Três dias depois de Lis, Mel desperta e surpreende a equipe médica pela rápida recuperação após cirurgia de separação
A rápida recuperação das siamesas Lis e Mel surpreendeu os familiares e a equipe médica do Hospital da Criança de Brasília José de Alencar (HCB). Mel, que permanecia em coma, abriu os olhos pela primeira vez ontem. Ela respira sem ajuda de aparelhos cinco dias após a cirurgia de separação, realizada no sábado. Lis se adiantou às expectativas médicas. Acordou entre as primeiras 48 horas depois da operação e, segundo a mãe, Camilla Vieira, 25, “está sapeca e se movimenta bastante”. A expectativa é de que as garotas saiam da unidade de terapia intensiva (UTI) em duas semanas.
Mel acordou no momento da troca de curativos, pela manhã. A menina abriu os olhos e ensaiou alguns movimentos. Para duas crianças que fizeram uma neurocirurgia há menos de uma semana, a resposta é fantástica, segundo a equipe médica. O sinal tranquilizou a família. “Estamos felizes. Ver a Mel saindo dos aparelhos deixa o coração aliviado”, disse Camilla, após a remoção dos tubos da filha.
Com os olhos abertos desde segunda-feira, Lis contempla atentamente a equipe da UTI durante os momentos de interação com os profissionais. Ela, contudo, ainda observa com pouca frequência o lado onde, antes, ficava a irmã. Mesmo assim, devido à complexidade do caso, os médicos se mantêm alertas.
Três dos 50 profissionais da equipe que atuaram na separação das meninas deram entrevista ao Correio na tarde de ontem: o neurocirurgião Benício Oton, o anestesiologista Luciano Fares e o cirurgião plástico Ricardo de Lauro Homem. “Essa é a grande notícia de hoje. A Mel alçou voo. A Lis já estava voando”, comemorou Luciano. As meninas nasceram em 1º de junho do ano passado, no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). Com dois meses, elas começaram a ser preparadas para a cirurgia de separação, que ocorreu no HCB.
Equipe
A delicada operação que separou as meninas é um marco na medicina brasiliense. A condição de Lis e Mel era rara. Na literatura médica, há cerca de 50 casos no mundo, com irmãos que foram operados desde os anos 1950, mas nem todos com sucesso. As situações em que não cabia a intervenção se deviam, principalmente, às ligações cerebrais, que tornavam impossível o processo cirúrgico. Mel e Lis não compartilhavam parte do cérebro ou da meninge; por isso, puderam ser operadas.
O alto grau de complexidade do procedimento exigiu dos profissionais estudo e sincronização. Tudo precisava funcionar como uma engrenagem. A equipe responsável pelo caso, comandada pelo neurocirurgião Benício Oton, gastou centenas de horas de ensaios, reuniões e planejamentos. Até as cores das toucas, máscaras e luvas usadas foram escolhidas. Os integrantes da equipe que cuidava de Mel usaram amarelo. E os de Lis, rosa. “Não foram apenas dois médicos que separaram a Lis e a Mel. Foi toda uma equipe junta. Todos seguravam aquele bisturi”, afirmou explicou o neurocirurgião Márcio Marcelino, um dos responsáveis pela cirurgia (leia entrevista abaixo).
Além de ter unido todo um hospital e emocionado Brasília, o caso das bebês brasilienses poderá ajudar outras crianças em situações semelhantes. A cirurgia foi registrada em vídeo, e a experiência será publicada em revistas científicas. Ficou a certeza de que todas as especialidades envolvidas na operação aprenderam alguma coisa com Lis e Mel. “Se você tem uma equipe ao seu lado, consegue qualquer coisa. E não só quanto à parte médica. Isso inclui pacientes e familiares. Essa é a grande lição que fica para mim”, comentou Luciano.
Para o anestesiologista, os maiores desafios foram o tempo e como esperar que um bebê de 9kg suportasse mais de 20 horas de cirurgia. “Trouxemos a bibliografia que tínhamos, mas aprendemos muitas lições do que aconteceu. Agora, a intenção é repassar. O que vimos tem de ser replicado para que outros casos sejam um pouco mais fáceis”, explicou. A emoção de trabalhar em um caso raríssimo no mundo animou os médicos de Brasília. “Craniópagos de todo o mundo, vinde a nós”, brincou Ricardo, cirurgião plástico da Ala de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (Hran).
Após o procedimento, o HCB, uma instituição pública, tornou-se a primeira do Distrito Federal e a terceira do país a conduzir uma separação de gêmeos unidos pelo crânio. “Esse evento raríssimo mostra, sobretudo, que a rede pública é capaz de fazer procedimentos complexos como esse”, ressaltou Benício.
Entrevista Márcio Marcelino, neurocirurgião do Hospital da Criança
“Essa cirurgia deixou legado no hospital”
Qual é o último boletim médico das meninas?
Elas estão bem. As duas estão estáveis e reagindo bem, continuam em observação na UTI. A Lis surpreendeu mais, teve uma recuperação muito rápida. A Mel evolui bem, acordou hoje e está dentro do esperado. Já esperávamos uma recuperação mais fatigada e arrastada. A gente ainda está em uma fase muito aguda de tudo isso, mas toda a evolução da Lis surpreendeu.
Tem algum motivo para a Lis ter acordado antes da Mel? A condição anatômica da Mel era diferente?
Não. Elas têm a mesma condição física. Durante a cirurgia, a Mel exigiu um pouco mais da equipe de anestesia. É uma particularidade que foge das condições normais. Talvez, por isso, ela tenha demorado um pouco mais para acordar.
Como o senhor entrou no caso das siamesas?
Conheci as meninas em agosto de 2018. Sou neurocirurgião pediátrico e trabalho no HCB desde 2011. Além disso, fui coordenador de neurocirurgia do Hospital de Base; então, era natural que a gente pudesse integrar a equipe.
Quando vocês souberam que elas podiam ser separadas?
Desde os momentos iniciais sabíamos de que era possível. Quando temos casos de craniópagos, há alguns critérios de elegibilidade para a separação. Inicialmente, elas fizeram diversos exames, tomografias e ressonâncias que precisavam ser complementados e confirmados com outros exames para que pudéssemos avaliar todos os detalhes da anatomia delas, mas todos os exames confirmaram a possibilidade de separação.
As técnicas usadas na cirurgia da Lis e da Mel vão poder ser usadas em outras cirurgias?
A realização de uma cirurgia com essa demanda todo um conhecimento prévio da equipe e, lógico, tudo isso foi aprofundado, focando no problema delas. Agora, o que eu acho mais importante foi que essa cirurgia deixou legado no hospital. Exigiu muito das equipes de anestesia, cirurgia plástica, neurocirurgia e todas as outras. Passamos muitas e muitas horas discutindo quais opções deveríamos usar nessas crianças. O mais importante de tudo foi que a cirurgia trouxe todo o grupo para o hospital, que se engajou na história; por isso, funcionou tudo harmonicamente. Esse é o legado mais importante disso tudo.
E qual foi a etapa mais complicada da cirurgia?
Todas as 36 etapas tiveram as suas complexidades, mas a etapa que mais exigiu da gente (neurocirurgiões) foi na separação final. Na fase final, tanto o cérebro quanto os ossos da base do crânio estavam expostos e havia muito tempo de anestesia. Então, estávamos cada um de um lado das duas tentando fazer o mais rápido e perfeitamente possível.
Por que vocês escolheram fazer essa cirurgia no Hospital da Criança?
Não teria outro lugar em Brasília onde houvesse essa entrega. Eu não sei exatamente como e por que isso acontece, qual é a magia do Hospital da Criança, mas a gente percebe que, desde o vigilante ao diretor, do neurocirurgião até o servente do centro cirúrgico, todo mundo conhece o seu papel e faz bem aquilo o que tem de fazer. Vi isso quando estava na França. Aqui no Brasil, só encontro no HCB.
Como será o desenvolvimento das meninas?
Esperamos que elas se desenvolvam normalmente, mas temos os pés no chão. A gente vive um dia de cada vez.
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