setor.
O deputado federal Sérgio Souza (MDB-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), afirma que vai procurar Guedes para conversar e evitar qualquer aumento de tributação para o setor. “Não concordamos com qualquer aumento de carga tributária. Não tem nenhum setor no Brasil que está dando a resposta para o crescimento da economia como o agro”, destaca.
Em tom crítico, Souza também questiona o fatiamento da reforma tributária e o ritmo de discussão da matéria. “A reforma tributária ficou sepultada por quase um ano e, agora, retoma, mas de maneira muito devagar numa conversa de que pode ser fatiada e que ninguém entendeu ainda o que é esse fatiamento”, diz.
O presidente da FPA defende impostos mais “justos” em algumas áreas atualmente “travadas” pela alta carga tributária em uma reforma capaz de desburocratizar o país. “O maior custo para o empresário está dentro dessa burocratização que tem. Hoje, os investimentos estão muito travados porque uma empresa que tem extensões em uma meia dúzia de estados tem que ter uma banca de advogados e contadores em cada. Isso encarece o custo de produção”, analisa.
O emedebista reconhece que o governo não tem condições de abrir mão de arrecadação na reforma, mas alerta que a sociedade também não tem condições de pagar mais impostos. “É na reorganização que o governo vai efetivar sua receita e ajudar os setores produtivos e a economia a crescer. Sei que tem alguns pontos que precisam ser organizados, mas precisamos ter cuidado de maneira bem pontual com as questões que envolvem o nosso setor [agro]”, pondera.
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