O movimento antivacina coloca em risco uma inovação responsável pela melhora na qualidade de vida da população mundial.
Se eu fosse presidente iria promover vacinações apropriadas mas não iria permitir injeções massivas que uma criança pequena não pode tomar – AUTISMO”, tuitou em 2014 o então empresário e agora presidente dos EUA, Donald Trump. Já em 2017, Robert F. Kennedy Jr., ativista ligado ao partido democrata e sobrinho do ex-presidente JFK, prometeu uma recompensa de 100 mil dólares para quem conseguisse provar que vacinas são seguras para crianças e gestantes. Mais de 350 grupos de pessoas ligadas a saúde mandaram estudos para Kennedy demonstrando a segurança e os benefícios das vacinas. Nada disso foi capaz de alterar a sua percepção da realidade. Logo depois, Trump convidou Kennedy para liderar um grupo de estudos sobre a segurança das vacinas na Casa Branca.
O movimento antivacina não é novidade. Na verdade ele nasceu junto com as campanhas de imunização. Já em 1905, nos EUA, foi julgado o caso Jacobson vs Massachusetts. Na época, o pastor Henning Jacobson recorreu à Suprema Corte do país ao se recusar a pagar uma multa de $5 dólares por não se vacinar contra a varíola. Perdeu por 7 votos a 2 e teve que pagar a multa, mas ganhou da justiça a declaração de que “vacinar as pessoas a força é um procedimento cruel e desumano em último grau”, ou seja, nos EUA o governo pode punir quem não vacina mas não pode obrigar ninguém a vacinar contra a vontade.
Na mesma época, ficou famosa no Brasil a Revolta da Vacina. O médico e sanitarista Oswaldo Cruz, Diretor Geral de Saúde Pública – uma espécie de Ministro da Saúde do governo Rodrigues Alves, tentou vacinar os cariocas a força e quase derrubou o presidente. É claro que a vacinação obrigatória não era o único foco de descontentamento da população, mas a violência dos agentes sanitários foi o estopim da revolta da população contra o governo. A conclusão foi parecida com a dos EUA: o governo passou a exigir que as pessoas estivessem vacinadas se quisessem trabalhar, estudar ou se casar, mas deixou de pegar as pessoas pelo braço.
Mas, apesar de toda a controvérsia que aconteceu no início das campanhas de vacinação, parecia que no final da década de 1990 estávamos vivendo o fim dessa história. De maneira análoga com o que pensávamos a respeito da consolidação democrática após a queda do muro de Berlin proposta pelo filósofo estadunidense Francis Fukuyama, muitos médicos e pesquisadores também acreditavam que tínhamos vencido a guerra e conseguindo erradicar um grande número de doenças infecciosas através das vacinas. Nos enganamos quanto a isso também.
Em 2019 o mundo olha alarmado para o aumento de 300% nos surtos de sarampo. As causas são variadas, entre elas pobreza, exclusão social, dificuldade de acesso e desabastecimento. Tudo isso é verdade e explica boa parte dos surtos nas regiões mais pobres do planeta e que tristemente ainda lideram o número de casos. Mas elas não se aplicam a um número crescente de casos de pessoas que contraíram a doença porque não quiseram se vacinar. Nos EUA, o surto desse ano já atingiu mais de 700 pessoas e é o maior desde que a doença foi considerada eliminada no país no ano 2000. A concentração dos casos está em bolsões de pessoas não vacinadas, onde a taxa de imunização está muito abaixo dos 95% recomendados pela Organização Mundial de Saúde. No Brasil, A taxa de cobertura da tríplice viral alcançava 96% das crianças em 2015, baixou para 84% em 2017 e abriu caminho para o retorno da infecção ao país no ano passado.
Dava pra entender a desconfiança que os cidadãos do início do século passado tinham com relação às vacinas. A tecnologia era uma novidade. As pessoas tinham medo de injetar um vírus vivo no seu corpo, ainda mais um vírus criado a partir da vaca (como era o caso da vacina contra a varíola). Além disso, os costumes eram muito diferentes dos que vivemos hoje e muitas mulheres tinham vergonha até de mostrar o braço desnudo para receber a vacina.
Mais difícil é entender como é possível hoje, com tanta informação e estudos científicos disponíveis, ainda termos um crescente movimento contra as vacinas, uma inovação responsável pela queda drástica da mortalidade infantil durante o século passado bem como do número de sequelas devido a doenças infecto-contagiosas.
Um marco para esse novo movimento antivacina aconteceu em 1998. Foi neste ano que o médico americano Andrew Wakefield publicou na revista Lancet, uma das mais prestigiadas da área, um estudo que relacionava a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) com autismo, como citou Donald Trump no tweet do início deste texto.
Posteriormente foi comprovado que o estudo era uma farsa, que o médico tinha ações da empresa concorrente do fabricante da vacina e acabou tendo seu registro cassado. É consenso hoje que a vacina tríplice viral não tem nenhuma relação com o autismo. Mas a faísca da desconfiança pegou e desde então vem se alastrando.
Por isso resolvi fazer uma pesquisa estilo Globo Repórter para tentar entender quem são, onde moram, como vivem, o que pensam e em quem votam as pessoas que fazem parte do atual movimento antivacina. A resposta é interessante mas, se a gente pensar bem, não chega a surpreender.
Duas pesquisas recentes (uma de 2014 e outra de 2015) realizada pelo Pew Research Center encontrou o seguinte resultado: quanto mais radical politicamente uma pessoa é, seja liberal ou conservador; republicano ou democrata, maiores as chances dessa pessoa acreditar que as vacinas não são seguras. Ambos têm, segundo a pesquisa, uma vez e meia mais chances de serem contra vacina do que seus pares mais moderados.
Mais difícil é entender como é possível termos um crescente movimento contra as vacinas, uma inovação responsável pela queda drástica da mortalidade
Na esquerda o estereótipo é o da família que busca um estilo de vida ultra saudável, só consome orgânicos, acredita que os alimentos geneticamente modificados são um enorme perigo para a saúde e que as vacinas fazem parte de uma grande conspiração capitalista criada para favorecer a indústria farmacêutica.
Do outro lado, à direita, o estereótipo são os ultra conservadores religiosos e suas famílias numerosas. São desconfiados a respeito das inovações tecnológicas em geral e contra qualquer interferência do governo na forma como educam seus filhos.
Em comum, além de serem contra a vacina, esses grupos também são mais ricos, mais educados e mais brancos do que a média da população. Em maior percentual também optam por educarem seus filhos em casa (uma prática que a ministra Damares Alves pretende regulamentar no Brasil).
Entre as vacinas mais controversas, além da tríplice viral, está a vacina contra o HPV. O papiloma vírus humano é o responsável por causar câncer no colo do útero. Em 2018, mais de 300 mil mulheres morreram no mundo em decorrência da doença, que hoje pode ser prevenida por vacina. O problema é que o HPV é um vírus transmitido por via sexual e está presente em quase 50% das pessoas (porém só algumas desenvolvem a doença). Como a prevalência é alta, a chance de contrair o vírus (não necessariamente a doença) na primeira relação sexual também é grande. Por isso, para aumentar a eficácia da vacina, recomenda-se imunizar crianças a partir dos 9 anos de idade, antes que iniciem a vida sexual. Será que eu preciso explicar as barreiras que essa vacina, que pode salvar milhares de vidas femininas, enfrenta nos dias de hoje? Se uma parcela significativa da população é contra a educação sexual nas escolas imagina em relação a aplicação na infância de uma vacina que previne DST?
Quanto mais radical politicamente uma pessoa é maiores as chances dessa pessoa acreditar que as vacinas não são seguras
E se convencer as pessoas a vacinar é difícil, convencer a não vacinar, é fácil. No Japão, o percentual de imunização contra HPV caiu de 70% em 2013 para menos de 1% em 2017, depois que um pesquisador afirmou ter encontrado em um único rato danos cerebrais após uma injeção da vacina contra HPV. Um rato, contra mais de 100 milhões de vacinas que já foram aplicadas nos EUA entre 2006 e 2017 e que atestam a segurança dessa vacina.
A tendência das pessoas comuns antivacinas se repete entre celebridades e políticos. Entre os representantes da esquerda que já deram declarações públicas antivacinas encontramos várias celebridades de Hollywood: Jim Carrey, Alicia Silvestrone e Bill Maher estão entre os mais famosos. Entre os políticos, além dos já citados Donald Trump e Robert F. Kennedy Jr. temos o senador republicano Rand Paul e o político italiano de extrema direita Massimiliano Fedriga (internado recentemente com catapora, doença que pode ser prevenida com vacina).
E no Brasil temos quem… algum palpite? Uma nota e uma chance, como diria o Silvio Santos no seu programa dominical Qual é a música: sim, o próprio Olavo. Em 2016, o autodeclarado filósofo Olavo de Carvalho escreveu, também no Twitter “Vacinas matam ou endoidam. Nunca dê uma a um filho seu. Se houver algum problema, venha aqui que eu resolvo.” A fila, infelizmente, vai ser longa.
Renata Velloso é formada em Administração Pública pela EAESP-FGV e Medicina pela Unicamp, trabalha com projetos de inovação na área de saúde no Vale do Silício na Califórnia, é colaboradora do Terraço Econômico e autora do livro de empreendedorismo para jovens e adolescentes “Criando Unicórnios”.
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