“Ensino abolicionista”, “teoria racial crítica”, “currículo emancipatório”, “educação subversiva” e “ensino culturalmente responsivo”. Conceitos como esses – alguns dos quais professores e estudantes brasileiros já estão acostumados – têm se alastrado cada vez mais em escolas dos Estados Unidos. Uma série de reportagens publicadas no City Journal abordou o significativo aumento de abordagens de cunho marxista nas salas de aula norte-americanas por meio de mudanças curriculares e sessões de treinamento antirracistas para professores.
As iniciativas já ocorriam há alguns anos, mas ganharam mais força após o assassinato de George Floyd, em maio de 2020. A violência do episódio foi sucedida de manifestações contrárias ao preconceito racial. Entretanto, educadores ativistas – que não se limitam a abordar apenas o racismo, mas também outras “opressões”, como o próprio capitalismo e a tradição norte-americana – confundem professores e estudantes quanto ao significado literal do termo “black lives matter” (vidas negras importam) para fazer proselitismo ao movimento Black Lives Matter, de cunho marxista revolucionário, que tem sido causador de uma série de atos violentos no país, como saques, agressões e vandalismo em nome da causa antirracista.
Junto a isso, os educadores antirracistas têm recorrido à teoria racial crítica e, com frequência, à doutrina de Paulo Freire (filósofo marxista brasileiro que contribuiu para o desenvolvimento da pedagogia crítica) para implementar as sessões de treinamento para docentes em que defendem, por exemplo, que o sistema educacional dos Estados Unidos é culpado de “assassinato de espíritos” de crianças negras.
Os programas de treinamento desagradam parte dos professores, que veem nas iniciativas uma manobra para implementar teorias marxistas e usar a sala de aula para a formação de militantes em detrimento da busca pela melhoria do desempenho acadêmico dos alunos. Da mesma forma, as práticas preocupam pais e responsáveis que, constantemente, são apontados pelos educadores antirracistas como empecilhos para as novas concepções pedagógicas. Tanto docentes como pais e responsáveis que discordam das mudanças sob a ótica do antirracismo se veem intimidados pelo medo de serem considerados racistas ao criticarem os modelos de “educação subversiva”.
De acordo com um professor de uma escola pública da cidade de Buffalo ouvido pelo repórter Christopher Rufo, do City Journal, os programas de treinamento impulsionaram uma “política radical” que, na prática, tornaram-se uma série de “repreensões e viagens de culpa”. Segundo o docente, os professores se veem obrigados a se submeterem ao que chama de “jogos mentais manipuladores” e a expressarem apoio às iniciativas para não correrem o risco de retaliação profissional.
Sessões de treinamentos antirracistas
Um dos casos relatados pela série de reportagens está relacionado à rede pública de ensino de Buffalo, em Nova York. No ano passado, a superintendente de iniciativas culturalmente e linguisticamente responsivas, Fatima Morrell, elaborou um novo currículo no qual exigia que as escolas ensinassem os princípios do movimento Black Lives Matter – o que incluía “desmantelamento do privilégio cisgênero”, “redes de afirmação queer”, e “ruptura da dinâmica da família ocidental” –, além de um programa de treinamento antirracista para professores.
No ensino fundamental e médio, as escolas passaram a ensinar sobre “racismo sistêmico”, instruindo os alunos que a sociedade americana foi projetada para o empobrecimento das pessoas negras e o enriquecimento dos brancos. Os alunos também aprendem que todos os brancos desempenham um papel na perpetuação do racismo sistêmico nos EUA.
Enquanto essas iniciativas são colocadas em prática, o desempenho escolar da cidade vai de mal a pior: apenas 18% dos alunos das escolas públicas de Buffalo são proficientes em matemática e 20% em língua inglesa, com números ainda piores para as minorias raciais.
Em outro relato, o Departamento de Educação da Califórnia aprovou, no início deste ano, um currículo com estudos étnicos, e distritos escolares começaram a implementar programas que defendem a “descolonização” dos Estados Unidos e a “libertação” dos estudantes do capitalismo e do patriarcado.
Jorge Pacheco, presidente da California Latino School Boards Association (CLSBA) e conselheiro do Currículo Modelo de Estudos Étnicos estadual, declarou que o currículo de estudos étnicos é baseado na obra de Paulo Freire e afirmou que os alunos devem ser educados para compreender sua opressão e desenvolver as habilidades práticas, ou para desafiar e, eventualmente, derrubar seus opressores. Segundo ele, os professores devem “despertar os alunos quanto à opressão” e levá-los a decodificar e destruir o regime político dominante.
Segundo Christopher Rufo, editor do City Journal e autor da série de reportagens sobre as iniciativas antirracistas, à medida que essas teorias pedagógicas avançam para a sala de aula, “as escolas da Califórnia ensinam milhões de crianças a odiar seu próprio país”.
“Eles serão orientados para o trabalho de ‘descolonizar’, ‘desconstruir’ e ‘desmontar’ sua própria sociedade. Os ativistas dos estudos étnicos compreendem a natureza desestabilizadora de seu projeto e acreditam que isso lhes dá força para seus fins políticos mais amplos”, diz.
No ano passado, o maior distrito escolar da Carolina do Norte lançou uma campanha contra a “brancura nos espaços educacionais”. Em uma conferência realizada em fevereiro de 2020, que contou com a participação de cerca de 200 professores de escolas públicas do estado norte-americano, conferencistas argumentaram que “a brancura perpetua o sistema de injustiça” e que o “currículo pintado de branco”, do distrito, estava causando danos reais aos alunos e educadores. O grupo encorajou os professores brancos a desafiarem a “ideologia dominante da branquitude” e a “perturbar a cultura branca” na sala de aula por meio de uma série de intervenções transformacionais.
Evento Black Lives Matter at School (Black Lives Matter na escola) realizado em fevereiro de 2020 em Milwaukee, no estado de Wisconsin (Crédito: MTEA)
Em agosto de 2020, a rede pública de ensino de Seattle promoveu um treinamento para os professores com o tema “Desmantelando o contrato racial por meio de práticas de cura”. Na ocasião, os preletores alegaram que as escolas americanas são culpadas de “assassinato espiritual” contra estudantes negros e que os Estados Unidos são uma sociedade supremacista branca. Durante o curso, os professores foram instruídos a dividir o mundo em inimigos, aliados e cúmplices e, ao final, tiveram que explicar como abordariam os movimentos de justiça social em sala de aula.
“Isso é uma tragédia para os alunos. As escolas públicas de Seattle estavam fechadas para o aprendizado presencial desde os primeiros dias do surto de Covid. Em setembro, o distrito escolar relatou que menos da metade de todos os alunos frequentou o ensino remoto, com taxas de frequência ainda piores para as minorias. Em vez de enfrentarem esta crise que, sem dúvida, expandiu as disparidades raciais, o distrito priorizou o treinamento de ‘privilégio branco’ para professores”, questiona Christopher Rufo.
Também em 2020, o Distrito Escolar Unificado de San Diego anunciou um treinamento obrigatório sobre diversidade para professores, acrescentou no currículo o ensino de estudos antirracistas e até extinguiu aspectos da disciplina escolar, como a exigência de entregar os trabalhos de casa dentro de um prazo determinado. Tudo em nome de se tornar, nas palavras de Richard Barrera (membro do conselho escolar), “um distrito escolar antirracista”.
Na apresentação aos docentes feita por Bettina Love – uma teórica crítica da raça que dissemina o conceito de “ensino abolicionista” –, ela argumentou que “a branquidade reproduz a pobreza, o fracasso escolar, o alto desemprego, o fechamento de escolas e o trauma para as pessoas de cor”. O treinamento ocorre num momento em que apenas 37% dos alunos da quarta série de San Diego são proficientes em leitura e só 42% em matemática.
Enquanto a liderança do distrito escolar de San Diego promove agendas antirracistas, um desconforto significativo ocorre entre professores e administradores. Mas, de acordo com relato de uma fonte ao City Journal, muitos servidores estão relutantes em denunciar as campanhas ideológicas por medo de serem acusados de racismo.
“Ensino subversivo” em sala de aula
Com o sinal verde das lideranças das redes de ensino, o enviesamento progressista, sob o pretexto do antirracismo, chega na ponta com facilidade. No ano passado, uma professora da R. I. Meyerholz Elementary School, uma escola primária localizada em uma região nobre da cidade de Cupertino, na Califórnia, conduziu alunos da terceira série a desconstruirem suas identidades raciais e depois se classificarem de acordo com seu “poder e privilégio”. A atividade sobre “identidades sociais”, no entanto, ocorreu durante uma aula de matemática.
A professora pediu aos alunos que criassem um mapa de identidade listando sua raça, classe, gênero, religião, entre outras características, e explicou que os alunos vivem em uma cultura dominante de “brancos, cisgênero, cristãos, saudáveis, falantes de inglês” que, de acordo com a lição, criaram e mantiveram a cultura para manter o poder e permanecer no poder.
Em outra tarefa, os alunos foram orientados a descrever quais aspectos de suas identidades detêm poder e privilégio e quais não. Em um texto de exemplo do exercício, havia trechos sobre sexualidade não-binária e transgenerismo. A atividade gerou grandes contestações por parte dos pais.
Por outro lado, uma escola primária da Filadélfia, a William D. Kelley School, recentemente forçou alunos de 10 e 11 anos a celebrarem o “comunismo negro” e simular um comício em homenagem a Angela Davis, militante que integrava o Partido Comunista do Estados Unidos.
Especialistas questionam “revolução pedagógica” descolada da melhoria do desempenho escolar
Para Pedro Caldeira, professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), pesquisador de áreas como tecnologia educacional, alfabetização e literacia e diretor do Núcleo de Educação do grupo Docentes Pela Liberdade (DPL), as alterações curriculares, bem como os treinamentos, não estão comprometidos com a busca pela melhora do desempenho educacional dos estudantes. “As estratégias para alterar positivamente e de forma permanente os resultados escolares de populações deprimidas social e economicamente passam pela formação inicial e continuada de docentes, pelo desenvolvimento de bons planos de ensino, por ambientes de estudo organizados e estruturados e por serem ensinados aos alunos os comportamentos adequados em sala de aula e as adequadas técnicas e métodos de estudo, por exemplo”, cita o educador.
Caldeira aponta que conceitos como “ensino abolicionista”, “currículo emancipatório” e “educação subversiva” se traduzem em expressões ideológicas e carecem de comprovação científica. Ele relata que muitos professores acreditam que a melhor forma de contribuírem para o nascimento de uma “sociedade melhor” é por meio da formação de ativistas. “Para isso incentivam os seus alunos a desenvolverem o seu ‘pensamento crítico’. Mas para esses professores, os alunos só demonstram pensamento crítico quando pensam da mesma forma que eles. Porém, isso está longe de ser pensamento crítico”, observa.
O professor avalia que em alguns aspectos, como na alfabetização, a ideologização do ensino é muito mais significativa no Brasil do que nos Estados Unidos. Mas, ao se pensar no sistema educacional público como um todo, a situação do país norte-americano é mais acentuada. Para o educador, a recorrência de manifestações político-ideológicos nas salas de aula e na formação de professores em ambos os países deve ser substituída por metodologias educacionais que comprovadamente contribuam para impactos positivos no processo de ensino e aprendizagem.
Na avaliação de Christopher Rufo, os teóricos raciais críticos construíram seus argumentos como uma ratoeira, blindados contra críticas. “Os treinadores de diversidade farão uma afirmação ultrajante, como ‘todos os brancos são intrinsecamente opressores’. E então, quando confrontados com discordâncias, adotam um tom condescendente e explicam aos participantes que estes estão ‘na defensiva’ ou com raiva porque estão reagindo por culpa e vergonha”, diz o editor. “Os dissidentes são instruídos a permanecer em silêncio, a inclinar-se para o desconforto e a aceitar sua ‘cumplicidade na supremacia branca'”.
Segundo ele, a premissa da teoria racial crítica – de que a história americana inclui a escravidão e outras injustiças, e que devemos aprender com essa história – é inegável. “Mas sua conclusão revolucionária, de que a América foi fundada e definida pelo racismo e que nossos princípios fundamentais, nossa Constituição e nosso modo de vida devem ser derrubados, não é correta”, afirma.
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