A pandemia da Covid-19 abalou vidas ao redor do mundo por mais de um ano. Suas vítimas fatais atingiram mais de três milhões. Contudo, a origem da pandemia continua incerta: os compromissos políticos de governos e cientistas geraram nuvens densas de ofuscação que a imprensa tradicional parece incapaz de dissipar.
No texto que se segue, organizarei os fatos científicos disponíveis, que contêm muitas pistas do que aconteceu, e fornecerei aos leitores as evidências para que tirem as próprias conclusões. Tentarei então avaliar a questão complexa da culpa, que começa com o governo da China, mas vai bem além dele.
Até o fim deste artigo, você poderá ter aprendido bastante sobre a biologia molecular dos vírus. Tentarei fazer esse processo tão confortável quanto possível. Mas não se pode evitar a ciência a respeito agora, e provavelmente por muito tempo, uma vez que ela oferece o único fio através do labirinto.
O vírus que causou a pandemia é chamado oficialmente de SARS-CoV-2, mas pode ser chamado abreviadamente de SARS2. Como muitas pessoas sabem, há duas principais teorias sobre as suas origens. Uma é que ele saltou naturalmente de animais silvestres para as pessoas. A outra é que o vírus estava sob estudo em um laboratório do qual escapou. É muito importante saber qual delas é o caso, se esperamos prevenir uma segunda ocorrência.
Descreverei as duas teorias, explicarei por que cada uma é plausível, e então perguntarei qual delas dá a melhor explicação para os fatos disponíveis. É importante notar que, até agora, não há evidência direta para nenhuma das teorias. Cada uma delas depende de um conjunto de conjecturas razoáveis, mas até o momento não está provada. Portanto, só tenho pistas, não conclusões, para oferecer. Mas essas pistas apontam numa direção específica. E, após inferir essa direção, delinearei alguns dos fios nessa meada embaraçada de desastres.
Um conto de duas teorias
Depois que houve o primeiro surto da pandemia em dezembro de 2019, as autoridades chinesas relataram que muitos casos tinham ocorrido no mercado de Huanan — um lugar que vende animais silvestres para consumo da carne — em Wuhan. Para os especialistas isso lembrou a epidemia de SARS1 de 2002 , na qual um vírus de morcego se espalhara primeiro para civetas, um mamífero vendido nesse tipo de mercado, e das civetas para humanos. Um vírus de morcego similar causou uma segunda epidemia, conhecida como MERS, em 2012. Dessa vez, os hospedeiros intermediários eram camelos.
A decodificação do genoma do vírus mostrou que ele pertence a uma família viral conhecida como a dos beta-coronavírus, à qual os vírus SARS1 e MERS também pertencem. O parentesco entre eles apoiou a ideia de que, como os outros, o SARS2 era um vírus natural que conseguira saltar dos morcegos para outro hospedeiro e dele para humanos. A conexão com o mercado de carnes, o único outro ponto de similaridade com as epidemias de SARS1 e MERS, logo foi quebrada: os pesquisadores chineses descobriram casos anteriores em Wuhan sem ligação ao mercado. Mas isso não parecia importar, logo, esperava-se, muitas outras evidências apoiando a emergência natural seriam encontradas.
Wuhan, no entanto, é onde fica a sede do Instituto de Virologia de Wuhan, um centro mundial de pesquisa de ponta para a pesquisa em coronavírus. Então, a possibilidade de que o vírus SARS2 escapara do laboratório não poderia ser descartada. Tínhamos na mesa dois cenários razoáveis de origem.
Desde o começo, as percepções do público e da mídia foram moldadas a favor do cenário de emergência natural por declarações fortes dadas por dois grupos científicos. Essas declarações não foram examinadas de uma forma tão crítica como deveriam ter sido.
“Estamos unidos para condenar veementemente as teorias da conspiração que sugerem que a COVID-19 não tem uma origem natural”, um grupo de virologistas e outros escreveram na Lancet em 19 de fevereiro de 2020, quando era muito cedo para qualquer um ter convicções sobre o que tinha acontecido. Cientistas “concluem em maioria absoluta que este coronavírus se originou entre animais silvestres”, disseram eles, com um sinal de alerta e um chamado para que os leitores apoiassem os colegas chineses na linha de frente contra a doença.
Ao contrário do que alegam os autores da carta, a ideia de que o vírus pode ter escapado de um laboratório envolve acidente, não conspiração. Certamente merecia ser explorada, não rejeitada sumariamente. Uma marca definidora de bons cientistas é que estão dispostos a um grande esforço para distinguir entre o que eles sabem do que não sabem. Por esse critério, os signatários da carta da Lancet se comportaram como maus cientistas: estavam assegurando ao público que fatos sobre os quais não podiam saber com certeza eram verdadeiros.
Depois, descobriu-se que a carta da Lancet fora organizada e rascunhada pelo Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, de Nova York. A organização do dr. Daszak financiou pesquisa com coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan. Se o vírus SARS2 de fato escapou de pesquisa que ele financiou, o dr. Daszak seria potencialmente imputável. Esse grave conflito de interesses não foi revelado para os leitores da Lancet. Em vez disso, a carta concluiu com “Declaramos ausência de interesses em conflito”.
Virologistas como o dr. Daszak tinham muito a perder se fossem culpados pela pandemia. Por 20 anos, na maior parte sem atenção do público, estiveram brincando com algo perigoso. Em seus laboratórios, tinham a rotina de criar vírus mais perigosos do que os que existem na natureza. Alegaram que poderiam fazê-lo de forma segura, e que, ao antecipar a natureza, poderiam prever e prevenir “transbordamentos” naturais, quando os vírus migram de um hospedeiro animal para humanos. Se o SARS2 realmente tivesse escapado de um experimento laboratorial desse tipo, uma retaliação violenta seria esperada, e a tempestade de indignação pública afetaria os virologistas em toda parte, não apenas na China. “Desmoronaria o edifício científico de cima para baixo”, disse Antonio Regalado, editor da MIT Technology Review, em março de 2020.
Uma segunda declaração que teve enorme influência em moldar as atitudes do público foi uma carta (em outras palavras, um artigo de opinião, não um artigo científico) publicada em 17 de março de 2020 na revista Nature Medicine. Seus autores eram um grupo de virologistas liderados por Kristian G. Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps. “Nossas análises mostram claramente que o SARS-CoV-2 não é um constructo laboratorial ou um vírus manipulado de propósito”, os cinco virologistas declararam no segundo parágrafo de sua carta.
Infelizmente, foi outro caso de ciência ruim, no sentido definido acima. É verdade que métodos mais antigos de cortar e colar genomas virais retêm sinais claros de manipulação. Mas os novos métodos, chamados de abordagens “no-see-um” ou “inteiriças”, não deixam marcas definitivas. Nem outros métodos de manipulação de vírus como a passagem em série, a transferência repetida de vírus de uma cultura de células para outra. Se um vírus fora manipulado, com um método inteiriço ou por passagem serial, não há jeito de saber se este foi o caso. O dr. Andersen e seus colegas estavam assegurando aos seus leitores algo que não poderiam saber.
A seção de discussão de sua carta começa com “É improvável que o SARS-CoV-2 tenha emergido através de manipulação laboratorial de um coronavírus similar a ele”. Mas espere, o líder não tinha dito que o vírus claramente não foi manipulado? O grau de certeza dos autores parece ter derrapado em vários graus no tocante à exposição do seu raciocínio.
A razão para a derrapagem é clara, uma vez que a linguagem técnica tenha sido penetrada. As duas razões que os autores dão para supor que a manipulação é improvável são definitivamente inconclusivas.
Primeira: dizem que a proteína de espícula do SARS2 faz uma ligação muito forte com o seu alvo, o receptor humano ACE2, mas faz de uma forma diferente da que os cálculos físicos sugerem que é o melhor encaixe. Portanto, o vírus deve ter surgido pela seleção natural, não pela manipulação.
Se esse argumento parece difícil de entender, é porque é muito forçado. O pressuposto básico dos autores, não dado por extenso, é que qualquer pessoa que tente fazer um vírus de morcego se ligar a células humanas poderia fazê-lo só de um jeito. Primeiro, calcularia o encaixe mais forte possível entre o receptor ACE2 humano e a proteína de espícula, com a qual o vírus se liga a ele. Depois projetariam a proteína de espícula com base nisso (selecionando a sequência correta de resíduos de aminoácidos que a compõem). Mas, já que a proteína de espícula do SARS2 não apresenta essa configuração ótima, diz o artigo de Andersen, ela não pode ter sido manipulada.
Mas isso ignora a forma com que virologistas de fato fazem proteínas de espícula se ligarem a alvos escolhidos, que não é pelo cálculo, mas por edição de genes de proteína de espícula de outros vírus ou pela passagem em série. Com a passagem em série, a cada vez que a prole do vírus é transferida para novas culturas de células ou animais, as partículas virais mais bem-sucedidas são selecionadas até que emerja alguma que faz uma ligação bem forte com as células humanas. A seleção natural faz a parte mais difícil. A especulação do artigo de Andersen sobre projetar uma proteína de espícula viral através de cálculos não tem relação com a possibilidade de o vírus ter ou não sido manipulado por um dos outros dois métodos.
O segundo argumento dos autores contra a manipulação é ainda mais artificial. Embora a maioria dos seres vivos usem o DNA como seu material de herança, muitos vírus usam o RNA, o primo químico do DNA. Mas o RNA é difícil de manipular, de forma que os pesquisadores que trabalham com os coronavírus, que usam o RNA, primeiro converterão o genoma de RNA para o DNA. Eles manipulam a versão de DNA, adicionando ou alterando genes, e depois preparam o genoma de DNA manipulado para ser reconvertido em RNA infeccioso.
Só alguns desses alicerces de DNA foram descritos na literatura científica. Qualquer pessoa que manipulasse o vírus SARS2 “provavelmente teria usado” um desses alicerces conhecidos, segundo o grupo Andersen, e, uma vez que o SARS2 não deriva de nenhum deles, conclui-se que não foi manipulado. Mas o argumento é claramente inconclusivo. Alicerces de DNA são bem fáceis de fazer, então é obviamente possível que o SARS2 tenha sido manipulado com o uso de um alicerce de DNA não publicado.
E pronto. Esses são os dois argumentos oferecidos pelo grupo Andersen em apoio à sua declaração de que o vírus SARS2 claramente não foi manipulado. E essa conclusão, baseada em nada mais que duas especulações inconclusivas, convenceu a imprensa internacional que o SARS2 não poderia ter escapulido de um laboratório. Uma crítica técnica da carta de Andersen acaba com ela com palavras mais duras.
A ciência supostamente é uma comunidade autocorretiva de especialistas que verificam constantemente o trabalho uns dos outros. Então por que outros virologistas não apontaram que o argumento do grupo de Andersen estava cheio de buracos absurdos de grandes? Talvez porque atualmente, nas universidades, a expressão pode ter um custo muito alto. Carreiras podem ser destruídas por pisar fora da linha. Qualquer virologista que enfrente a opinião declarada da comunidade arrisca ter a próxima verba recusada por um painel de colegas virologistas que aconselha a agência de financiamento do governo.
As cartas de Daszak e Andersen eram na verdade declarações políticas, não científicas, mas mesmo assim foram eficazes de forma impressionante. Os artigos na imprensa dominante repetidamente afirmaram que um consenso de especialistas havia descartado o vazamento laboratorial como fora de questão e extremamente improvável. Os jornais dominantes todos têm jornalistas de ciência em suas equipes, como também têm as grandes redes televisivas, e é de se esperar que esses repórteres especializados possam questionar os cientistas e checar as suas asserções. Mas as asserções de Daszak e Andersen seguiram na maior parte sem desafio nenhum.
Dúvidas sobre a emergência natural
A emergência natural foi a teoria preferida da mídia até fevereiro de 2021, quando aconteceu a visita da comissão da Organização Mundial da Saúde à China. A composição da comissão e o acesso dela tiveram controle pesado das autoridades chinesas. Seus membros, que incluíram o sempre presente dr. Daszak, repetidamente afirmaram antes, durante e depois da visita que o vazamento de laboratório era extremamente improvável. Mas essa não foi a vitória da propaganda que as autoridades chinesas queriam. O que ficou claro foi que os chineses não tinham evidência para oferecer à comissão em apoio à teoria da emergência natural.
Isso foi surpreendente, pois os vírus SARS1 e MERS haviam deixado pistas abundantes no ambiente. A espécie hospedeira intermediária do SARS1 foi identificada dentro de quatro meses da eclosão da epidemia, e o hospedeiro do MERS, dentro de nove meses. No entanto, cerca de 15 meses após o começo da pandemia do SARS2, e, presume-se, de uma busca intensa, os pesquisadores chineses falharam em encontrar a população de morcegos original ou a espécie intermediária para a qual o SARS2 poderia ter saltado, ou qualquer evidência serológica de que qualquer população chinesa, incluindo a de Wuhan, já tivesse sido exposta ao vírus antes de dezembro de 2019. A emergência natural continuou sendo uma conjectura que, por mais que fosse plausível no começo, não teve o menor sinal de evidência apoiadora em mais de um ano.
E, enquanto este for o caso, é lógico prestar uma atenção séria à conjectura alternativa, que o SARS2 escapou de um laboratório.
Por que alguém desejaria criar um vírus novo capaz de causar uma pandemia? Desde que os virologistas ganharam as ferramentas para manipular os genes dos vírus, têm defendido que poderiam antecipar uma pandemia em potencial explorando com que facilidade um dado vírus animal poderia saltar para humanos. E isso justificaria os experimentos laboratoriais que visem melhorar a capacidade de vírus animais perigosos de infectar pessoas, disseram os virologistas.
Com essa justificativa, eles recriaram o vírus da gripe de 1918, mostraram como o vírus quase extinto da poliomielite pode ser sintetizado a partir de sua sequência de DNA publicada, e introduziram o gene da varíola em um vírus aparentado.
Esses aperfeiçoamentos de capacidades virais são conhecidos pelo nome brando de experimentos de ganho de função. Com os coronavírus, houve um interesse em particular nas proteínas de espícula, que cobrem toda a superfície esférica do vírus e praticamente determinam qual espécie de animal será o alvo. No ano 2000, pesquisadores holandeses, por exemplo, ganharam a gratidão de roedores em toda parte ao projetar com engenharia genética a proteína de espícula de um coronavírus de camundongo de forma que ele só atacasse gatos.
Os virologistas começaram a estudar coronavírus de morcegos com afinco após a descoberta de que eram a fonte das epidemias de SARS1 e MERS. Em especial, os pesquisadores queriam entender que mudanças precisavam ocorrer nas proteínas de espícula de um vírus de morcego para que ele possa infectar humanos.
Pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan, chefiado pela especialista de ponta em vírus de morcegos dra. Shi Zhang-li, a “Mulher Morcego”, organizaram expedições frequentes a cavernas infestadas de morcegos em Yunnan, no sul da China, e coletaram cerca de cem coronavírus diferentes de morcegos.
A dra. Shi depois fez parceria com o Ralph S. Baric, um pesquisador eminente de coronavírus da Universidade da Carolina do Norte. O trabalho deles teve como foco melhorar a capacidade de vírus de morcego de atacar humanos para “examinar o potencial de emergência (isto é, o potencial de infectar humanos) de CoVs [coronavírus] de morcegos em circulação”. Com este fim, em novembro de 2015 criaram um novo vírus tomando o alicerce do vírus SARS1 e substituindo sua proteína de espícula com uma de vírus de morcego (conhecido como SHC014-CoV). Esse vírus fabricado tinha a capacidade de infectar células das vias aéreas humanas, ao menos quando testado em uma cultura laboratorial desse tipo de célula.
O vírus SHC014-CoV/SARS1 é chamado de quimera, pois o seu genoma contém o material genético de duas cepas de vírus. Se o vírus SARS2 tiver sido cozinhado no laboratório da dra. Shi, então o seu protótipo direto teria sido a quimera viral SHC014-CoV/SARS1, cujo perigo em potencial preocupou muitos observadores e provocou debates intensos.
“Se o vírus escapuliu, ninguém poderia prever a trajetória”, disse Simon Wain-Hobson, virologista do Instituto Pasteur em Paris.
O dr. Baric e a dra. Shi se referiram aos riscos óbvios em seu próprio artigo, mas defenderam que os riscos deveriam ter o contrapeso dos benefícios de antecipar futuros transbordamentos virais. Comitês de pesquisa, escreveram, “podem considerar estudos similares de construção de vírus quiméricos baseados em cepas em circulação arriscados demais para explorar”. Dadas as várias restrições implementadas às pesquisas de ganho de função (GF), a questão havia chegado, na opinião deles, numa “encruzilhada de preocupações com pesquisas GF; o potencial de se precaver e mitigar surtos futuros deve ter o contrapeso do risco de criar mais patógenos perigosos. Nas políticas a serem desenvolvidas adiante, é importante considerar o valor dos dados gerados por esses estudos e a possibilidade de esses tipos de estudos com vírus quiméricos justificarem mais investigação versus os riscos inerentes envolvidos”.
Essa declaração foi publicada em 2015. Olhando em retrospectiva a partir de 2021, pode-se dizer que o valor dos estudos de ganho de função em prevenir a epidemia de SARS2 foi zero. O risco foi catastrófico, se de fato o vírus SARS2 foi gerado em um experimento de ganho de função.
Por dentro do Instituto de Virologia de Wuhan
O dr. Baric desenvolvera um método geral de projetar coronavírus de morcego para atacar outras espécies e o ensinou à dra. Shi. Os alvos específicos eram células humanas cultivadas em laboratório e camundongos humanizados. Esses camundongos de laboratório, substitutos baratos e éticos para seres humanos, são geneticamente modificados para carregar a versão humana de uma proteína chamada ACE2, que cobre a superfície das células que forram as vias aéreas.
A dra. Shi retornou a seu laboratório no Instituto de Virologia de Wuhan e voltou ao trabalho que tinha começado para modificar coronavírus geneticamente para atacar células humanas. Como podemos ter certeza disso?
Porque, por uma reviravolta estranha na história, o trabalho dela foi financiado pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), uma parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. E as verbas que financiaram o trabalho dela, cujos projetos são abertos para consulta do público, especificam exatamente o que ela planejava fazer com o dinheiro.
As verbas foram atribuídas ao contratante principal, o dr. Daszak da EcoHealth Alliance, que subcontratou a dra. Shi. Eis a seguir excertos dos projetos para os anos fiscais de 2018 e 2019. “CoV” quer dizer coronavírus e “proteína S” se refere à proteína de espícula dos vírus.
“Testar previsões de transmissão interespécies de CoV. Modelos preditivos de variedade de hospedeiros (isto é, potencial de emergência) serão testados experimentalmente usando genética reversa, pseudovírus e ensaios de ligação a receptores, e experimentos de infecção com vírus por uma gama de culturas de células de diferentes espécies e camundongos humanizados.”
“Usaremos dados de sequência de proteína S, tecnologia de clonagem de agentes infecciosos, experimentos de infecção in vitro e in vivo e análise de ligação de receptor para testar a hipótese de que os limiares de porcentagem de divergência nas sequências de proteína S preveem o potencial de transbordamento.”
O que isso significa, em linguagem não técnica, é que a dra. Shi se pôs a criar novos coronavírus com a infecciosidade mais alta possível em células humanas. Seu plano era pegar genes que codificavam proteínas de espícula que possuíam uma variedade de afinidades medidas às células humanas, da afinidade alta à baixa. Ela inseria esses genes de espícula um a um em alicerces de alguns genomas virais (“genética reversa” e “tecnologia de clonagem de agentes infecciosos”), criando uma série de vírus quiméricos. Esses vírus quiméricos então eram testados de acordo com sua capacidade de atacar culturas de células humanas (“in vitro”) e camundongos humanizados (“in vivo”). E essas informações ajudariam a prever a probabilidade de “transbordamento”, ou seja, o salto do coronavírus dos morcegos para humanos.
A abordagem metódica foi projetada para encontrar a melhor combinação de alicerce de coronavírus e proteína de espícula para infectar células humanas. A abordagem poderia ter gerado vírus parecidos com o SARS2, e, de fato, criado o próprio SARS2 com a combinação certa entre alicerce viral e proteína de espícula.
Não se pode afirmar ainda que a dra. Shi gerou ou não o SARS2 em seu laboratório porque seus registros foram postos em sigilo, mas parece que ela estava certamente a caminho disso. “Está claro que o Instituto de Virologia de Wuhan estava construindo sistematicamente novos coronavírus quiméricos e avaliando a capacidade deles de infectar células humanas e roedores que expressam o ACE2 humano”, diz Richard H. Ebright, um biólogo molecular da Universidade Rutgers e especialista de ponta em biossegurança.
“Também está claro”, disse o dr. Ebright, “que, a depender dos contextos genômicos constantes escolhidos para análise, essa linha de pesquisa poderia ter produzido o SARS-CoV-2 ou um progenitor próximo do SARS-CoV-2”. O “contexto genômico” se refere ao alicerce viral particular usado como banco de ensaios para a proteína de espícula.
A hipótese do vazamento de laboratório para a origem do vírus SARS2, como deve ter ficado evidente agora, não é um mero aceno na direção do Instituto de Virologia de Wuhan. É uma proposta detalhada, baseada em um projeto específico financiado lá pelo NIAID.
Mesmo se o projeto de pesquisa para obter a verba exigisse o plano de trabalho descrito acima, como podemos ter certeza de que o plano foi conduzido de fato? Para isso podemos nos apoiar na palavra do dr. Daszak, que tem sido veemente em protestar nos últimos 15 meses que o vazamento de laboratório é uma teoria da conspiração ridícula inventada por críticos da China.
Em 9 de dezembro de 2019, antes de a eclosão da pandemia ficar conhecida amplamente, o dr. Daszak deu uma entrevista em que falou efusivamente sobre como os pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan estavam reprogramando a proteína de espícula e gerando coronavírus quiméricos capazes de infectar camundongos humanizados.
“E agora descobrimos, sabe, depois de seis ou sete anos fazendo isso, mais de 100 novos coronavírus aparentados ao SARS, bem próximos ao SARS”, diz o dr. Daszak no minuto 28 da entrevista. “Alguns deles entram em células humanas no laboratório, alguns podem causar doença SARS em camundongos humanizados modelos e são intratáveis com anticorpos monoclonais terapêuticos e não dá para se vacinar contra eles com uma vacina. Então, eles são um perigo claro e presente…”
Entrevistador: “Você diz que esses são coronavírus diversos e que você não pode se vacinar contra eles, e que não tem antivirais — então o que faremos?”
Daszak: “Bem, eu acho… que os coronavírus — você pode manipulá-los no laboratório bem facilmente. A proteína de espícula conduz muito do que acontece com os coronavírus, no risco zoonótico. Então, você pode pegar a sequência, pode construir a proteína, e trabalhamos muito com Ralph Baric da UNC para fazer isso. Insere-se [a proteína] no alicerce de outro vírus e faz-se um pouco de trabalho no laboratório. Então você consegue ser mais preditivo quando encontra a sequência. Tem essa diversidade. Agora o próprio passo lógico para as vacinas é, se você vai desenvolver uma vacina para a SARS, as pessoas vão usar a SARS pandêmica, mas vamos inserir algumas dessas outras coisas e conseguir uma vacina melhor.” As inserções às quais ele se refere talvez incluam um elemento chamado sítio de clivagem da furina, discutido abaixo, que aumenta enormemente a infecciosidade viral em células humanas.
Em estilo desconexo, o dr. Daszak está se referindo ao fato de que, uma vez que se tenha gerado um novo coronavírus que pode atacar células humanas, pode-se pegar a proteína de espícula e usá-la como base para uma vacina.
Pode-se apenas imaginar a reação do dr. Daszak quando ele soube do surto da pandemia em Wuhan poucos dias depois. Ele, mais que ninguém, saberia mais da meta do Instituto de Wuhan de fazer coronavírus de morcego serem infecciosos para humanos, e também das fragilidades da defesa do instituto contra a infecção de seus próprios pesquisadores.
Porém, em vez de providenciar às autoridades públicas de saúde as abundantes informações de que dispunha, imediatamente ele lançou uma campanha de relações públicas para persuadir o mundo de que a epidemia não poderia ter sido causada por um dos vírus turbinados do instituto. “A ideia de que esse vírus escapou de um laboratório é besteira pura. Simplesmente não é verdade”, declarou em uma entrevista de abril de 2020.
As medidas de segurança do Instituto de Virologia de Wuhan
É possível que o dr. Daszak não soubesse, ou talvez soubesse demais, da longa história de vírus escapando até mesmo dos laboratórios mais bem administrados. O vírus da varíola escapou três vezes de laboratórios da Inglaterra nos anos 1960 e 1970, causando 80 casos e três mortes. Vírus perigosos vazaram de laboratórios quase todo ano desde então. Vindo para tempos mais recentes, o vírus SARS1 se mostrou um artista da escapada, vazando de laboratórios de Cingapura, Taiwan e não menos que quatro vezes do Instituto Nacional de de Virologia em Pequim, China.
Um motivo de o SARS1 ser tão difícil de lidar é que não havia vacinas disponíveis para proteger os funcionários de laboratórios. Como mencionou o dr. Daszak em sua entrevista de 19 de dezembro citada acima, os pesquisadores de Wuhan também não conseguiram desenvolver vacinas contra os coronavírus que tinham projetado para infectar células humanas. Também não teriam defesa contra o vírus SARS2, se ele foi gerado em seu laboratório, como seus colegas de Pequim não tinham contra o SARS1.
Um segundo motivo para o perigo severo dos novos coronavírus tem a ver com os níveis exigidos de segurança laboratorial. Há quatro graus de segurança, definidos do BSL1 ao BSL4, o BSL4 é o nível mais restritivo e designado para patógenos mortais como o vírus Ebola.
O Instituto de Virologia de Wuhan tinha um laboratório BSL4 novo, mas seu estado de preparação deixou alarmados os inspecionadores do Departamento de Estado que o visitaram a partir da embaixada de Pequim em 2018. “O novo laboratório tem uma escassez séria de técnicos e investigadores treinados apropriadamente que são necessários para operar com segurança esse laboratório de alta contenção”, escreveram os inspecionadores em uma mensagem de 19 de janeiro de 2018.
O verdadeiro problema, no entanto, não era o estado de falta de segurança do laboratório BSL4 de Wuhan, mas o fato de que os virologistas ao redor do mundo não gostam de trabalhar em condições BSL4. É preciso usar uma roupa espacial, fazer operações em cabines fechadas e aceitar que tudo leva o dobro do tempo. Assim, as regras que atribuem cada vírus a um dado nível de segurança eram mais relaxadas do que alguns consideram prudente.
Antes de 2020, as regras seguidas pelos virologistas na China e outros lugares exigiam que experimentos com os vírus SARS1 e MERS fossem conduzidos em condições BSL3. Mas todos os outros coronavírus de morcegos poderiam ser estudados em BSL2, um nível abaixo. O BSL2 exige precauções de segurança mínimas, como usar jaleco e luvas, não sugar líquidos com uma pipeta, e pregar avisos de risco biológico. Mesmo assim, um experimento de ganho de função conduzido em BSL2 poderia produzir um agente mais infeccioso que o SARS1 ou o MERS. E, se produzisse, os funcionários laboratoriais teriam uma chance alta de se infectarem, especialmente se não vacinados.
Muito do trabalho da dra. Shi em ganho de função de coronavírus foi realizado no nível de segurança BSL2, como registrado em suas publicações e outros documentos. Ela disse em uma entrevista à revista Science que “A pesquisa com coronavírus no nosso laboratório é conduzida em laboratórios BSL-2 ou BSL-3”.
“É evidente que alguma parte ou todo esse trabalho estava sendo executado com um padrão de biossegurança — nível 2 de biossegurança, o nível de biossegurança de um consultório odontológico comum nos EUA — que apresentaria um risco inaceitavelmente alto de infecção da equipe do laboratório ao entrar em contato com um vírus que tenha as propriedades de contágio do SARS-CoV-2”, diz o dr. Ebright.
“Também é evidente”, acrescenta ele, “que esse trabalho nunca deveria ter sido financiado e nunca deveria ter sido executado”.
Essa é uma opinião que ele defende não importa se o vírus SARS2 já esteve no interior de um laboratório.
Não parece que era sem cabimento a preocupação com as condições de segurança do laboratório de Wuhan. De acordo com uma ficha de fatos emitida pelo Departamento de Estado em 15 de janeiro de 2021, “O governo dos EUA tem motivos para acreditar que vários pesquisadores dentro do IVW adoeceram no outono de 2019, antes do primeiro caso identificado do surto, com sintomas consistentes tanto com a COVID-19 quanto com doenças sazonais comuns”.
David Asher, membro do Instituto Hudson e ex-consultor frente ao Departamento de Estado, deu mais detalhes sobre o incidente em um seminário. Ficaram sabendo do incidente por um misto de informações públicas e “algumas informações de alto nível coletadas pela nossa comunidade de inteligência”, disse ele. Três pessoas que trabalham em um laboratório BSL3 no instituto adoeceram com uma diferença de uma semana entre elas, com sintomas severos que levaram à hospitalização. Esse foi “o primeiro surto de que temos conhecimento, de vítimas do que acreditamos ser a COVID-19”. A influenza não podia ser descartada por completo, mas parecia improvável nas circunstâncias, disse ele.
Comparando as hipóteses rivais da origem do SARS2
As evidências acima se somam em um caso sério de que o vírus SARS2 poderia ter sido criado em um laboratório do qual escapou. Mas o caso, por mais que seja substancial, ainda requer provas. Uma prova consistiria em evidências do Instituto de Virologia de Wuhan, ou de laboratórios relacionados em Wuhan, que o vírus SARS2 ou um vírus predecessor estava sob desenvolvimento lá. Por falta de acesso a esses registros, outra abordagem é pegar alguns fatos salientes sobre o vírus SARS2 e perguntar o quão bem cada um dele é explicado pelas duas hipóteses rivais de origem, a emergência natural ou o vazamento do laboratório. Eis quatro testes das duas hipóteses. Alguns têm detalhes técnicos, mas são os mais convincentes para aqueles que quiserem acompanhar o argumento.
1) O lugar de origem
Comecemos com a geografia. Os dois parentes mais próximos conhecidos do vírus SARS2 foram coletados de morcegos das cavernas de Yunnan, uma província do sul da China. Se o vírus SARS2 tivesse infectado primeiro as pessoas vivendo ao redor das cavernas de Yunnan, isso seria um apoio forte à ideia de que o vírus transbordou para humanos de forma natural. Mas não foi o que aconteceu. A pandemia eclodiu a 1.500 km de distância, em Wuhan.
Os beta-coronavírus, a família de vírus de morcego ao qual pertence o SARS2, infectam o morcego nariz-de-ferradura Rhinolophus affinis, que se distribui pelo sul da China. O território dos morcegos é de 50 km, então é improvável que qualquer um deles tenha voado até Wuhan. De qualquer forma, os primeiros casos da pandemia da Covid-19 provavelmente ocorreram em setembro, quando as temperaturas da província de Hubei já estão frias o suficiente para os morcegos estarem hibernando.
Mas e se os vírus dos morcegos infectaram um hospedeiro intermediário primeiro? Seria necessária uma população antiga de morcegos em proximidade frequente com um hospedeiro intermediário, que por sua vez deveria encontrar humanos com frequência. Todas essas trocas de vírus deveriam acontecer em algum lugar fora de Wuhan, uma metrópole agitada que até o momento não é conhecida como um habitat natural de colônias do morcego Rhinolophus. A pessoa infectada (ou animal) carregando esse vírus altamente transmissível deveria ter viajado a Wuhan sem infectar ninguém mais. Ninguém na família dessa pessoa ficou doente. Se a pessoa pegou um trem em Wuhan, nenhum dos passageiros adoeceu.
Em outras palavras, é forçado conseguir que a pandemia emerja naturalmente fora de Wuhan e depois, sem deixar nenhuma pista, apareça primeiro lá.
Para a hipótese do vazamento do laboratório, uma origem do vírus em Wuhan é muito fácil. Wuhan sedia o principal centro de pesquisa em coronavírus da China onde, como apontado acima, os pesquisadores estavam fazendo engenharia genética com coronavírus de morcego para que atacassem células humanas. Faziam-no sob condições mínimas de segurança de um laboratório BSL2. Se um vírus com a infecciosidade inesperada do SARS2 tivesse sido gerado lá, a sua escapada não seria surpresa nenhuma.
2) História natural e evolução
O local de início da pandemia é uma parte pequena de um problema maior, que é a sua história natural. Os vírus simplesmente não saltam de uma vez só de uma espécie para outra. A proteína de espícula do coronavírus, adaptada a atacar células de morcego, precisa de saltos repetidos para outra espécie, a maioria dos quais fracassa, antes que ganhe uma mutação sortuda. A mutação — uma mudança em uma de suas unidades do RNA — causa a incorporação de uma unidade de aminoácido diferente em sua proteína de espícula e faz com que ela ataque melhor as células de alguma outra espécie.
Através de muitos ajustes adicionais via mutação, o vírus se adapta a seu novo hospedeiro, por exemplo algum animal com o qual os morcegos entram em contato com frequência. O processo todo então recomeça quando o vírus migra do hospedeiro intermediário para humanos.
No caso do SARS1, os pesquisadores documentaram mudanças sucessivas em sua proteína de espícula enquanto o vírus evoluía passo a passo para um patógeno perigoso. Depois que ele saltou de morcegos para civetas, houve seis mudanças adicionais em sua proteína de espícula antes que ele se tornasse um patógeno brando em humanos. Depois de mais 14 mudanças, o vírus estava muito mais adaptado a humanos, e com outras quatro a epidemia deslanchou.
Mas quando se olha as impressões digitais de uma transição similar no SARS2, uma estranha surpresa está à espreita. O vírus mudou muito pouco, ao menos até recentemente. Desde o seu primeiro aparecimento, ele estava bem adaptado a células humanas. Pesquisadores liderados pela Alina Chan, do Instituto Broad, compararam o SARS2 com o estágio tardio do SARS1, que já estava bem adaptado a células humanas, e descobriram que os dois vírus estavam bem adaptados de forma similar. “Quando o SARS-CoV-2 foi detectado pela primeira vez no fim de 2019, ele já estava pré-adaptado à transmissão em humanos a um ponto similar à antiga epidemia de SARS-CoV”, escreveram.
Mesmo aqueles que pensam que a origem laboratorial é improvável concordam que os genomas do SARS2 são notavelmente uniformes. O dr. Baric escreveu que “as primeiras cepas identificadas em Wuhan, China, mostraram diversidade genética limitada, o que sugere que o vírus pode ter sido introduzido de uma fonte única”.
Uma fonte única seria, claro, compatível mais com o vazamento do laboratório, e menos com a variação grande e a seleção que é a forma marcada de a evolução trabalhar.
A estrutura uniforme dos genomas do SARS2 não dá dicas de qualquer passagem por um hospedeiro animal intermediário, e nenhum hospedeiro deste tipo foi identificado na natureza.
Proponentes da emergência natural sugerem que o SARS2 ficou incubado em alguma população humana ainda a ser descoberta antes de ganhar as suas propriedades especiais. Ou que ele saltou para um hospedeiro animal fora da China.
Todas essas conjecturas são possíveis, mas forçadas. Os proponentes do vazamento laboratorial têm uma explicação mais simples. O SARS2 estava adaptado a células humanas desde o começo porque foi cultivado em camundongos humanizados ou em culturas de células humanas, tal como descrito no projeto de pesquisa do dr. Daszak. O seu genoma mostra pouca diversidade porque a marca das culturas laboratoriais é a sua uniformidade.
Os proponentes do escape de laboratório brincam que é claro que o vírus SARS2 infectou uma espécie hospedeira intermediária antes de saltar para humanos, e que a identificaram — um camundongo humanizado do Instituto de Virologia de Wuhan.
3) O sítio de clivagem da furina
O sítio de clivagem da furina é uma parte minúscula da anatomia do vírus, mas é uma parte que exerce uma grande influência em sua infecciosidade. É localizado no meio da proteína de espícula do SARS2. Está também no cerne do enigma da origem do vírus.
A proteína de espícula tem duas subunidades com diferentes funções. A primeira, chamada S1, reconhece o alvo do vírus, uma proteína chamada enzima de conversão de angiotensina 2 (ou ACE2) que cobre a superfície de células da mucosa das vias aéreas humanas. A segunda, S2, ajuda o vírus, quando está ancorado à célula, a se fundir com a membrana celular. Depois que a membrana externa do vírus coalesce à da célula atacada, o genoma viral é injetado dentro da célula, toma o controle de seu maquinário de fabricação de proteínas e o força a gerar novos vírus.
Mas essa invasão não pode começar até que as subunidades S1 e S2 tenham sido separadas por um corte. E ali, bem na junção S1/S2, é o sítio de clivagem da furina que assegura que a proteína de espícula será cortada exatamente no lugar certo.
O vírus, um modelo de design econômico, não carrega as suas próprias tesouras. Ele depende da célula para fazer o corte por ele. As células humanas têm uma tesoura de proteína em sua superfície chamada furina. A furina cortará qualquer cadeia de proteína que carregue o seu alvo característico de corte. É uma sequência de unidades de aminoácido prolina-arginina-arginina-alanina, ou PRRA no código que se refere a cada aminoácido por uma letra do alfabeto. A PRRA é uma sequência de aminoácidos no cerne do sítio de clivagem de furina do SARS2.
Os vírus têm todo tipo de truque esperto, então por que o sítio de clivagem da furina chama a atenção? Porque, de todos os beta-coronavírus conhecidos aparentados ao SARS, somente o SARS2 possui um sítio de clivagem da furina. Todos os outros vírus têm sua unidade S2 cortada em um sítio diferente e por um mecanismo diferente.
Como, então, o SARS2 adquiriu seu sítio de clivagem da furina? Ou o sítio evoluiu naturalmente, ou foi inserido por pesquisadores na junção S1/S2 em um experimento de ganho de função.
Consideremos primeiro a origem natural. Duas formas de os vírus evoluírem são por mutação ou por recombinação. A mutação é o processo de mudança aleatória no DNA (ou RNA, para os coronavírus) que geralmente resulta na mudança de um aminoácido por outro na cadeia protéica. Muitas dessas mudanças são danosas ao vírus, mas a seleção natural retém as poucas que fazem algo útil. A mutação é um processo pelo qual a proteína de espícula do SARS1 gradualmente trocou as suas células alvo favoritas dos morcegos para as civetas, e delas para humanos.
A mutação parece ser um jeito menos provável de o sítio de clivagem da furina do SARS2 ser gerado, embora não possa ser completamente descartada. As quatro unidades de aminoácido do sítio estão todas juntas, e todas no lugar certeiro da junção S1/S2. A mutação é um processo aleatório engatilhado por erros de cópia (quando novos genomas virais estão sendo feitos) ou pelo decaimento químico de unidades do genoma. Então, tipicamente ela afeta aminoácidos únicos em lugares diferentes de uma cadeia protéica. Uma sequência de aminoácidos como aquela do sítio de clivagem da furina é muito mais provável de ser adquirida de uma vez através de um processo bem diferente chamado recombinação.
A recombinação é uma troca inadvertida de material genômico que ocorre quando dois vírus por acaso invadem a mesma célula, e a sua prole é combinada com pedaços de RNA pertencentes ao outro vírus. Os beta-coronavírus só combinarão com outros beta-coronavírus, mas podem adquirir, pela recombinação, quase qualquer elemento genético presente nos recursos genômicos coletivos. O que eles não podem adquirir é um elemento que os recursos não possuem. E nenhum beta-coronavírus aparentado a SARS, a classe do SARS2, possui um sítio de clivagem da furina.
Os proponentes da emergência natural dizem que o SARS2 poderia ter pegado o sítio de algum beta-coronavírus ainda desconhecido. Mas os beta-coronavírus aparentados a SARS evidentemente não precisam de um sítio de clivagem da furina para infectar células de morcegos, então não há grande probabilidade de que algum o possua, e, de fato, nenhum foi encontrado até agora.
O próximo argumento dos proponentes é que o SARS2 adquiriu seu sítio de clivagem da furina em humanos. Um predecessor do SARS2 poderia estar circulando na população humana por meses ou anos e, em algum momento, adquiriu o sítio de clivagem da furina de células humanas. Assim ficaria pronto para eclodir numa pandemia.
Se foi isso o que aconteceu, deveria haver pistas em registros hospitalares de pessoas infectadas pelo vírus em lenta evolução. Mas nenhum até agora veio à tona. De acordo com o relatório sobre as origens do vírus da OMS, os hospitais sentinelas da província de Hubei, na qual fica Wuhan, monitoram rotineiramente doenças tipo influenza e “nenhuma evidência que sugira uma transmissão substancial de SARS-CoV-2 nos meses antes do surto em dezembro foi observada”.
Então é difícil explicar como o vírus SARS2 pegou o sítio de clivagem da furina naturalmente, seja por mutação ou por recombinação.
Resta o experimento de ganho de função. Para aqueles que pensam que o SARS2 pode ter escapado de um laboratório, explicar o sítio de clivagem da furina não é problema. “Desde 1992, a comunidade da virologia sabe que um jeito certeiro de fazer um vírus mais mortal é dar-lhe um sítio de clivagem da furina na junção S1/S2 em laboratório”, escreve o dr. Steven Quay, um empresário de biotecnologia interessado nas origens do SARS2. “Ao menos onze experimentos de ganho de função, acrescentando o sítio da furina para fazer o vírus mais infeccioso, estão publicados na literatura aberta, incluindo o da dra. Zhengli Shi, chefe de pesquisa em coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan”.
4) Uma questão de códons
Há outro aspecto do sítio de clivagem da furina que estreita o caminho para uma emergência natural ainda mais.
Como todos sabem (ou podem ao menos se lembrar do ensino médio), o código genético usa três unidades do DNA para especificar cada unidade de aminoácido de uma cadeia de proteína. Quando lidas em grupos de três, as quatro diferentes unidades do DNA podem especificar 4 x 4 x 4, ou 64 diferentes trincas, ou, como são chamadas, códons. Já que há só 20 tipos de aminoácidos, há mais do que o suficiente de códons para todos eles, permitindo que alguns aminoácidos sejam especificados por mais de um códon. O aminoácido arginina, por exemplo, pode ser designado por qualquer um dos seis códons CGU, CGC, CGA, CGG, AGA ou AGG, em que A, U, G e C significam os quatro tipos diferentes de unidade do RNA.
Eis onde fica interessante. Organismos diferentes têm diferentes preferências de códon. Células humanas gostam de designar a arginina com os códons CGT, CGC ou CGG. Mas o CGG é o códon menos popular dos coronavírus para a arginina. Mantenhamos este fato em mente quando olhamos como os aminoácidos no sítio de clivagem da furina são codificados no genoma do SARS2.
A razão funcional pela qual o SARS2 tem um sítio de clivagem da furina, e seus primos virais não têm, pode ser vista ao se fazer um alinhamento (no computador) da sequência de quase 30 mil nucleotídeos em seu genoma com as sequências de seus primos coronavirais, dos quais o mais próximo conhecido até agora é chamado de RaTG13. Comparado ao RaTG13, o SARS2 tem uma inserção de 12 nucleotídeos bem na junção S1/S2. A inserção é a sequência T-CCT-CGG-CGG-GC. O CCT codifica a prolina, os dois CGG’s codificam duas argininas, e o GC é o começo de um códon GCA para a alanina.
Há várias características curiosas sobre essa inserção, mas a mais estranha é a dos dois códons CGG seguidos. Somente 5% dos códons de arginina do SARS2 são CGG, e o duplo códon CGG-CGG não foi encontrado em nenhum outro beta-coronavírus. Então, como foi que o SARS2 adquiriu um par de códons de arginina que são favorecidos por células humanas, mas não por coronavírus?
Os proponentes da emergência natural têm uma tarefa mais difícil de explicar todas as características do sítio de clivagem da furina do SARS2. Têm que postular um evento de recombinação em um sítio do genoma do vírus onde as recombinações são raras, e a inserção da sequência de 12 nucleotídeos com um duplo códon de arginina, desconhecida no repertório dos beta-coronavírus, no único lugar do genoma que expandiria de forma significativa a infecciosidade do vírus.
“Sim, mas a forma como você coloca as palavras faz com que isso soe improvável — vírus são especialistas em eventos incomuns”, retruca David L. Robertson, um virologista da Universidade de Glasgow que considera o escape de laboratório uma teoria da conspiração. “A recombinação é naturalmente muito, muito frequente nesses vírus, há pontos de quebra para recombinação na proteína de espícula e esses códons parecem incomuns exatamente porque nós não amostramos o suficiente”.
O dr. Robertson está certo a respeito de a evolução estar sempre produzindo resultados que podem parecer improváveis, mas na verdade não são. Os vírus podem gerar incontáveis números de variantes, mas vemos somente uma em um bilhão que a seleção natural escolhe para sobreviver. Porém, este argumento pode ser levado longe demais. Por exemplo, qualquer resultado de um experimento de ganho de função poderia ser explicado como um resultado ao qual a evolução chegaria com o tempo. E o jogo dos números pode ser jogado na outra direção. Para que o sítio de clivagem da furina surja naturalmente no SARS2, uma sequência de eventos tem que acontecer, cada um deles bem improvável pelas razões dadas acima. Uma sequência longa com vários passos improváveis tem pouca chance de ser concluída.
Para a hipótese do escape de laboratório, o duplo códon CGG não é surpresa. O códon preferido em humanos é rotineiramente usado em laboratórios. Então, qualquer pessoa que quisesse inserir um sítio de clivagem da furina no genoma do vírus sintetizaria a sequência que faz PRRA no laboratório e provavelmente usaria os códons CGG para fazê-lo.
“Quando eu vi pela primeira vez o sítio de clivagem da furina na sequência viral, com seus códons de arginina, eu disse à minha esposa que era a prova concreta para a origem do vírus”, disse David Baltimore, proeminente virologista e ex-presidente da CalTech. “Essas características dão um desafio poderoso à ideia da origem natural do SARS2”, disse ele.
Uma terceira hipótese de origem
Há uma variação da hipótese da emergência natural que vale a pena considerar. É a ideia de que o SARS2 saltou diretamente dos morcegos para humanos, sem passar por um hospedeiro intermediário, como fizeram o SARS1 e o MERS. Um defensor proeminente é o virologista David Robertson, que nota que o SARS2 pode atacar muitas outras espécies além dos humanos. Ele acredita que o vírus evoluiu uma capacidade generalista enquanto ainda estava em morcegos. Pela razão de os morcegos que ele infecta serem distribuídos amplamente no sul e na área central da China, o vírus tinha ampla oportunidade de saltar para humanos, embora pareça que tenha saltado em apenas uma ocasião conhecida. A tese do dr. Robertson explica por que ninguém até agora encontrou uma pista do SARS2 em qualquer hospedeiro intermediário ou em populações humanas investigadas antes de dezembro de 2019. Também explicaria o fato intrigante de o SARS2 não ter mudado desde que apareceu em humanos — não precisaria mudar porque já podia atacar células humanas com eficiência.
Contudo, um problema com essa ideia é que, se o SARS2 saltou de morcegos para humanos em um salto único e não mudou muito desde então, ainda deveria ser bom em infectar morcegos. E parece que não é.
“Espécies de morcegos testadas são infectadas de forma ineficiente pelo SARS-CoV-2 e, portanto, são uma fonte direta improvável da infecção humana”, escreveu uma equipe de cientistas céticos quanto à emergência natural.
Ainda assim, o dr. Robertson pode estar no caminho certo. Os coronavírus de morcegos das cavernas de Yunnan podem infectar as pessoas diretamente. Em abril de 2012, seis mineiros que estavam limpando guano de morcego da mina de Mojiang contraíram uma pneumonia severa com sintomas similares à Covid-19, e três acabaram morrendo. Um vírus isolado da mina de Mojiang, chamado RaTG13, ainda é o parente mais próximo conhecido do SARS2. Muito mistério cerca a origem, os registros e a afinidade estranhamente baixa do RaTG13 por células de morcego, além da natureza de oito vírus similares que a dra. Shi relata que coletou na mesma época mas ainda não publicou, apesar da grande relevância deles para a ancestralidade do SARS2. Mas tudo isso é história para outra oportunidade. O ponto, aqui, é que os vírus de morcegos podem infectar humanos diretamente, embora somente em condições especiais.
Quem mais, então, além dos mineiros que escavaram guano de morcego, chega particularmente perto dos coronavírus de morcegos? Bem, esses são os pesquisadores. A dra. Shi diz que ela e seu grupo coletaram mais de 1.300 amostras de morcego durante oito visitas à caverna de Mojiang entre 2012 e 2015, e houve sem dúvidas muitas expedições a outras cavernas de Yunnan.
Imaginemos os pesquisadores fazendo expedições frequentes de Wuhan até Yunnan e de volta, mexendo com guano de morcego em cavernas e minas escuras, e agora começamos a ver um elo perdido possível entre os dois lugares. Os pesquisadores poderiam ter se infectado durante as viagens de coleta, ou enquanto trabalhavam com os novos vírus no Instituto de Virologia de Wuhan. O vírus que escapou do laboratório seria um vírus natural, não um vírus cozinhado pelo ganho de função.
A tese de infecção direta dos morcegos é uma quimera entre as hipóteses de emergência natural e do escape de laboratório. É uma possibilidade que não pode ser descartada. Mas contra elas há os fatos que (1) tanto o SARS2 quanto o RaTG13 parecem ter afinidade frágil por células de morcego, então não se pode ter confiança completa de que um deles já esteve dentro de algum morcego; e (2) a teoria não é melhor que uma hipótese de emergência natural para explicar como o SARS2 ganhou o seu sítio de clivagem da furina, ou por que o sítio de clivagem da furina é determinado por códons de arginina favoritos em humanos em vez de códons favoritos de morcegos.
Onde estamos
Nem a emergência natural nem a hipótese de escape de laboratório podem ser descartadas no momento. Ainda não há evidência direta de nenhuma delas. Então não se pode chegar a nenhuma conclusão definitiva.
Dito isso, as evidências disponíveis pendem de forma mais enfática em uma direção do que na outra. Os leitores formarão as próprias opiniões. Mas, para mim, parece que os proponentes do escape de laboratório podem explicar todos os fatos disponíveis sobre o SARS2 de forma consideravelmente mais fácil do que aqueles que favorecem a emergência natural.
Está documentado que os pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan estavam fazendo experimentos de ganho de função projetados para fazer os coronavírus infectarem células humanas e camundongos humanizados. Este é exatamente o tipo de experimento do qual um vírus como o SARS2 poderia emergir. Os pesquisadores não estavam vacinados contra os vírus em estudo, e estavam trabalhando nas condições de segurança mínimas de um laboratório BSL2. Assim, o vazamento de um vírus não seria grande surpresa. Em toda a China, a pandemia eclodiu justamente à porta do instituto de Wuhan. O vírus já estava bem adaptado a humanos, como esperado para um vírus cultivado em roedores humanizados. Ele possuía um aperfeiçoamento incomum, um sítio de clivagem da furina, que não está em nenhum dos beta-coronavírus relacionados à SARS conhecidos, e esse sítio incluía um códon duplo de arginina também desconhecido entre beta-coronavírus. Quantas evidências mais se poderia querer, além dos ainda inalcançáveis registros laboratoriais documentando a criação do SARS2?
Os proponentes da emergência natural têm uma história mais forçada para contar. A plausibilidade do caso deles repousa sobre uma única suposição, o paralelo esperado entre a emergência do SARS2 e a emergência do SARS1 e do MERS. Mas nenhuma das evidências esperadas em apoio à tal história paralela emergiu ainda. Ninguém encontrou uma população de morcegos que foi a fonte do SARS2, se ele de fato já infectou morcegos. Nenhum hospedeiro intermediário se apresentou, apesar de uma busca intensiva das autoridades chinesas que incluiu a testagem de 80 mil animais. Não há evidência de que o vírus fez múltiplos saltos independentes de seu hospedeiro intermediário para humanos, como fizeram o SARS1 e o MERS. Não há evidência dos registros hospitalares da epidemia se fortalecendo na população enquanto o vírus evoluía. Não há explicação da razão pela qual uma epidemia natural eclodiria em Wuhan e não em outro lugar. Não há boa explicação de como o vírus adquiriu o seu sítio de clivagem da furina, que nenhum outro beta-coronavírus relacionado à SARS possui, nem da razão pela qual o sítio é composto por códons preferidos no organismo humano. A teoria da emergência natural trava uma batalha contra um arranjo repleto de implausibilidades.
Os registros do Instituto de Virologia de Wuhan certamente têm muitas informações relevantes. Mas as autoridades chinesas não parecem dispostas a liberá-las, dada a chance substancial de que isso incriminaria o regime pela criação da pandemia. Fora os esforços de algum delator chinês corajoso, podemos já ter em mãos todas as informações relevantes que poderemos ter em muito tempo.
Então vale a pena avaliar a responsabilidade pela pandemia, ao menos de forma provisória, pois a meta crucial permanece sendo a prevenção de outra pandemia. Mesmo aqueles que não foram convencidos que o vazamento laboratorial é a origem mais provável do vírus SARS2 podem ver motivos para preocupação sobre o atual estado da regulamentação da pesquisa de ganho de função. Há dois níveis óbvios de responsabilidade: o primeiro, por permitir que virologistas executem experimentos de ganho de função, oferecendo ganhos mínimos e enormes riscos; o segundo, se o SARS2 de fato foi gerado em laboratório, por permitir que o vírus escapasse e desencadeasse uma pandemia mundial. Eis os atores que parecem os mais prováveis de terem a culpa.
1. Virologistas chineses
Antes de mais nada, os virologistas chineses são imputáveis por executarem experimentos de ganho de função na maior parte em condições de segurança de nível BSL2, que eram relaxadas demais para conter um vírus de infecciosidade inesperada como o SARS2. Se o vírus de fato escapou de seu laboratório, eles merecem a reprovação do mundo por um acidente previsível que já causou as mortes de três milhões de pessoas.
É verdade que a dra. Shi foi treinada por virologistas franceses, trabalhou em estreita colaboração com virologistas americanos e estava seguindo as regras internacionais para a contenção dos coronavírus. Mas ela poderia e deveria ter feito a própria avaliação dos riscos em que incorria. Ela e seus colegas têm responsabilidade pelos seus atos.
Eu usei o Instituto de Virologia de Wuhan como representante de todas as atividades de virológicas em Wuhan. É possível que o SARS2 foi gerado em algum outro laboratório de Wuhan, talvez numa tentativa de fazer uma vacina contra todos os coronavírus. Mas, até que o papel de outros virologistas chineses seja esclarecido, a dra. Shi é a face pública da pesquisa chinesa em coronavírus, e, provisoriamente, ela e seus colegas serão os primeiros na linha do opróbrio.
2. Autoridades chinesas
As autoridades centrais da China não geraram o SARS2 mas certamente fizeram o que podiam para esconder a natureza da tragédia e a responsabilidade da China por ela. Suprimiram todos os registros do Instituto de Virologia de Wuhan e fecharam os seus bancos de dados virais. Liberaram a conta-gotas as informações, muitas das quais podem ter sido completamente falsas ou fabricadas para despistar e enganar. Fizeram o que podiam para manipular a investigação da OMS sobre as origens do vírus, e levaram os membros da comissão a um turismo infrutífero. Até agora, mostraram-se muito mais interessadas em se esquivar da culpa do que em tomar medidas necessárias para prevenir uma segunda pandemia.
3. A comunidade internacional de virologistas.
Os virologistas ao redor do mundo são uma comunidade profissional de laços frouxos. Escrevem artigos nas mesmas revistas. Vão aos mesmos congressos. Têm interesses em comum ao buscarem verbas de governos e não desejarem o fardo de mais regulamentação de segurança.
Os virologistas sabiam mais que qualquer um dos perigos da pesquisa de ganho de função. Mas o poder de criar novos vírus, e as verbas de pesquisa acessíveis para fazê-lo, eram tentadores demais. Eles avançaram com os experimentos de ganho de função. Fizeram lobby contra a moratória imposta às verbas federais para a pesquisa de ganho de função em 2014, e ela foi removida em 2017.
Os benefícios das pesquisas para prevenir futuras epidemias até o momento foram nulos, e os riscos, vastos. Se a pesquisa sobre os vírus SARS1 e MERS só poderiam ser feitas em um nível de segurança BSL3, certamente foi ilógico permitir qualquer trabalho com novos coronavírus no nível menor BSL2. Se o SARS2 escapou ou não de um laboratório, os virologistas ao redor do mundo estavam brincando com fogo.
O comportamento deles há muito é alarmante para outros biólogos. Em 2014, cientistas que se denominaram o Grupo de Trabalho de Cambridge pediram por cuidado ao criar novos vírus. Em palavras proféticas, eles especificaram o risco de criar um vírus como o SARS2. “Riscos acidentais com a criação de novos ‘patógenos pandêmicos em potencial’ suscitam sérias novas preocupações”, escreveram eles. “A criação laboratorial de novas cepas altamente transmissíveis de vírus perigosos, em especial, mas não limitado à influenza, apresenta riscos substancialmente maiores. Uma infecção acidental nessas condições poderia engatilhar surtos que seriam difíceis ou impossíveis de controlar”.
Quando biólogos moleculares descobriram uma técnica para mudar genes de um organismo para outro, fizeram uma conferência pública em Asilomar, em 1975, para discutir os possíveis riscos. Apesar de muita oposição interna, elaboraram uma lista de medidas restritas de segurança que poderiam ser relaxadas no futuro — e de fato foram — quando os riscos possíveis tivessem sido mais bem avaliados.
Quando a técnica CRISPR para editar genes foi inventada, os biólogos organizaram um relatório em conjunto das academias nacionais de ciências dos Estados Unidos, Reino Unido e China pedindo por comedimento ao fazer mudanças herdáveis no genoma humano. Os biólogos que inventaram a genética dirigida também trataram abertamente dos perigos de seu trabalho e buscaram envolver o público.
Poder-se-ia pensar que a pandemia do SARS2 estimularia os virologistas a reavaliar os benefícios da pesquisa de ganho de função, ainda que para incluir o público em suas deliberações. Mas não. Muitos virologistas difamam o escape de laboratório como uma teoria da conspiração e outros nada dizem. Eles se entrincheiraram por trás da muralha de silêncio da China que até agora está funcionando bem para dissipar, ou ao menos protelar a curiosidade dos jornalistas e a ira do público. Profissões que não conseguem regular a si próprias merecem ser reguladas por outros, e esse parece ser o futuro que os virologistas estão escolhendo para si mesmos.
4. O papel dos EUA ao financiar o Instituto de Virologia de Wuhan
De junho de 2014 a maio de 2019, a EcoHealth Alliance do dr. Daszak contou com uma verba do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), para fazer pesquisa de ganho de função com coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan. Se o SARS2 é ou não é o produto daquela pesquisa, parece que é uma política questionável terceirizar a pesquisa de alto risco para laboratórios estrangeiros arriscados que usam as precauções mínimas de segurança. E, se o vírus SARS2 de fato escapou do instituto de Wuhan, os NIH se encontrarão na posição terrível de terem financiado um experimento desastroso que levou à morte de mais de três milhões de pessoas ao redor do mundo, incluindo mais de meio milhão de seus próprios cidadãos.
A responsabilidade do NIAID e dos NIH é ainda mais grave porque, pelos três primeiros anos da verba para a EcoHealth Alliance, havia uma moratória sobre a pesquisa de ganho de função. Por que as duas agências não impediram o financiamento federal, como ao que parece seria o exigido por lei? Porque alguém escreveu uma brecha na moratória.
A moratória barrava especificamente o financiamento de quaisquer pesquisas de ganho de função que aumentassem a patogenicidade da gripe ou de vírus MERS ou SARS. Mas uma nota de rodapé na p. 2 do documento da moratória diz que “Uma exceção da pausa nas pesquisas poderá ser obtida se o administrador de uma agência de financiamento USG determinar que a pesquisa em questão é urgentemente necessária para proteger a saúde pública ou a segurança nacional”.
Parece que o significado disso é que o diretor do NIAID, o dr. Anthony Fauci, ou o diretor das NIH, o dr. Francis Collins, ou talvez ambos, teriam invocado a nota de rodapé para manter o dinheiro que fluía para a pesquisa de ganho de função da dra. Shi.
“Infelizmente, o diretor do NIAID e o diretor dos NIH exploraram essa brecha para criar isentar projetos que seriam sujeitados à Pausa — absurdamente afirmando que a pesquisa isentada era ‘urgentemente necessária para proteger a saúde pública ou a segurança nacional’ — dessa forma anulando a Pausa”, disse o dr. Richard Ebright em uma entrevista ao Independent Science News.
Quando a moratória terminou em 2017, ela não desapareceu, mas foi substituída por um sistema de notificações, o Quadro de Controle e Supervisão de Potenciais Patógenos Pandêmicos (P3CO), que exigia que as agências notificassem para análise qualquer trabalho perigoso de ganho de função que quisessem financiar.
De acordo com o dr. Ebright, o dr. Collins e o dr. Fauci “recusaram-se a notificar e passar adiante as propostas para análise de custo-benefício, dessa forma tornando nulo o P3CO”.
Na opinião dele, os dois diretores, ao lidar com a moratória e o sistema de notificação subsequente, “sistematicamente impediram os esforços da Casa Branca, do Congresso, de cientistas e especialistas em políticas científicas de regular as pesquisas GF [de ganho de função] em questão”.
É possível que os dois diretores precisaram levar em conta questões não óbvias no registro público, tais como problemas de segurança nacional. Talvez o financiamento do Instituto de Virologia de Wuhan, que se acredita estar envolvido com virologistas militares chineses, fornecia uma janela para a pesquisa chinesa em armas biológicas. Mas, quaisquer que sejam as outras considerações envolvidas, o resultado é que os Institutos Nacionais de Saúde estavam apoiando pesquisa de ganho de função, de um tipo que poderia ter gerado o vírus SARS2, em um laboratório estrangeiro não supervisionado que estava trabalhando em condições BSL2 de biossegurança. A prudência dessa decisão pode ser questionada, não importa se o SARS2 ou a morte de três milhões de pessoas tenham resultado dela.
Em Suma
Se o caso da origem laboratorial do SARS2 é tão substancial, por que é que mais pessoas não sabem disso? Como pode já estar evidente agora, há muitas pessoas que têm motivos para não tocar no assunto. No topo da lista estão, é claro, as autoridades chinesas. Mas os virologistas nos Estados Unidos e na Europa não têm grande interesse em dar início a um debate público sobre os experimentos de ganho de função que a sua comunidade tem buscado há anos.
Outros cientistas também não tomaram a dianteira para levantar a questão. As verbas de pesquisa do governo são distribuídas com o conselho de comitês de especialistas científicos escolhidos nas universidades. Qualquer um que balance o barco levantando questões políticas incômodas corre o risco de ter a verba não renovada e sua carreira na pesquisa encerrada. Talvez o bom comportamento seja premiado com muitas benesses que lavam o sistema de distribuição. E se alguém pensa que o dr. Andersen ou o dr. Daszak mancharam as suas reputações de objetividade científica depois de seus ataques parciais à hipótese do escape de laboratório, basta olhar o segundo e o terceiro nome nessa lista de agraciados com uma verba de U$82 milhões anunciada pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas em agosto de 2020.
O governo americano tem um estranho interesse em comum com as autoridades chinesas: nenhum deles está disposto a chamar atenção para o fato de que o trabalho com coronavírus da dra. Shi foi financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Pode-se imaginar a conversa de bastidores em que o governo chinês diz que “Se essa pesquisa era tão perigosa, por que vocês a financiaram, e dentro do nosso território?” Ao que o lado dos Estados Unidos poderia replicar que “Parece que foram vocês que deixaram escapulir. Mas precisamos mesmo ter essa conversa em público?”
O dr. Fauci é um membro de longa data do funcionalismo público que serviu com integridade sob o presidente Trump e retomou a liderança na administração Biden para lidar com a epidemia de Covid. O congresso, sem dúvida compreensivelmente, pode não ter muita gana de lhe dar uma reprimenda pública pelo aparente lapso de julgamento ao financiar pesquisa de ganho de função em Wuhan.
A essas muralhas impenetráveis de silêncio deve-se adicionar o silêncio da mídia dominante. Até onde sei, nenhum grande jornal ou canal de televisão já deu aos leitores uma matéria aprofundada sobre a hipótese do vazamento laboratorial, como a que o leitor acaba de ler aqui, embora alguns tenham publicado editoriais breves ou colunas de opinião. Poder-se-ia pensar que qualquer origem plausível de um vírus que matou três milhões de pessoas seria digna de uma investigação séria. Ou que a sabedoria de continuar as pesquisas de ganho de função, independente da origem do vírus, seria digna de alguma perscrutação. Ou que o financiamento de pesquisa de ganho de função pelos NIH e NIAID durante uma moratória sobre tais pesquisas pediria por investigação. O que explica a aparente falta de curiosidade da mídia?
O omertà dos virologistas é uma razão. Repórteres de ciência, diferente dos de política, têm pouco ceticismo inato às motivações de suas fontes; a maioria vê o seu papel como na maior parte passar adiante a sabedoria dos cientistas às massas ignaras. De forma que, quando as suas fontes não ajudam, esses jornalistas ficam perdidos.
Outra razão, talvez, é a migração de boa parte da mídia na direção da esquerda do espectro político. Porque o presidente Trump disse que o vírus tinha escapado de um laboratório de Wuhan, os editores deram pouco crédito à ideia. Juntaram-se aos virologistas ao considerar o escape laboratorial uma teoria da conspiração dispensável. Durante a administração Trump, não tiveram problemas em rejeitar a posição dos serviços de inteligência de que o escape de laboratório não poderia ser descartado. Porém, quando Avril Haines, diretora da Inteligência Nacional do presidente Biden, disse a mesma coisa, ela também em geral foi ignorada. Isso não é para dizer que os editores deveriam endossar a hipótese do vazamento laboratorial, mas meramente que eles deveriam ter explorado a possibilidade de forma completa e justa.
As pessoas ao redor do mundo que muitas vezes passaram seu tempo confinadas em casa no ano passado poderiam desejar uma resposta melhor do que a mídia lhes deu. Talvez alguma surja a tempo. Afinal, quanto mais meses passarem sem uma teoria de emergência natural que ganhe alguma migalha de evidência em seu apoio, menos plausível ela parece. Talvez a comunidade internacional de virologistas virá a ser vista como um guia falso e com interesses pessoais. A percepção do senso comum de que a eclosão de uma pandemia em Wuhan poderia ter algo a ver com um laboratório de Wuhan fabricando novos vírus de perigo máximo em condições de segurança mínimas poderia no fim afastar a insistência ideológica de que tudo o que Trump disse não pode ser verdade.
E assim, que comece o acerto de contas.
Nicholas Wade
30 de abril de 2021
Agradecimentos
A primeira pessoa que levou a sério as origens do vírus SARS2 foi Yuri Deigin, um empreendedor da biotecnologia na Rússia e no Canadá. Em um longo e brilhante ensaio, ele dissecou a biologia molecular do vírus SARS2 e levantou, sem endossar, a possibilidade de que ele pudesse ter sido manipulado. O ensaio, publicado em 20 de abril de 2020, forneceu um mapa para qualquer um que quisesse buscar entender as origens do vírus. Deigin incluiu tanta informação e análise em seu ensaio que alguns duvidaram que poderia ser o trabalho de um único indivíduo e sugeriram que alguma agência de inteligência deveria ser o real autor. Mas o ensaio é escrito com mais leveza e humor do que eu suspeitaria encontrar em relatórios da CIA ou da KGB, e não vejo razão para duvidar que o dr. Deigin é o único e hábil autor.
Seguindo os passos de Deigin vieram muitos outros céticos quanto à ortodoxia dos virologistas. Nikolai Petrovsky calculou o quão forte é a ligação do vírus SARS2 aos receptores ACE2 de várias espécies e descobriu, para surpresa dele próprio, que o vírus parecia ser otimizado para o receptor humano, levando-o a inferir que ele poderia ter sido gerado em um laboratório. Alina Chan publicou um artigo mostrando que o SARS2, desde que apareceu, era muito bem adaptado às células humanas.
Um dos muito poucos cientistas do establishment a questionar a rejeição absoluta dos virologistas ao vazamento laboratorial é Richard Ebright, que há muito tempo alerta contra os perigos da pesquisa de ganho de função. Outro é David E. Relman da Universidade de Stanford. “Embora opiniões fortes sejam abundantes, nenhum desses cenários pode ser descartado ou aceito com confiança com os fatos disponíveis hoje”, escreveu ele. Parabéns também ao Robert Redfield, ex-diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, que disse à CNN em 26 de março de 2021 que a causa “mais provável” da epidemia “veio de um laboratório”, pois ele duvidava que um vírus de morcego pudesse se tornar um patógeno humano extremo de um dia para o outro, sem levar um tempo para evoluir, como parecia ser o caso com o SARS2.
Steven Quay, um médico pesquisador, aplicou ferramentas estatísticas e de bioinformática em explorações engenhosas da origem do vírus, mostrando, por exemplo, como os hospitais que recebiam pacientes no início se agrupavam ao longo da linha nº 2 do metrô de Wuhan que conecta o Instituto de Virologia em uma ponta ao aeroporto internacional na outra, a esteira rolante perfeita para distribuir o vírus do laboratório para o mundo.
Em junho de 2020, Milton Leitenberg publicou uma pesquisa preliminar sobre as evidências favorecerem o vazamento laboratorial da pesquisa de ganho de função no Instituto de Virologia de Wuhan.
Muitos outros contribuíram peças importantes para o quebra-cabeças. “A verdade é a filha”, disse Francis Bacon, “não da autoridade, mas do tempo”. O esforço de pessoas como essas acima é o que faz isso acontecer.
*Nicholas Wade é escritor e repórter veterano de ciência que atuou no New York Times entre 1982 e 2012. Texto original em inglês.
Texto traduzido pelo geneticista Eli Vieira. Para uma versão resumida de alguns desses fatos, confira o artigo do tradutor de novembro de 2020 aqui na Gazeta do Povo.
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