Por ampla maioria, Câmara aprova projeto que enfraquece a Lei de Improbidade Administrativa

Em votação realizada às pressas e sem discussão mais ampla, a Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (16) o projeto que muda a Lei de Improbidade Administrativa. O texto altera dispositivos da lei que podem enfraquecer o combate à corrupção no país, segundo agentes do Ministério Público e de entidades que fiscalizam a transparência pública.

Com apoio da bancada governista e da oposição, o projeto foi aprovado por ampla maioria: foram 408 votos a favor e apenas 67 contra a proposta. O texto ainda precisa passar pelo Senado Federal.

Uma das alterações na lei prevê que, para punir um agente público, é preciso provar que ele teve a intenção de praticar um ato que caracterize a improbidade administrativa. Pela legislação em vigor, a punição pode ser aplicada mesmo se a investigação não conseguir caracterizar que houve má-fé do gestor.

O projeto de lei também livra agentes públicos de serem processados se a atitude deles não causar perda patrimonial ao Estado e dificulta a punição de empresas que se envolveram em atos de improbidade.

Em duas mudanças de última hora, cuja extensão dos efeitos ainda não está clara, o “atovisando fim proibido em lei” deixa de ser improbidade, bem como a transferência de recursos a entidades privadas de saúde sem a celebração prévia de contrato.

Alguns trechos aprovados, porém, foram mais brandos do que na primeira versão do projeto. Esses trechos tratam de punições e prazos prescricionais.

Uma mudança mais significativa em relação ao projeto original é que o texto aprovado manteve como ato de improbidade práticas como o nepotismo e a “carteirada” de agentes públicos — o primeiro relatório do deputado Carlos Zarattini (PT-SP) “liberava” esse tipo de atitude.

Outra novidade é que a propaganda pública com caráter personalista passa a ser improbidade (veja abaixo a lista das principais mudanças).

Mudanças na Lei de Improbidade foram feitas “às escuras” e às pressas

O projeto que muda a Lei de Improbidade foi votado em regime de urgência no plenário. O texto aprovado só foi protocolado na Câmara no fim da tarde da terça-feira (15), véspera da votação, e não chegou a ser apreciado pela comissão criada para analisá-lo, o que costuma ser a praxe na Câmara.

Diversas correntes políticas apoiam a ideia de mudar a Lei de Improbidade. Nos bastidores, a proposta é vista como uma reação do Congresso contra a Lava Jato.

O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (ex-DEM-RJ) foi quem criou o grupo de trabalho que apresentou uma proposta inicial para mudar a Lei de Improbidade. O texto final foi relatado pelo deputado Carlos Zarattini (SP), do PT.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR) disse recentemente que o projeto era uma das prioridades da Câmara. O presidente Jair Bolsonaro também chegou a defender mudanças na lei. E o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi quem estabeleceu o regime de urgência para votá-lo, num acordo costurado com os líderes partidários.

Durante a votação, Lira rebateu os opositores ao texto afirmando que a votação é um avanço institucional e que prefeitos, gestores e ministros apoiam a mudança. “O projeto irá destravar os empecilhos que atualmente mais confundem e paralisam do que efetivamente preservam o interesse público […] Gestão pública no Brasil não é fácil. Vamos assegurar ao bom gestor a retaguarda para que possa ajudar o país em sua honrosa missão, sem estar vulnerável, por conta das leis que são feitas, para criar dúvidas e não para reforçar as certezas”, defendeu Lira.

Já o líder do Novo na Câmara, deputado Vinicius Poit (SP) chegou a pedir a retirada do projeto da pauta de hoje. Segundo o deputado, o texto ainda precisava de melhorias.

” Nós colocamos esse requerimento de retirada de pauta após conversarmos sim com o relator, mas não chegarmos a um consenso. Entendemos que existem pontos nessa lei que carecem de melhoria se for para nós apertarmos o combate à corrupção e sim olhar para o bom gestor”, disse.

Líder do governo e defensor da matéria, Ricardo Barros, orientou contra a retirada de pauta e indicou que o “governo quer votar essa lei que altera a Lei da Improbidade”.

“Eu fui gestor municipal, Prefeito de Maringá, Secretário da Indústria e Comércio do Paraná, Ministro da Saúde, gestor público nos três níveis, e posso assegurar que o apagão das canetas está prejudicando muito o nosso País. As pessoas não querem mais decidir. As pessoas não querem mais tomar o seu poder discricionário de escolher um caminho, uma solução, porque são atacadas de forma irascível pelos órgãos de controle.. Então, dizer com clareza o que é improbidade, dizer que é preciso haver dolo e dano ao Erário para ser improbidade, e aumentar a pena daqueles que realmente cometeram improbidade é um excelente caminho para o Brasil” argumentou.

No mesmo caminho, o relator argumentou que as modificações evitarão que os gestores públicos se sintam ameaçados a todo tempo pelos órgãos de fiscalização. “Queremos ter uma lei que, de fato, puna quem tem que ser punido, aqueles que causam dano ao patrimônio público e os corruptos. E queremos ao mesmo tempo permitir que os gestores, os administradores, tenham liberdade para exercer, dentro da lei, suas atribuições”, afirmou Zarattini.

MP critica pressa em mudar a Lei de Improbidade

A pressa da Câmara em votar a proposta e o próprio projeto foram criticados por entidades de combate à corrupção e pelo Ministério Público. O MP e essas entidades chegaram a apresentar sugestões de alterações no texto inicialmente apresentado, mas não obtiveram retorno da Câmara até a votação.

“Há uma ausência total de debate em relação ao projeto. O momento é inoportuno em relação à pandemia. A pressa e a falta de conhecimento prévio [ do projeto] nos deixam em uma situação de apreensão”, disse à Gazeta do Povo na segunda-feira (14) Manoel Murrieta, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).

Também na segunda-feira, o procurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Mário Sarrubbo, disse que a Câmara estaria tentando “passar a boiada” com o projeto. Para ele, a intenção seria travar o trabalho dos órgãos de combate à corrupção. “A Lei de Improbidade é uma das mais importantes legislações no combate à pandemia da corrupção. Será que a população quer mesmo tornar a Lei da Improbidade na Lei da Impunidade?”, questionou o procurador.

Presidente da Frente Parlamentar Mista de Combate à Corrupção, a deputada Adriana Ventura (Novo-SP) também criticou a votação da matéria sem um amplo debate. “O Brasil já teve muitos impactos negativos no combate à corrupção nesses dois [últimos] anos. Votar a reforma da Lei de Improbidade Administrativa direto no plenário, sem a devida discussão nas comissões, pode ser mais um forte impacto no Brasil que luta pela integridade e moralidade”, afirmou à Gazeta do Povo.

Ponto a ponto, as principais mudanças na Lei de Improbidade

Confira as principais mudanças na Lei de Improbidade Administrativa que constam do projeto aprovado pelos deputados (e também aquilo que poderia ter mudado e foi mantido):

Improbidade não intencional deixa de ser improbidade

Entre as principais alterações que estão no relatório final apresentado por Zarattini está a eliminação da forma culposa de cometimento do ato de improbidade. Ou seja, apenas quando as condutas forem praticadas com dolo – ou seja, com intenção – elas poderão ser punidas pela Justiça.

O relatório de Zarattini prevê a alteração do artigo 9.º da Lei de Improbidade, que estabelece que “constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade”.

O relator também acrescentou um novo parágrafo ao artigo 18, em que estabelece que “a ilegalidade, sem a presença de dolo que a qualifique, não configura ato de improbidade”.

Negligência deixa de ser improbidade

Outra alteração importante que consta do relatório de Zarattini é a substituição do termo “negligentemente” para “ilicitamente” em alguns incisos do artigo 10. A redação do inciso X ficará da seguinte forma: “agir ilicitamente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público”. Na lei atual, a palavra usada, em vez de “ilicitamente”, é “negligentemente”. Na prática, isso significa que a negligência e a má gestão não poderão caracterizar ato de improbidade.

Só é improbidade se o Estado tiver perda patrimonial

A redação proposta por Zarattini para inciso VIII do artigo 10 estabelece que só haverá improbidade administrativa quando ações do agente público acarretar “perda patrimonial efetiva” ao Estado na dispensa irregular de licitação ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos. Ou seja, um ato só vai ser improbidade se a administração pública perder dinheiro com isso.

“Ato visando fim proibido em lei” deixa de ser improbidade

No relatório final apresentado na terça-feira, às vésperas da votação, o deputado Zarattini optou por tirar da legislação atual um dispositivo que considera improbidade “praticar ato visando fim proibido em lei”. Ainda não está clara a extensão dos efeitos dessa mudança.

Transferência para entidade privada de saúde sem contrato prévio deixa de ser punida

Outra mudança de última hora no texto foi a exclusão, da lista de atos de improbidade previsto na lei atualmente em vigência, das transferências de “recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere”.

Tentativa de poupar empresas

O relatório sobre a nova Lei de Improbidade Administrativa também mostra uma preocupação em relação à punição de empresas envolvidas nesse tipo de delito, que pode vir a poupá-las de punição mais rigorosa. O relator acrescentou um parágrafo ao artigo 12, que trata das punições, em que está escrito o seguinte: “na responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados os efeitos econômicos e sociais das sanções, de modo a viabilizar a manutenção de suas atividades”.

Há, em seguida, mais um parágrafo sobre pessoas jurídicas, que estabelece que “em caráter excepcional e por motivos relevantes devidamente justificados, a pena de proibição de contratação com o poder público pode extrapolar o ente público lesado pelo ato de improbidade, devendo-se sempre observar os impactos econômicos e sociais das sanções, de forma a preservar a função social do empreendimento”.

Revisão das punições

O relatório de Zarattini também promoveu mudanças em relação às punições de condenados por improbidade administrativa. Em seu primeiro texto, o petista pretendia punições mais brandas para os crimes, o que foi duramente criticado.

Nos atos que envolvem enriquecimento ilícito, ele ampliou a suspensão dos direitos políticos para 14 anos. Na lei atual, o período é de 8 a 10 anos.

Nas penas para improbidade que causam prejuízo aos cofres públicos, a suspensão dos direitos políticos passa de 5 a 8 anos para até 12 anos.

Mas, na contramão, o relator reduziu o valor da multa civil cobrada dos condenados. A punição cai de até 100 vezes o valor da remuneração recebida para até 24 vezes.

No entanto, Zarattini contemplou a possibilidade de a multa poder ser aumentada até o dobro se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, o valor da penalidade calculada no projeto seria ineficaz para reprovação e prevenção do ato de improbidade. As sanções só poderão ser executadas com o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Já a proibição de o condenado firmar contratos com o poder público passa do prazo de três para quatro anos.

Prazos para a investigação e para a prescrição

O relatório de Zarattini também muda regras para prescrição de atos de improbidade e altera os prazos para investigação. Na lei atual, os atos de improbidade administrativa prescrevem cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança. E também prescrevem em até cinco anos da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades contratadas.

O relatório de Zarattini estabelece a prescrição em oito anos, contados a partir da ocorrência do fato e torna imprescritível a pretensão a ressarcir os prejuízos ao Estado e a reaver bens e valores apropriados ilicitamente do poder público. O primeiro relatório previa que esse prazo fosse de apenas cinco anos.

Além disso, o relator acrescentou no projeto o limite de 180 dias corridos para a conclusão do inquérito que apure atos de improbidade. A investigação só pode ser prorrogada uma única vez, por igual período. Depois disso, caso não se opte pelo arquivamento, a ação deverá ser proposta em até 30 dias.

“Carteirada”, nepotismo tortura seguem como crimes de improbidade

Uma das principais mudanças em relação ao primeiro relatório de Zarattini foi que ele decidiu manter a redação do artigo 11 da legislação atual. O trecho tipifica quais são as condutas caracterizadoras de ofensa aos princípios administrativos.

Na prática, o projeto aprovado manteve o entendimento de que são atos de improbidade práticas tais como a “carteirada” de agentes públicos, a tortura de presos por parte de agentes carcerários, as contratações de parentes no setor público (nepotismo). Em seu primeiro relatório, Zarattini só tornava ilegal o nepotismo quando parentes de políticos fossem nomeados “para função de confiança ou cargo em comissão sem que o nomeado ostente adequada capacitação”.

A revogação desse artigo era um dos pontos mais criticados na primeira redação apresentada pelo petista. A emenda acatada diz que é ilegal “nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau (…) para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes”.

Segundo o relator, a exclusão por completo desse tipo de improbidade “não seria a melhor opção legislativa, pois haveria necessidade de se impor sanções mais severas aos agentes públicos que pratiquem atos que causem inequívoca ofensa aos princípios consagrados pelo ordenamento constitucional”.

Propaganda personalista vira ato de improbidade

O texto aprovado traz ainda um dispositivo que inclui entre atos de improbidade praticar, na administração pública e com recursos públicos, ato de publicidade que contrarie a Constituição e que promova “inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, programas, obras, serviços ou campanhas dos órgãos públicos”.

No entanto, o texto prevê que a improbidade só será considerada quando ficar “comprovado o fim de obter um proveito ou benefício indevido para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade”.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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