“Sem o trabalho feito pela equipe do Drastic, não sei onde estaríamos hoje em relação às origens da Covid-19… As pesquisas desses outsiders tiveram um impacto palpável sobre o discurso científico” (Alina Chan, microbiologista molecular do Broad Institute/MIT e de Harvard)
No contexto da Covid-19, como mostrei no artigo da semana passada, grande parte da imprensa autoproclamada “profissional” chafurdou no antijornalismo e, em conluio com a máfia das Big Techs, fez de tudo – e nesse “tudo” estão incluídos mentira deliberada, censura e assassinato de reputação – para ocultar a hipótese de origem laboratorial do novo coronavírus. Tratou-se, felizmente, de um esforço inútil, uma vez que, graças à baixa credibilidade de que essa imprensa goza hoje junto ao público de todo o mundo (e o surgimento de campanhas sentimentalistas de autopromoção jornalística é sintomático quanto a isso), muita gente não se deixou pautar pela manipulação midiática. Duvidando dos pretensos “consensos científicos” preparados instantaneamente (e em condições moralmente insalubres) no recôndito das redações, essas pessoas recorreram à internet em busca de fontes primárias de informação, que pudessem fornecer pistas sobre a verdadeira origem da pandemia.
Algumas dessas pessoas, oriundas dos mais variados países, e com as mais diversas formações, decidiram reunir-se virtualmente e organizar as informações acumuladas sobre o tema. Foi assim que surgiu o Drastic, um acrônimo para Decentralized Radical Autonomous Search Team Investigating COVID-19 (“Equipe descentralizada, radical e autônoma de investigação da Covid-19”), como o grupo de investigadores amadores passou a se identificar, criando inclusive um website do movimento. No dia 2 de junho, a revista Newsweek publicou uma extensa reportagem sobre o grupo, cujo empenho investigativo mudou radicalmente os rumos do debate público sobre a origem do Sars-CoV-2.
Grande parte da imprensa autoproclamada “profissional” chafurdou no antijornalismo e, em conluio com a máfia das Big Techs, fez de tudo para ocultar a hipótese de origem laboratorial do novo coronavírus
Com efeito, graças ao trabalho do Drastic, hoje sabemos, por exemplo, que o Instituto de Virologia de Wuhan (IVW) possui uma extensa coleção de coronavírus, reunida ao longo de muitos anos de expedições a cavernas de morcegos, e que vários desses vírus – incluindo o parente mais próximo conhecido do Sars-CoV-2 – provêm de uma mina (hoje abandonada) onde três trabalhadores morreram em 2012, vítimas de uma doença similar à Sars e à Covid-19. Que o IVW vem manipulando incessantemente esses vírus (não raro utilizando protocolos de segurança inadequados), e que seus integrantes, bem como as autoridades chinesas, se emprenharam ao máximo para ocultar essas atividades. Que os primeiros casos da Covid-19 surgiram semanas antes da pretensa eclosão no mercado de animais de Huanan, antes tido por epicentro da pandemia.
A matéria da Newsweek centra o foco num dos integrantes do Drastic, um jovem indiano que, no Twitter, utiliza o codinome The Seeker. Com gostos ecléticos, que vão da arquitetura ao cinema, passando pela ciência e tecnologia, The Seeker é um orgulhoso e apaixonado autodidata, aficionado por explorar os rincões da internet relativamente não patrulhados pelo Google e outras gigantes do Vale do Silício. Como a maioria das pessoas, de início ele aceitara passivamente a narrativa hegemônica na imprensa, segundo a qual a ciência formara um consenso sobre a origem natural do Sars-CoV-2. Depois, gradativamente, a sua investigação particular sobre as causas da pandemia levou-o a duvidar desse alegado consenso.VEJA TAMBÉM:
Quando The Seeker deu início à sua jornada investigativa, é bom lembrar, Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance (ONG que financiou os estudos em “ganho de função” do IVW), havia organizado a publicação na The Lancet de uma carta assinada por 27 cientistas, cujo conteúdo pautaria a imprensa mundial na estigmatização da hipótese de origem laboratorial do novo coronavírus como “teoria da conspiração”. Hoje, graças ao Foia (Freedom of Information Act), sabemos o quão político (e não científico) foi esse documento, e o quanto Daszak se empenhou para apagar as pistas do seu conflito de interesses no caso. “Essa carta não terá o logo da EcoHealth Alliance e não será identificada como tendo vindo de nenhuma pessoa ou organização a ela ligada” – escreveu Daszak em e-mail enviado a colaboradores, datado de 6 de fevereiro de 2020. “A ideia é sugerir que a comunidade científica está apoiando os nossos colegas”. Como costumo dizer, os “consensos científicos” são como as salsichas: melhor não saber como são feitos.
Uma das primeiras peças de evidência a ter chamado a atenção de The Seeker, abalando a sua fé naquele “consenso” embutido, foi um longo texto postado no Medium pelo empresário canadense (também membro do Drastic) Yuri Deigin. No texto, Deigin discutia o RaTG13, um vírus que Shi Zhang-li – a “mulher morcego”, líder das pesquisas com coronavírus no IVW – revelara ao mundo em 3 de fevereiro de 2020, num artigo publicado na Nature. Nele, Shi apresentava também a primeira análise aprofundada do Sars-CoV-2, um vírus que, além de estruturalmente distinto dos demais coronavírus (incluindo o Sars-CoV-1), ninguém sabia de onde tinha vindo. Segundo Shi e demais autores do artigo, o RaTG13 – cuja origem numa caverna de Yunnan é descrita apenas vagamente no texto – era geneticamente aparentado ao Sars-CoV-2, tornando-se, assim, o seu parente mais próximo até então conhecido.
Os “consensos científicos” são como as salsichas: melhor não saber como são feitos
O artigo da Nature pôs uma pulga atrás da orelha de Deigin, que, de maneira lógica e convincente, começou a especular sobre a hipótese de o Sars-CoV-2 ter surgido de uma manipulação genética laboratorial do RaTG13 ou de algum vírus aparentado. Impressionado com o texto de Deigin, The Seeker resolveu postá-lo no Reddit, decisão que lhe custou a suspensão permanente de sua conta na plataforma. Àquela altura, as Big Techs já haviam iniciado sua cruzada contra a ciência e a liberdade de expressão.
A censura incitou ainda mais a curiosidade do jovem indiano, que, por intermédio de Deigin, conheceu outros membros do Drastic, sentindo-se imediatamente acolhido e intelectualmente estimulado pelas discussões daquele grupo tão ecleticamente composto, que incluía empresários, engenheiros e uma microbiologista da Universidade de Innsbruck (Áustria), Rossana Segreto. Nenhum dos integrantes se conhecia previamente. Todos convergiram para o fórum de discussão depois de haver concluído, independentemente, que a versão então estabelecida sobre a origem da Covid-19 não fazia sentido.VEJA TAMBÉM:
Com o avanço de suas pesquisas e a intensificação do intercâmbio de informações, os membros do Drastic estavam cada vez mais convencidos de que o vírus RaTG13 era a chave do mistério. Numa thread impressionante no Twitter – que, em contraste com o estelionato pseudocientífico posto em prática pela imprensa dita “profissional”, acabou virando exemplo de jornalismo investigativo sério e honesto –, o grupo vasculhou na selva da internet, e em velhos artigos científicos publicados pelo IVW, à cata de pistas. E estas não demoraram a surgir.
O grupo descobriu, por exemplo, que a sequência genética do RaTG13 combinava perfeitamente com uma pequena parcela de um código genético publicado como parte de um trabalho escrito por Shi Zhang-li anos antes, e depois nunca mais comentado. O código genético provinha de um vírus que pesquisadores do IVW haviam encontrado num morcego em Yunnan. Ligando os pontos daquele trabalho e do artigo da Nature, e correlacionando-os a outras informações dispersas pela rede, o Drastic descobriu que o RaTG13 viera de uma mina no condado de Mojiang, na província de Yunnan, onde seis homens que raspavam guano de morcego contraíram pneumonia, tendo três deles vindo a óbito. E a pergunta surgiu necessariamente: seriam esses os primeiros casos de seres humanos infectados por um precursor do Sars-CoV-2, quiçá o RaTG13? Veremos no artigo da semana que vem como os integrantes do Drastic foram atrás dessa e de outras respostas.
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