Liberação do plantio da maconha: mais dúvidas

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Talvez eu deva começar este texto dizendo que nunca vi um tablete de maconha na minha vida, mesmo tendo cursado filosofia numa federal. É que maconha, no Nordeste, costuma ser comercializada in natura: o maconheiro cata as sementes, pica as folhas, bota no papel seda e enrola. A grossura do cigarro fica a critério do maconheiro; se eu fosse cientista social, classificaria os cigarros entre finos (mais fracos) e grossos (mais fortes), para depois mapear a prevalência de tipos de usuários. Dizer que alguém fuma maconha é pouco informativo, assim como é pouco informativa a classificação de “bebedor de álcool”: pode ser absinto, pode ser o álcool de limpeza que um alcoólatra em abstinência toma no desesperado, pode ser uma velhinha que gosta de tomar sidra com as amigas.

Por que a maconha no Nordeste é diferente da do Sul? Em parte, pelo mesmo motivo que o português usa uma palavra da língua banta para se referir ao cânhamo. Em espanhol usa-se uma palavra de origem latina (marijuana); em inglês, algumas de língua inglesa (weed, pot). A maconha chegou até nós por meio dos bantos, ainda no século XVII. A planta adaptou-se bem ao clima do Nordeste. Esteve Nordeste adentro nos séculos XVII, XVIII e XIX sem que fosse crime. De repente, no século XX, a ONU resolve que tem que criminalizar drogas e a maconha se torna um assunto público importante no Brasil.

A outra ocasião em que a maconha se tornou assunto importante foi lá por 1968, quando as drogas ilícitas, maconha inclusa, entraram pesadamente no meio universitário. Olhando em retrospecto, é bem provável que tenha sido de caso pensado, para financiar guerrilha. E é aí que aparece a maconha conhecida no Sul e no Sudeste: prensada, misturada com sabe Deus o quê, proveniente do Paraguai.

Descriminalizar resolve?

É comum, sobretudo na esquerda, o argumento de que precisamos descriminalizar as drogas, porque assim o tráfico acaba. Não deixa de ser uma tautologia: se descriminalizássemos o assassinato, os crimes de homicídio acabariam, porque não são mais crimes, mas os assassinatos continuariam ocorrendo à revelia do sistema legal. Assim, botemos em linguagem clara a teoria: se descriminalizássemos as drogas, as facções narcotraficantes acabariam.

O embasamento disso é a Lei Seca, dos EUA, que proibiu o álcool e armou o a cena para Al Capone deitar e rolar. De fato, se criminalizássemos a goiabada, logo surgiria um mercado negro de goiabada, porque as pessoas não vão parar de comer goiabada após séculos comendo goiabada. Com milênios de consumo de álcool, com o papel litúrgico do vinho no catolicismo e no judaísmo, me é um mistério que os EUA tenham achado uma boa ideia criminalizar o álcool. Quiseram virar muçulmanos? Vá lá: proibições repentinas e autoritárias acarretam as organizações mafiosas.Talvez só tenhamos FARC, CV e PCC por causa da campanha da ONU.

Mas essa implicação não é de mão dupla, ou seja, a descriminalização não acarreta a extinção de organizações mafiosas. Al Capone foi para a cadeia ainda durante a Lei Seca sem que o Estado conseguisse comprovar nada de mais grave que crime fiscal. Será que se a Lei Seca acabasse antes da prisão de Al Capone ele não ficaria ainda mais desimpedido para construir um império mafioso?

Além disso, máfia não surge somente de proibições. Se fosse simples assim, as milícias cariocas não existiriam. Elas comercializam bens e serviços que não são crimes, tais como segurança privada, transporte coletivo urbano, televisão a cabo e gás de cozinha.

Por fim, é sempre bom lembrar que essa discussão de descriminalização de derivados de coca é muito mais complicada do que a da maconha. O Brasil não tem nenhum poder de limpar as origens da cocaína, pois não somos um dos três únicos países do mundo (Colômbia, Bolívia, Peru) capazes de produzir coca – somos apenas vizinhos de todos eles, coalhados de narcoterroristas. E também da Venezuela, que não produz coca mas é o maior exportador de derivados de coca do mundo. O que quer dizer, por fim, que os cracudos do Brasil financiam o chavismo.

A única coisa que a atual legislação brasileira de drogas permite é que os usuários financiem livremente as organizações terroristas daqui e dos vizinhos. Se alguém quiser ter seu pé de maconha e fumar de maneira comedida sem financiar as facções, não pode. Se a indústria quiser plantar maconha para usar a fibra, não pode. Se quiser plantar para extrair canabidiol, tampouco. O que pode é ficar no meio da rua com navalha no bolso, ameaçando transeuntes e dando dinheiro para narcoterroristas.

A única coisa que eu defenderia sem hesitar na política de drogas é a internação compulsória de cracudo – que não pode ser nenhum parquinho, mas deve ter caráter de punição mesmo, para desencorajar recaídas. A manutenção de cracolândias, apoiada por setores da Igreja Católica, é um tremendo auxílio para os narcoterroristas. Para mexer nisso, é preciso dar um basta na interferência do movimento antimanicomial sobre a legislação brasileira.

Maconha em ambiente semiurbano

Já mencionei que moro numa cidade com UFRB, para onde vêm estudantes da capital ficar longe dos olhares dos pais e conhecidos. E mencionei que os nativos abominam os estudantes da UFRB, que, segundo eles, recebem mesada dos pais para morar e ainda ganham auxílios da universidade, que gastam com drogas a serem consumidas no meio da rua, em desrespeito aos moradores.

Pois bem: entre os que detestam os alunos da UFRB contam-se velhos discretos que fumam maconha. E abominam também os “donos de morro” (é como chamam os traficantes que exerce controle territorial). Notando a contradição entre uma coisa e outra (odiar e financiar), perguntei então a um velho maconheiro discreto como ele comprava maconha. Ele vai a uma área isolada da zona rural onde o parente de alguém importante vende a maconha.

Pergunto ainda se esse cidadão é metido com bonde. É. Depois teria notícias de que o Comando Vermelho está chegando à região e matando os miúdos que não querem se submeter. Ou seja: se a liberação do plantio ocorrer, temos um total de zero razão para esperar que o Comando Vermelho e o PCC deixem de fazer o que já fazem, que é forçar o pequeno plantador ou vendedor a aderir a eles.

E a indústria farmacêutica?

Confesso que achei estranha a proposta de descriminalização industrial ser apoiada pela esquerda useira e vezeira no apoio ao tráfico. É verdade que uns caras do PT propuseram a liberação do plantio caseiro, mas acho que foi contando com o veto e garantindo a aparência de que não é exatamente a lei que eles queriam.

Vejam bem: se a indústria farmacêutica vai poder plantar maconha e o usuário é livre pra comprar o que quiser (e ainda ficar enchendo o saco dos outros na rua), para que precisarão de narcoterrorista? Para distribuição? Lavagem de dinheiro? Bom, com a distribuição, dá-se um jeito igual ao dos EUA com as prescription drugs, os opioides. É possível manter uma população viciada e doente mental por meios legais e menos carniceiros com a ajuda de maus médicos e da indústria farmacêutica. Algum jeito de lavar dinheiro eles têm lá, e não deve ser mais difícil lavar no Brasil do que nos EUA.

Outra preocupação que não vi ser levantada é com o skunk, uma maconha de laboratório com uma concentração brutal de THC. Se não houver prevenção contra isso, vamos manter os usuários de maconha tradicionais e comedidos na criminalidade para legalizar uma droga muito pior.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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