“Passaportes vacinais” e direitos individuais

Com o avanço da vacinação contra a Covid-19 em diversos países, inclusive no Brasil, autoridades e a sociedade buscam maneiras de retomar a normalidade das atividades o quanto antes, enquanto se minimizam os riscos de contaminação, já que o vírus só deixará definitivamente de circular quando uma proporção muito grande da população estiver vacinada. Entre as ideias que ganham espaço está a do “passaporte vacinal”: uma comprovação, física ou eletrônica, de que seu portador está vacinado. No entanto, a iniciativa nasce cercada de controvérsia, pois o que vem sendo proposto vai muito além de um mero comprovante de vacinação como as tradicionais carteirinhas com que todo brasileiro está familiarizado, ou um documento para permitir deslocamentos internacionais (como vários países já faziam, antes da pandemia, com exigências de vacinação contra a febre amarela).

Boa parte das propostas de passaportes vacinais traz consigo a implantação das chamadas “restrições civis”, concedendo a seu portador a possibilidade de frequentar livremente locais ou acessar serviços, enquanto aqueles que não comprovassem a vacinação estariam excluídos desses mesmos locais ou serviços. Há versões da ideia, por exemplo, que impediriam não vacinados até mesmo de usar meios de transporte coletivo ou embarcar em voos; de emitir documentos; de participar de concursos e assumir cargos públicos; ou de frequentar escolas e universidades.

Muitos projetos de “passaporte vacinal” fariam do não vacinado um cidadão de segunda classe, sem acesso a direitos básicos como o de ir e vir, e o de construir sua própria vida e seu futuro por meio do acesso à educação

Tantas restrições significam, em primeiro lugar, que, mesmo nos locais onde não existe obrigação legal de vacinação, fica implantada uma obrigação tácita. Não estamos, aqui, diante do que a economia comportamental chama de nudge, um incentivo positivo para que as pessoas se vacinem, e que deveria ser a primeira opção quando se quer fomentar certo comportamento; trata-se, logo de imediato, de inviabilizar a vida do indivíduo não vacinado de tantas formas que praticamente fica abolida a liberdade para não se vacinar. E isso exige a pergunta: essas restrições fazem sentido?

Chama a atenção, logo de imediato, a enorme desproporcionalidade entre o crime e o castigo. As vedações propostas em projetos de lei que preveem o passaporte vacinal são muito mais graves que as restrições impostas até mesmo, por exemplo, a um criminoso condenado que cumpre pena em regime aberto – o que, na prática, colocaria a recusa à vacina entre as piores transgressões que alguém poderia cometer, isso sem qualquer previsão legal. O não vacinado se tornaria um cidadão de segunda classe, sem acesso a direitos básicos como o de ir e vir, e o de construir sua própria vida e seu futuro por meio do acesso à educação. Também preocupante é o fato de muitas propostas não preverem nem mesmo a objeção de consciência, que poderia ser invocada em alguns casos, como o de pessoas contrárias ao aborto que não gostariam de receber vacinas que usaram, na produção ou nos testes, linhagens celulares como a HEK-293, com origem no material biológico retirado de fetos abortados.

Além disso, as restrições tornam-se incoerentes quando se argumenta que o objetivo do passaporte vacinal é reduzir o risco de contaminação. Afinal, muitas (quando não todas) atividades que se pretende vedar aos não vacinados no futuro estão perfeitamente liberadas para os não vacinados neste exato momento, em que a possibilidade de contágio é inclusive maior, já que a proporção de vacinados ainda é baixa. Ora, à medida que mais pessoas se vacinam, o risco de surtos e episódios de contaminação em massa vai se reduzindo, mesmo se admitindo que alguém imunizado ainda possa ser portador do coronavírus. Bastaria a prorrogação das medidas básicas de higiene e prevenção, como o distanciamento, o uso de álcool em gel e de máscaras, até que a pandemia estivesse finalmente debelada e a vida pudesse retornar ao normal.

E, do ponto de vista prático, ainda surgiriam outras situações que poderiam levar a grandes injustiças. As restrições seriam aplicadas a todos os não vacinados, ou apenas àqueles pertencentes a grupos que já tiveram a chance de receber as doses? No primeiro caso, os mais jovens pagariam o preço por uma “recusa” que nem tiveram a chance de fazer. No segundo caso, um idoso não vacinado estaria sujeito às restrições, enquanto um não vacinado de 20 anos continuaria livre para frequentar os mesmos espaços enquanto ainda não chegasse a sua vez de receber as doses – isso apesar de o risco para os demais ser igual para ambos.

Havendo disponibilidade de doses, é preciso perseguir o objetivo de vacinar o maior número possível de pessoas no menor intervalo possível de tempo, disso não há dúvida. Mas não há como partir para proibições tão radicais sem que haja necessidade real – por exemplo, se a adesão à vacinação estiver abaixo do necessário para se chegar à imunidade de rebanho –, tampouco sem que outras alternativas tenham sido testadas, inclusive benefícios para os vacinados, em vez de punições aos não vacinados. Por todos os pontos de vista pelos quais se possa olhar, portanto, a ideia do passaporte vacinal atrelado a restrições civis tão rígidas é completamente desproporcional e não tem como vingar sem que se cometam ainda mais ataques à liberdade dos cidadãos, já tão prejudicada por outras restrições colocadas em prática desde o início da pandemia.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

Be the first to comment on "“Passaportes vacinais” e direitos individuais"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*