A Câmara dos Deputados pode ter um novo campo de batalha entre governistas e oposição dentro de algumas semanas. Em meados da segunda quinzena de abril deverá ser instalada na casa uma comissão especial que discutirá um projeto de lei que cria novos mecanismos de combate ao terrorismo no Brasil. A proposição é de autoria do líder do PSL na Câmara, Vitor Hugo (GO), e foi inspirada em um texto elaborado pelo presidente Jair Bolsonaro em seus tempos de parlamentar. Representantes da esquerda veem na proposta uma tentativa de perseguição a movimentos sociais.
A proposta tem como foco o estabelecimento de ações contraterroristas, medidas que poderão ser tomadas por forças de Estado contra grupos ou indivíduos que promovam o que seja considerado terrorismo em território nacional. Entre outras determinações, o projeto estabelece instituições de âmbito federal para o combate ao terrorismo, com diretrizes para formação da Política Nacional Contraterrorista (PNC), da Autoridade Nacional Contraterrorista (ANC) e do Sistema Nacional Contraterrorista (SNC).
A norma também define a obrigatoriedade da criação de um “cadastro nacional de infraestruturas críticas, serviços públicos essenciais e recursos-chave potencialmente vulneráveis em todo território brasileiro”, que passarão por supervisão adicional das forças de segurança. O entendimento é que essas infraestruturas e serviços são alvos preferenciais do terrorismo.
Outro trecho do texto possibilita que agentes do Estado se infiltrem em organizações consideradas terroristas e abre hipóteses legais para o uso da força contra militantes terroristas.
O projeto de Vitor Hugo não define o que é ato terrorista e nem estabelece punições aos responsáveis pelos crimes de terrorismo. Estas disposições estão em legislações anteriores — entre elas, duas aprovadas na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Uma foi sancionada em 2013, à época dos protestos que abalaram o país, e a outra foi em 2016, quando o Brasil se preparava para receber os Jogos Olímpicos.
O deputado ressalta que trabalhou, como consultor legislativo, na elaboração do projeto de lei que Bolsonaro apresentou sobre o tema, em 2016. Na ocasião, a proposta do então deputado foi submetida à apreciação de quatro comissões da Câmara e aprovada em uma delas, a de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Acabou nem chegando a ser votada nas demais e foi arquivada. Teve sua nova versão apresentada por Vitor Hugo em 2019.
A iniciativa passou por alguma tramitação no ano passado, mas permaneceu paralisada por conta da pandemia de coronavírus. Na justificativa para o projeto atual, Vitor Hugo cita ameaças de atentados terroristas que teriam ocorrido à época da posse de Bolsonaro como presidente, em janeiro de 2019.
Criação de comissão despertou controvérsias
A retomada da tramitação do projeto foi possibilitada pela decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de criar a comissão especial sobre a iniciativa. Lira formalizou a medida no último dia 17. A comissão, porém, não terá seus trabalhos iniciados nas próximas semanas: Lira e os líderes dos partidos que compõem a Câmara combinaram que os esforços do fim de março e dos dias iniciais de abril serão destinados para projetos e votações ligadas ao combate à Covid-19.
Mesmo com a comissão temporariamente na geladeira, o assunto motivou contestações por parte da oposição e recebeu críticas também de um líder do centro. A deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) entregou, no dia 23, uma carta com assinaturas de membros de 100 movimentos sociais, que pediam a Lira a não instalação da comissão.
“É muito óbvio que esta lei tem o objetivo de criminalizar os adversários políticos do presidente da República. Bolsonaro é um defensor aberto da ditadura militar, já deu diversas declarações autoritárias e sobre a necessidade de um estado de sítio, então é uma maneira evidente de tentar fechar o regime político por dentro”, declarou Fernanda.
A carta foi recebida pelo primeiro vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), que endossou as críticas da integrante do Psol: “não há motivo nenhum para [o projeto] ser tratado agora, colabora apenas para aumentar o autoritarismo de certos setores. O direito de manifestação deve ser garantido e já há os mecanismos legais para punir excessos”.
Além do teor do texto, os procedimentos para a criação da comissão são também contestados. Segundo reportagem do UOL, Vitor Hugo teria promovido uma manobra regimental para fazer com que o projeto seja apreciado nesta comissão especial — dispensando a análise de outras comissões e, assim, podendo ter sua aprovação adiantada. A manobra consistiria em direcionar o projeto à análise da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara. A proposta já estava sob apreciação de outras três comissões. E o Regimento da Câmara diz que uma comissão especial pode ser criada para análise de um projeto que seja tema de mais de três colegiados diferentes.
À Gazeta do Povo, Vitor Hugo negou que o envio à Comissão de Ciência e Tecnologia tenha sido uma manobra. Segundo ele, o projeto tem questões relacionadas à temática da ciência, como equipamentos de suporte técnico e elementos ligados às telecomunicações. “Não foi nenhum tipo de manobra regimental a inclusão da comissão permanente. É algo justificável, tanto que o presidente da Câmara deferiu. Ao mesmo tempo em que a realização, a instituição de uma comissão especial sobre o tema é muito importante, porque vai permitir uma discussão mais ampla”, afirmou.
O líder do PSL disse ter cautela em identificar a aprovação da proposta ainda em 2021, mas avalia ser possível avançar no que compete à Câmara. “Gostaríamos muito de ver em 2021 aprovado, mas vamos avançando com cautela, calma e responsabilidade”, acrescentou.
A expectativa do parlamentar é de instalação da comissão após o período de “esforço concentrado” para a votação de temas ligados à Covid-19. Apenas aí que deverão ser definidos presidente e relator do colegiado, postos que são habitualmente disputados pelos partidos.
Proposta é vaga e fora das prioridades
O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que estará na comissão para debate do projeto, declarou que considera o texto inicial da proposta “muito genérico”. “Tive a oportunidade de falar isso ao autor [Vitor Hugo]. É um texto com conceitos muito vagos, muito abertos, que acaba abrindo muito espaço para regulamentação”, disse. Essa regulamentação, segundo o parlamentar, seria definida em um momento posterior pelo Poder Executivo. E isso, segundo ele, poderia abrir caminho para decisões consideradas arbitrárias. “O temor é que o conceito de terrorismo seja manipulado para atacar movimentos sociais ou para estruturar um Estado policial”, disse.
Silva apontou também que “não vê sentido” em discutir a proposta no contexto atual do Brasil. Para ele, o fato de o país conviver com um índice elevado de homicídios e, por outro lado, não ter um histórico de terrorismo deveria motivar outro direcionamento de prioridades. “Nós temos que falar de combate ao tráfico de drogas, de tráfico de armas”, apontou. Silva adiantou que uma das estratégias da oposição na comissão será a de justamente expor que a iniciativa está fora do foco da segurança pública: “nós temos uma taxa de homicídios escandalosa, fronteiras ‘furadas’, problemas sérios de segurança nas grandes cidades. E vamos debater terrorismo?”.
Também futuro integrante da comissão, o deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) disse esperar que o trabalho no órgão “não vai ser fácil”. “Realmente, nós teremos muito trabalho. A Lei Antierrorismo que temos hoje foi feita para ‘cumprir tabela’, na época da Olimpíada. Espero que a comissão consiga ser bem plural. Acho que os debates serão bem polarizados”, acrescentou.
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