As mensagens do espetacular cortejo de múmias no Egito

Viaturas transportando 22 múmias de reis do antigo Egito deixam o Museu Egípcio na Praça Tahrir, no Cairo, durante cortejo a caminho do novo Museu Nacional da Civilização Egípcia, 3 de abril| Foto: Khaled DESOUKI / AFP

No último sábado, um desfile das múmias de 22 reis e rainhas do Egito realizado no Cairo foi transmitido para todo o mundo. O evento foi realizado aproveitando o fato de que as múmias seriam transferidas do Museu do Cairo ao novo Museu Nacional da Civilização Egípcia, para sua inauguração. As múmias, entretanto, ainda não estão expostas. O que foi tratado como mera curiosidade, ou até excentricidade, entretanto, revela muitas camadas da relação entre arqueologia, História e poder contemporâneo.

O desfile foi organizado pelo Ministério do Turismo e de Antiguidades do Egito e, com o perdão do clichê, foi grandioso. Cantores e cantoras, como Mohamed Mounir, participaram, assim como uma orquestra, que iniciou a procissão. Telões transmitiam vídeos de celebridades egípcias em sítios arqueológicos. Textos e poemas eram recitados e centenas de performistas, com figurinos elaborados, acompanharam o cortejo, assim como a banda do exército egípcio. No destino final, foram recebidos por salvas de canhões.

Cada tesouro arqueológico era transportado em uma viatura militar adaptada e estilizada para o espetáculo. Ainda assim, preparadas tecnicamente, com amortecedores especiais, e as múmias estavam envoltas em cápsulas com nitrogênio. A via do cortejo foi recapeada especialmente para a cerimônia, e o trajeto de apenas sete quilômetros foi percorrido em quarenta minutos, sem altas velocidades. Também no destino final, estava o presidente egípcio, o ex-general Abdel Fattah al-Sisi, e uma comitiva diplomática.

Continuidade do passado

Acompanhando todo esse espetáculo, estavam mensagens políticas, tanto para o mundo quanto para os próprios egípcios. Seria ingênuo achar que os letreiros das viaturas e as artes estavam em inglês apenas para “facilitar” a comunicação. É para que o mundo todo visse a “cena majestosa (que) é uma nova evidência da grandeza do povo egípcio, o guardião desta civilização única que remonta às profundezas da história”. Palavras do presidente egípcio, ao final do cortejo.

Complementou com um convite, não apenas um convite literal ao museu, mas “convido todos os egípcios e o mundo inteiro a acompanhar este evento único, inspirado no espírito dos grandes antepassados, que preservaram a nação e criaram uma civilização da qual toda a humanidade se orgulha. Vamos continuar nosso caminho, o caminho da construção e da humanidade”. As palavras parecem óbvias ou clichês, mas merecem uma atenção maior, focada na mensagem.

O atual Estado egípcio foi fundado após a revolução de 1952, pouco mais de setenta anos atrás. Mesmo contexto histórico pós-Segunda Guerra Mundial em que os impérios europeus começam a ruir e a descolonização dá fôlego à Ásia e à África, com o estabelecimento de dezenas de Estados nacionais. A república egípcia foi antecedida pelo reino que era um protetorado britânico, independente nominalmente. Antes disso, foi província otomana ou do califado, sendo necessária uma grande retrospectiva para um Egito independente.

Ao explicitar uma continuidade entre as dinastias de quase quatro mil anos atrás, o governo egípcio busca lembrar ao mundo de que o país não se trata de “mais um” Estado, ou “apenas um país do Terceiro Mundo”, ou algo do tipo. Reforça a ideia de que ali, na bacia do Nilo, foi um dos primeiros “berços civilizatórios”, com glórias e avanços que possuem no atual Estado egípcio não apenas um guardião, mas também um sucessor, um herdeiro, com um destino supostamente tão brilhante quanto.

É importante destacar que isso é uma realidade para a maioria dos egípcios, que enxergam esses tesouros arqueológicos não como curiosidades ou passatempos, mas como seus reis e rainhas de outrem, e um patrimônio nacional que deve ser preservado e valorizado. Outro debate importante está na expressão do Egito como “o guardião desta civilização única”. A ligação entre arqueologia e identidade nacional não é nova aqui nesse espaço, como na coluna “Um problema diplomático com duzentos anos de idade“, sobre Grécia e Reino Unido.

Projeto de Estado

Enquanto países disputam para reaver seu patrimônio histórico e consideram até humilhante que museus em antigas sedes coloniais desfrutem de seu legado arqueológico, o governo egípcio explicita que ele é o legítimo custodiante desse patrimônio. Caso o leitor deseje, nem precisa-se ir muito longe para uma referência sobre esse debate da posse de patrimônios arqueológicos, basta assistir ao início do filme Pantera Negra. No caso egípcio, a ligação entre patrimônio arqueológico e identidade nacional é fortíssima.

Parte dessa fortaleza vem justamente do fato desse patrimônio estar, em sua maior parte, no próprio país, não em museus distantes, como infelizmente ocorre com parte do patrimônio arqueológico brasileiro. Outra questão importante conectada com essa identidade milenar egípcia é o debate político interno do país. Em breves linhas, a revolução de 1952 consagrou a ascensão de uma visão de Egito como uma república, secular, nacionalista e desenvolvimentista, pilar do pan-arabismo.

Como nêmesis, está a Irmandade Muçulmana, fundada no próprio Egito em 1928, um movimento sunita pan-islamista. Naquele contexto, desejavam a expulsão dos britânicos e o estabelecimento de um Egito guiado unicamente pelo Islã e pela jurisprudência da sharia. Posteriormente, se tornam os proponentes de um Estado religioso egípcio, em contraste ao secularismo dos republicanos. Com a disputa, uma das principais doutrinas militares egípcias é a de serem guardiões do secularismo, contra a Irmandade Muçulmana.

A Irmandade Muçulmana não é nenhum movimento das profundezas da sociedade, mas um dos mais influentes atores políticos egípcios. Foi central na derrubada de Hosni Mubarak, militar que governou o país por trinta anos, e era da Irmandade o único presidente democraticamente eleito no Egito, Mohamed Morsi, derrubado em 2013 pelos militares após acusações de tentar “islamizar” o aparato estatal. Militares então liderados por al-Sisi, o atual mandatário, em mais um capítulo dessa disputa.

Para setores mais radicais da Irmandade Muçulmana, dar grande papel ao patrimônio histórico egípcio é uma forma de idolatria, algo condenável. Também alegam que a exposição de múmias é profanar os mortos. Foi num aceno aos islamistas que, em 1980, o então presidente Anwar Sadat, também ex-militar, cogitou um novo sepultamento das múmias. Ele foi assassinado no ano seguinte, também por islamistas, mas de outro grupo, por ter assinado a paz com Israel.

Para o governo egípcio, então, reforçar o vínculo entre o atual Estado e seu passado da antiguidade é também uma maneira de firmar posição contra a Irmandade Muçulmana e construir uma identidade nacional que distancie dos ideais do grupo. É frisar a ideia de um Egito multicultural, com cristãos coptas, com egípcios, árabes, núbios e demais grupos populacionais. Claro que isso é algo que, infelizmente, muitas vezes fica restrito ao ideal, com a realidade mais dura e mais violenta.

Potência histórica e contemporânea

Outro símbolo desse confronto de ideias entre seculares e a Irmandade Muçulmana foi a instalação, em fevereiro de 2020, do obelisco de Ramsés II na praça em frente ao Museu do Cairo. O que parece ser apenas uma intervenção urbanística e trazer a arqueologia para o coração da cidade é também um recado político, já que se trata da Praça Tahrir, onde começaram os protestos contra Mubarak, liderados pela Irmandade. E a simbologia do desfile continua, agora com as 22 carruagens de guerra egípcias.

Podem soar uma mera afetação, representação cênica do Egito antigo, mas a manufatura das carruagens, ou bigas, no caso, foi amplamente divulgada. Especialmente, dois aspectos, o de que foram construídas como réplicas o mais exatas possíveis das originais encontradas na tumba de Tutancâmon, e que elas foram fabricadas pelo Ministério da Defesa e da Produção Militar. Qual o motivo de uma biga ser construída pelo órgão que coordena a produção bélica estatal?

As bigas são um símbolo de quando o Egito era uma das principais potências militares do mundo, com as famosas representações e relatos da batalha de Kadesh, com o exército egípcio liderado por Ramsés II. Cuja múmia estava no cortejo, inclusive. Novamente, o discurso é de conexão entre o passado glorioso e o Estado egípcio atual, entre a força bélica dos faraós e a indústria armamentista contemporânea. Em que, diga-se, o Egito é uma força ascendente, com viaturas próprias e produção local de blindados estrangeiros.

Finalmente, existe o aspecto literal do convite de al-Sisi, com o novo museu sendo parte de um projeto mais amplo de resgatar o turismo internacional ao Egito, enfraquecido desde 2011 e, obviamente, prejudicado pela pandemia. Uma indústria vital para a economia do país, que assegura a entrada de moeda forte. Em 2010, o turismo correspondia a 11% de toda a economia egípcia. Um baque significativo para uma economia já em problemas, como abordado aqui na última semana.

É mais do que compreensível que, para a maioria das pessoas, múmias e o Egito antigo sejam uma mera curiosidade. Não que falte bom conteúdo em português sobre o assunto, como o canal Arqueologia pelo Mundo, da brasileira Márcia Jamille, mas não é algo presente no nosso cotidiano, visto mais vezes sob o olhar de Hollywood. Para os egípcios, entretanto, se trata do lugar deles no mundo, da própria visão como nação e como potência. E eles querem que o mundo inteiro veja isso.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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