Leio uns trechos de Arquipélago Gulag e me lembro do alemãozão que vez ou outra figura por este espaço, mas que ultimamente anda meio quieto: o Zeitgeist. A julgar pela prosa de Solzhenitsyn, naquela União Soviética da primeira metade do século XX o espírito do tempo era palpável. Sim, dava para encontrá-lo num boteco, lhe dar a mão e receber de volta aquele cumprimento mole típico dos canalhas.
Daí saio para sentir o bafo quente do verão tardio no rosto e, de quebra, metabolizar um tiquinho de vitamina D. E quem encontro ali na esquina? O próprio. Puxo papo, digo que fazia tempo que ele não aparecia. “Mas você está acabado, hein, rapaz?!”, comento. Mas “acabado”, neste caso, é um eufemismo.
Zeitgeist, que conheci no auge da juventude, todo cheio de esperança e otimismo, se transformou num monstrengo de culpa, medo, raiva e vingança. Tudo junto e misturado. Por isso mesmo não me surpreendi quando ele se virou para mim e disse que estava “morto por dentro” (palavras dele!) por causa do presidente genocida. Mas não só. A culpa também era dos governadores e prefeitos, empresários gananciosos, pobres em geral, negacionistas conscientes ou não, gente que duvida, gente que obedece. Gente.
É muito difícil resistir ao que nos diz o espírito do tempo. Duvida? Pois tente enfrentar o monstrengo nessas suas fases mais sombrias e depois conversamos. Da última vez que estupidamente ousei ir contra ele, ah, nem te conto. Ou melhor, conto, sim: acabei deprimido e sozinho, porque Zeitgeist me tirou qualquer possibilidade de diálogo.
Assim, quando ele me pergunta de quem é a culpa, não ouso pedir que ele seja mais específico. Não adiantaria e só o irritaria mais ainda. Já entendi que o espírito do tempo está nessa de precisar encontrar culpados. E ele não descansará enquanto não os encontrar. Respondo à pergunta com a obediência dos que temem o oblívio. “A culpa é”, começo, e desato a mencionar nomes e instituições e generalizações e estereótipos e, quando dou por mim, reconheço que Zeitgeist é um espertinho mesmo. Mais fácil do que encontrar culpados é se ver como vítima inocente de um grande complô contra você.
Coisa de gênio, você há de convir. Mas não terminamos ainda. Porque Zeitgeist não é só culpa. É também medo. Pavor. Pânico. Morreram milhares de pessoas. Não tem mais leito. O próximo pode ser você. Como não poderia deixar de ser, o discurso vem acompanhado por um imperativo passivo-agressivo: “proteja-se”. Não vou discordar. Não sou (tão) trouxa. Você discordaria?
Não me escapa, porém, a ironia de estar ouvindo conselhos de um espírito do tempo temeroso. Dizem que o medo é um péssimo conselheiro por um bom motivo. E se eu fizer tudo ao contrário?, me pergunto. O que nos leva a outra pergunta: em que medida ir contra Zeitgeist é sinal de inteligência? Sou minúsculo e sei que não há heroísmo sem muito sofrimento. Não quero sofrer mais do que o estritamente necessário. Logo, concordo com um meneio insincero. É quando Zeitgeist mostra sua terceira faceta: a da raiva.
“Mas você não vai reclamar?!”, me pergunta ele aos berros, atraindo os vizinhos às janelas. “Tem que reclamar. Tem que apontar o dedo pro fascista, pro negacionista, pro gado, assim, só, e gritar bem alto. Fascista! Negacionista! Gado!” Neste momento passou um carro bem devagar. Dentro dele, duas mulheres lindas nos encararam com uns olhões arregalados. “Ele não!”, gritaram elas, e eu me senti aliviado. Mas só até entender que o que elas queriam dizer era “#EleNão!”.
Digo a Zeitgeist que foi bom te encontrar, cara, a gente se vê por aí. E vou dando meia-volta, mas ele me segura pelo braço. “Não vai ainda. Falta falar da vingança”, pede ele. Ou será que manda? Sei lá. Por trás da máscara é meio difícil entender as intenções das pessoas. De qualquer forma, fico ali e o vejo dar um showzinho improvisado mostrando como pretende se vingar dos culpados por seu medo e raiva.
Finalmente o espírito do tempo me liberta do transe e eu posso voltar para casa. Mas não sou exatamente o mesmo. Afinal, encarei o monstro e quase virei pedra, zumbi, criancinha encantada pelo som da flauta, lemingue rumo ao abismo. Tomo água com açúcar para me acalmar e me preparo para dar um ponto final neste texto. Não sem antes vestir a fantasia de profeta, empostar a voz e bradar a um deserto rochoso: resistam ao espírito do tempo.
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