As contradições no plano de Joe Biden para o Afeganistão

In this picture taken on March 3, 2021 a policeman patrols at the site of the Buddhas of Bamiyan statues, which were destroyed by the Taliban in 2001, in Bamiyan province. - Afghanistan's giant Buddhas stood watch over the picturesque Bamiyan valley for centuries, surviving Mongol invasions and the harsh environment until the Taliban arrived with an apocalyptic worldview that did not care about one of the great wonders of antiquity. (Photo by WAKIL KOHSAR / AFP) / TO GO WITH FOCUS 'AFGHANISTAN-RELIGION-HISTORY-TALIBAN-BUDDHA-STATUES' by USMAN SHARIFI

Um ambicioso plano do governo Joe Biden para o Afeganistão “vazou” na mídia afegã e rapidamente repercutiu pelo mundo. As aspas se devem ao fato de que não é possível descartar que os documentos tenham sido intencionalmente tornados públicos, para testar reações e respostas mundo afora. O plano é ambicioso e, principalmente, aprende com erros e acertos cometidos anteriormente. Outra característica do plano é que, assim como planos e negociações anteriores, ele provavelmente está fadado ao fracasso.

Foram dois documentos publicados. Uma carta do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, ao presidente afegão, Ashraf Ghani. O diplomata dos EUA informa que o novo governo está “buscando imediatamente um esforço diplomático de alto nível” para “acelerar as negociações de paz”. O outro documento é o “mapa do caminho” para esse fim, um “esboço de discussão de um acordo de paz” de oito páginas.

Etapas para a paz

As etapas desse acordo são, primeiro, um cessar-fogo de noventa dias como gesto de boa vontade e diminuição de tensões, seguido de uma comissão que supervisionaria a continuidade do cessar-fogo. Enquanto isso, ocorreriam duas negociações paralelas. Uma, na Turquia, entre o governo afegão e o Talibã, para acordar os passos políticos seguintes e a realização de uma constituinte, via uma loya jirga, uma grande assembleia tradicional dos pashtun, a maior etnia do Afeganistão.

A outra negociação seria realizada sob os auspícios das Nações Unidas, entre EUA, Rússia, China, Irã, Paquistão e Índia, os principais vizinhos e interessados nos rumos afegãos. Depois dessas duas negociações chegarem em pontos comuns, seria a vez de elaborar a nova constituição, enquanto um governo de transição administra o país. Como maneira de acelerar as conversas, o documento do governo Biden propõe alguns pilares que servirão de ponto de partida para a nova constituição.

O Islã seria a religião oficial do Afeganistão, com um Alto Conselho de Jurisprudência Islâmica para “orientação e aconselhamento islâmico”. Ao mesmo tempo, a futura constituição garantiria a proteção dos direitos das mulheres e dos direitos das crianças em aspectos políticos, sociais, econômicos e educacionais. A carta também estabeleceria o Afeganistão como um lar sem discriminação entre grupos étnicos, tribos e grupos religiosos. O país contaria com eleições livres em um Estado unitário e soberano, sem admitir governanças paralelas ou milícias armadas.

Após a constituição, seriam convocadas eleições, para escolher o novo governo, que teria legitimidade de todos os atores políticos do país, incluindo o Talibã. Para viabilizar esse ambicioso plano, o representante especial dos EUA, Zalmay Khalilzad, já está realizando reuniões e diálogos, tanto com os atores principais quanto com lideranças que se sentiram negligenciadas nos últimos anos, como chefes locais da fronteira norte com o Tadjiquistão. Dado o avançar das conversas que é razoável supor que os documentos não “vazaram”.

Os documentos certamente possuem pontos positivos. Aponta na direção de um Estado afegão moderno enquanto acena ao Talibã com a jurisprudência islâmica. Para sua implementação, estabelece a necessidade tanto de conversas intra-afegãs, sediadas em outro país muçulmano, quanto o respaldo da comunidade internacional, via a ONU e as potências vizinhas. Um aprendizado dos imensos, dolorosos e violentíssimos erros cometidos com a invasão do Iraque em 2003, quando a “reconstrução” do país foi monopolizada pelas autoridades dos EUA que pouco sabiam onde estavam pisando.

Perguntas e interesses

Ainda assim, restam algumas perguntas, com uma delas como principal. E a retirada dos EUA e das tropas da OTAN? Ano passado, o governo Trump acertou uma retirada total até Primeiro de maio de 2021. O governo Biden adota uma política opaca sobre isso, sem confirmar nem negar a retirada no prazo e, certamente, vai negociar que a presença militar se mantenha ao menos até a nova constituição. Principalmente, por saberem que o governo afegão está extremamente vulnerável a uma ofensiva talibã.

Se o governo de Washington negociar com o Talibã a permanência das tropas além do prazo e o grupo aceitar, ótimo, embora não fariam isso sem cobrar um preço dos EUA por não cumprirem o acordado. Se negociar e o Talibã não aceitar, o que o governo Biden fará? Vai ficar, violando o prazo e fechando as portas das negociações? Vai se retirar, correndo o risco de deixar o governo de Cabul vulnerável? Ou, ainda, Washington pode não negociar e se manter no país, tornando-se alvo de descrédito pelo Talibã e outros atores.

De seis desdobramentos possíveis, apenas um atende os interesses do governo Biden, e ainda envolve um preço. E, mesmo que isso seja resolvido, o leitor habitual dessa coluna já sabe que o plano é inviável por outros motivos. Não é apenas a primeira ou a segunda vez que o Afeganistão é abordado aqui. E esse país de belas paisagens, rico solo, encantadora História e que ocupa uma posição geográfica chave na Ásia Central é o foco de diversos, e contraditórios, interesses.

O Paquistão mantém suas boas relações com o Talibã e seu governo prefere um Afeganistão em frangalhos do que próximo da Índia, que não deseja ver os investimentos chineses da Nova Rota da Seda tomarem a economia afegã, algo que também desagrada os interesses dos EUA, cuja presença militar, por sua vez, não é bem quista por praticamente nenhum ator regional, especialmente o Irã, que defende os interesses dos xiitas afegãos, algo que desagrada o Paquistão, e assim por diante. É como Carlos Drummond de Andrade, mas com atores internacionais.

Principalmente, os interesses do Talibã não são congruentes com os do governo afegão ou os dos EUA. Repetindo algo já escrito aqui, a solução para o Afeganistão passa pelo desmantelamento do Talibã, não por seu reconhecimento, ou de suas políticas violentas. Uma negociação precisava passar pela deposição das armas, e agora é tarde para isso, com o grupo ocupando posições militares estratégicas. É possível, e até desejável, que essa coluna também envelheça muito mal e se mostre totalmente errada. Infelizmente, nada nos últimos vinte e cinco anos indica isso.

Confira a matéria na Gazeta do Povo

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