Um estudante de 25 anos chamado Victor Neves estava em pé numa fila, aguardando a sua vez de ser chamado. Suas mãos suavam e calafrios percorriam sua espinha. Ele já tinha sido reprovado em outra avaliação dessas, mas dessa vez tinha esperança de que fosse diferente. Estava dando sua cara a tapa para que entendessem sua mensagem, para que o reconhecessem da forma com que ele se via.
Ao longo de toda a vida, Neves se reconheceu e foi reconhecido como pardo. Fruto da união de uma mulher branca e de um homem negro, cresceu em uma família de pardos e indígenas ribeirinhos às margens do rio Amazonas.
Para ele, a chance de mudar de vida era cursar uma universidade, algo que apenas uma pessoa em sua família já havia conseguido. Neves entrou na universidade em 2013 e se formou em Letras, graças a uma bolsa oferecida pela instituição. Em seguida, ele foi fazer um curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), desta vez por meio do sistema de cotas, declarando-se pardo. Ele cursou um ano inteiro sem nenhuma novidade. Mas tudo mudou quando, em busca de ampliar sua linha de pesquisa, decidiu se mudar para o sul do país, a fim de estudar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Victor Neves não conseguiu ser transferido e dar prosseguimento ao curso; teve que recomeçar do zero. Foi quando descobriu que teria que passar por uma banca de avaliação, para provar que era realmente pardo. Em uma primeira banca, foi recusado. Disseram que ele não era o que dizia ser. Agora Victor tentava uma segunda vez e, conforme a fila avançava, os que ali esperavam analisavam uns aos outros, já antecipando o que aconteceria.
Ao entrar na sala, Neves pôde reparar que todos observavam atentamente a sua cor, o seu cabelo e os traços do seu rosto. Fotografias foram tiradas e ele teve que preencher um formulário explicando por que se considerava pardo. Um processo que leva poucos minutos pareceu uma eternidade e, no fim, a decepção: foi novamente indeferido. Nos meses que se seguiram, ele teve que sentir o amargor de ser rejeitado pelo que era.
“Depois do processo, quando fui indeferido, me senti muito mal e fiquei muito triste. Mexeu muito com o meu psicológico e até precisei fazer terapia. Fiquei mal, não só por ter aberto mão de um sonho, mas porque fui julgado de uma forma como a banca achava que eu era”, disse. “Eles simplesmente não aceitaram minha declaração e me senti como se estivesse sendo visto como um fraudador, alguém de má índole. De certa forma foi um tipo de racismo que sofri. Onde se encaixa o pardo? O que é ser pardo no Brasil?”, pergunta.
A história de Victor Neves é apenas mais um entre vários relatos de pessoas que foram submetidas às Comissões de Heteroidentificação, também chamadas de “Tribunais Raciais”. São histórias dolorosas e traumatizantes. Esse processo está sendo estabelecido paulatinamente em universidades federais de todo o país e também em concursos públicos.
História e legislação
As cotas raciais foram estabelecidas por meio de um longo processo. Primeiro, foram criadas vagas especiais para deficientes. Em seguida, foram criadas cotas sociais e raciais.
Mas as cotas raciais, que já estavam sendo aplicadas em universidades pelo país, só foram regradas em 2012, por lei sancionada por Dilma Rousseff.
Segundo a Lei de Cotas, as pessoas aptas a entrarem numa universidade por meio desse expediente são os Pretos, os Pardos e os Indígenas (PPI). O critério para definir se alguém se encaixa nessas definições deve ser o mesmo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a autodeclaração.
Tão logo o sistema foi implantado, porém, surgiram denúncias de fraudes. Pessoas brancas estariam entrando nas universidades via cotas raciais, se declarando pardas. Para tentar solucionar esse problema, em 2016 o então Ministério do Planejamento e Gestão (MPOG) publicou uma orientação normativa estabelecendo que os critérios para se aferir a veracidade da autodeclaração deveriam ser apenas os aspectos fenótipos do candidato. Ou seja, sua aparência física.
A partir daí, “Tribunais Raciais” foram criados em todas as universidades federais e em algumas estaduais. Os critérios e forma de aplicação da Lei de Cotas varia de local para local.
“Pardo de Schrödinger”
Ainda há muita controvérsia quanto aos critérios que devem ser utilizados para determinar se uma pessoa é parda ou não. O conceito de que pardos são negros de pele clara foi difundido ao longo dos anos pelo movimento negro e ganhou caráter oficial no Estatuto da Igualdade Racial, de 2010. O estatuto colocava pardos e pretos como negros. A partir daí, criou-se ainda mais confusão na definição de quem são os pardos: Antes considerados negros pelo estatuto da Igualdade Racial, os pardos passaram a ser acusados de serem fraudadores das cotas.
Ativistas denunciam essa estratégia como uma forma de utilizar pardos como massa de manobra pelo movimento negro, a fim de incluí-los em suas narrativas e engrossar as fileiras de sua militância.
Segundo o escritor Leandro Narloch, esse artifício faz com que o pardo exista e não exista ao mesmo tempo. Importando o conceito “Pardo de Schrödinger” do youtuber Clarion de Laffalot, Narloch explica que, segundo o IBGE, a população brasileira é composta por 46% de pardos, 44% de brancos e apenas 8% de negros.
“Quando se mede a população negra nas universidades, os pardos são deixados de lado e quando se mede o número de negros nas prisões os pardos são incluídos. Então os pardos seriam jogados de um lado para o outro dependendo da conveniência à narrativa do movimento.”
É o caso da estudante de direito Stephanie Araujo, moradora de São Paulo que tentou fazer parte do movimento negro, mas foi excluída e ofendida. “Quando eu era criança eu sempre me vi como morena. Comecei a estudar a história do Brasil e, nas aulas de sociologia, comecei a me questionar o meu lugar na sociedade. Comecei a me envolver com militância negra e, influenciada, comecei a me enxergar como negra de pele clara. Mas eu comecei a me ver como massa de manobra. Porque você é jogada de escanteio quando você reclama de racismo. É a questão do local de fala. Você se sente barrada por conta da cor mais clara. Eles deixam claro o tempo todo que você não faz parte de fato”.
Dificuldade de definição
São três as formas de se definir o pardo: a ancestralidade, a genética e os fenótipos. São essas as definições usadas pelos “tribunais raciais’.
O critério da ancestralidade é defendido pelo médico amazonense Leão Alves, integrante e ex-presidente do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro. Leão explica que são pardas quaisquer pessoas fruto de miscigenação, seja de índio, branco, preto ou qualquer outro grupo. Além disso, Leão acrescenta que o pardo não tem padrão de aparência.
“O termo ‘pardo’ apareceu no primeiro censo de 1872 e depois foi substituído por ‘mestiço’ no censo de 1890. No anuário estatístico de 2016, ‘pardo’ é citado como ‘mulato’, ‘mameluco’, ‘cafuzo’ ou ‘mestiço’. Ou seja, pardo se refere a miscigenado, independentemente de sua aparência”, diz Leão. “Os primeiros pardos brasileiros surgiram da mestiçagem entre portugueses e indígenas. E isso aconteceu antes de haver pretos no Brasil, antes de chegarem os primeiros navios negreiros”, complementa.
Eli Vieira, geneticista e divulgador científico, explica que as características físicas de uma pessoa são definidas através dos genes e de seus marcadores. Ao longo do tempo, uma população vai se adaptando a determinada região e clima, e isso se reflete na aparência física. Mesmo assim, uma pessoa com DNA predominante africano pode ter aparência de europeu.
“A cor de pele tem dois elementos objetivos: a quantidade de melanina e como os cerca de sessenta genes a controlam. E, correlacionados a esses genes, marcadores que contam uma história da origem deste fenótipo”, explica. Ainda segundo Eli Vieira, o debate sobre a existência de raças ainda não tem um vencedor. Há argumentos plausíveis em ambos os lados, mas esse debate está contaminado pela disputa política.
“Há geneticistas e biólogos que defendem que não existem raças humanas e outros que defendem que há, sim, diferenças suficientes entre as populações humanas para se falar em raça. É um debate que está em andamento na biologia e na genética e que, infelizmente, está contaminado”, diz Eli Vieira.
O fenótipo se refere às características físicas de uma pessoa. É o critério menos acurado para se classificar alguém de acordo com a raça e é justamente o escolhido pelos “tribunais raciais”.
A banca examina o corpo dos candidatos em busca de características “negróides”, que são comuns em pessoas afrodescendentes em maior ou menor grau. O problema é que não existem apenas pardos que descendem de pretos. É o caso dos caboclos, que são fruto da mistura entre brancos e indígenas.
Em 2018, a UFRGS tentou oferecer as cotas com base na ancestralidade. Mas, por pressão do movimento negro, teve que voltar atrás.
Gestapo negra
Denúncias chegam às centenas nos órgãos competentes das universidades. A maioria é feita por integrantes do movimento negro que caçam supostos fraudadores do sistema de cotas e, em alguns casos, expõem os dados como o nome e foto dessas pessoas nas redes sociais. Como uma Gestapo moderna, esses militantes não se importam com o que possa acontecer aos acusados.
O perfil Fraudadores de Cota, por exemplo, fez muito sucesso nas redes sociais em 2020, contando até com o apoio de personalidades e influenciadores, como os blogueiros Kauê Vieira e Breno Laerte, que demonstram apoio às ações criminosas desses grupos.
As ações do grupo só pararam quando esbarraram na justiça. Foi o caso do estudante Brandow Sandor, da Universidade de Brasília (UnB), que teve o seu nome exposto como fraudador em redes sociais. Ele processou tanto os agressores quanto o Twitter. O juiz determinou a exclusão dos conteúdos e quebra do sigilo desses perfis, sob pena de multa diária de R$ 1 mil.
Outro caso foi o de Larissa Sá, indígena estudante de medicina na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Ela foi exposta nas redes sociais, acusada de não ser indígena por ter o cabelo descolorido. Vendo as acusações, Larissa disparou: “Acordei, tô rindo de vocês. Índio não pode pintar o cabelo?”.
Depois de críticas por falsas acusações, o perfil Fraudadores de Cota saiu do ar.
Constrangimento
Alunos e ingressantes nas universidades, submetidos a essas comissões, relatam constrangimento e traumas. A maioria relata medo de agressões ou violência por parte do movimento negro. Por isso, um deles pediu que seu nome não fosse revelado.
Um estudante da UFRJ, que chamaremos aqui de João, conta que, quando entrou na universidade, bastava a autodeclaração. Com a mudança nas políticas da faculdade, ele teve que passar pela comissão, o que levou o estudante a entrar em depressão. “Quando fui reprovado pelo “tribunal racial”, achava impossível que essa situação continuasse assim. Acreditava que a universidade revogaria a decisão em algum momento ou que o Ministério Público interviria para devolver as nossas vagas. No entanto, o tempo foi passando e a ficha caiu: a vaga tinha ficado para trás”, diz.
João conta que, mais tarde, entendeu a intenção da universidade em não permitir a entrada de alunos pardos via cotas. “Depois de conversar com outros estudantes e ler um pouco sobre as ideias dos defensores dos “tribunais raciais”, percebi que eles só querem alunos que se sintam ‘negros’. Se você se sente pardo sem se sentir negro, você está com uma ideia muito perigosa e alguém com essa ideia não pode entrar na universidade”, avalia.
Outro estudante da UFRJ, funcionário público Juan Martinez, participou dessas comissões, dessa vez para ingresso no serviço público. Ele fala do constrangimento de ser analisado por pessoas que não conhecia. “Quando eu fui lá no local [da avaliação], tiraram foto de mim, me colocaram como se eu fosse uma obra de arte a ser analisada. Fiquei na frente de umas cinco ou seis pessoas, que eram negros retintos em sua maioria. No final, não fui aprovado por essa banca”.
Um problema previsível
Segundo a antropóloga Yvonne Maggie, escritora do livro “Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo”, estabelecer na legislação brasileira distribuição de direitos por raça seria reverter todo o nosso sistema legal e apenas causaria mais divisão e conflito.
“A nação Brasileira foi uma das poucas nações escravistas que, ao término da escravidão, optou por legislação arracial. Isso não quer dizer que não haja racismo, mas não está na letra da lei e isso faz uma diferença enorme. Os EUA saíram da Guerra da Secessão e da abolição da escravatura com a produção de uma legislação mais violenta baseada na raça. A África do Sul, em 1948, estava criando o sistema do Apartheid”, explica Maggie.
A antropóloga teceu duras críticas à criação das cotas raciais ainda em 2001 e passou a ser perseguida por conta disso. “O que há de comum entre o racialista e o supremacista não é o racismo; é o ódio. E é o ódio racial que produz o genocídio”, diz.
Outro antropólogo a criticar o sistema de cotas é Antônio Risério. “Hoje é difícil ser mestiço nesse plano político social e educacional porque não existe nenhuma política social para isso. Tem política social para preto. Então é melhor ser preto”, diz.
Como funcionam os “tribunais raciais”
A análise das bancas de heteroidentificação é qualitativa, não quantitativa. Ou seja, os critérios são subjetivos e não mensuráveis. Não há uma paleta de cores para estabelecer o limite aceitável. Por isso existem tantos casos de inconsistência na avaliação. Os dois casos de gêmeos univitelinos em que um foi aprovado e o outro não demonstram claramente a deficiência na avaliação no “olhômetro”.
Como não há uma regra central que determine como devem ser realizadas as comissões, cada instituição utiliza critérios próprios. A banca, na maioria dos casos, é composta por professores ou funcionários da instituição, mas podem incluir convidados externos, como membros do movimento negro.
Em transmissão feita pelas redes sociais, a coordenadora do comitê de combate às fraudes no sistema de cotas da UFRJ, Denise Góes, explicou que os critérios a serem utilizados nas bancas são exclusivamente fenotípicos e que eles são ensinados num curso de formação oferecido pela própria universidade.
“A gente se baseia na textura do cabelo, no nariz, na boca, na cor dos olhos e objetivamente no tom de pele. Isso não quer dizer que só entrem na universidade negros retintos. Não somos um ‘tribunal racial'”, defende-se. No entanto, Denise também afirma que a preferência, segundo ela, são os fenótipos negróides presentes nos pardos. Quanto mais próximo do negro, mais chances o pardo tem de ser aprovado.
Denise também fala sobre a questão estética e cultural dos candidatos. Ela afirma que uma mulher com cabelo alisado tem mais chance de ser reprovada do que uma que mantém o cabelo natural. “As mulheres que passaram por processos de química, de alisamentos, muitas das vezes esses candidatos são reprovados por conta dessa busca incessante pelo branqueamento”, diz.
Os pingos nos is
Para esclarecermos o que de fato acontece nas bancas, a Gazeta do Povo conversou com uma funcionária da UFRJ que já participou de algumas bancas de heteroidentificação. Com medo de represálias, ela também não quis se identificar. Aqui a chamaremos de Maria.
Maria, que é negra e ingressou na universidade via cotas raciais, acredita que as comissões só existem porque há pessoas que fraudam as cotas e que os erros dos “tribunais raciais” são raros.
Ela diz ainda que a maioria dos pardos são aprovados e que, em caso de dúvida sobre a raça da pessoa, utiliza-se o princípio in dubio pro reo, conceito jurídico em que o réu é inocentado em caso de dúvida. Mas ela confessa que, para ela, seria melhor que os pardos fossem excluídos do processo, porque eles sofrem menos que as pessoas de pele escura.
“Na verdade, seria muito bom se as cotas fossem só pra pessoas negras, retintas. Seria muito bom. Os pardos têm que se ligar que eles sofrem muito menos. Ele vai sofrer menos racismo na sociedade. Eu tenho três contas em banco e não tenho nenhum gerente negro, no posto aqui não tem nenhum médico negro. Uma pessoa parda não passa um monte de coisas”.
Maria vai além e diz que quem é indeferido pelas comissões deveria ser grato por finalmente poder viver como branco. “Se a pessoa é avaliada como branca, que bom para ela. Você não está condenando, você está libertando a pessoa. Está dizendo: ‘você é branca, seja feliz’”.
Quanto ao constrangimento e humilhação relatados por pessoas que passaram por essas bancas, Maria diz que lamenta, mas que a frustração é algo natural da vida. Por fim, sobre o conflito gerado pelas cotas raciais e se esse problema não seria melhor resolvido com a ampliação das cotas sociais, que tem critérios mais objetivos e que atenderia tanto a brancos quanto negros de baixa renda, Maria conclui que, por mais que seja dolorosa, a cota racial é necessária. “Acho que tem que existir cota racial mesmo, porque acho que a questão é racial. Não adianta você mascarar, dizer que é social, porque ela não é. Você resolve de uma maneira porque você evita o conflito, mas você não resolve o problema. Você tem que confrontar mesmo as pessoas, botar os pingos nos is corretamente”.
“Tribunais de exceção”
Segundo o advogado mineiro Caio Tirapani, de 32 anos, que representa mais de 50 alunos que passaram por essas bancas e que questionaram o resultado, as universidades estão cedendo espaço a questões meramente políticas e ideológicas e deixando a lei de fora. Caio aponta também que aplicar novos entendimentos legais a casos antigos é ilegal e que a própria legislação que é utilizada como base para se justificar essas comissões garante isso em seu texto.
“Em 2018 a administração pública federal divulgou uma orientação normativa que previa a possibilidade da criação das comissões de heteroidentificação e utilização do critério de fenótipo nos concursos públicos federais. A partir daí passou-se a utilizar o critério de fenótipo em todos os concursos, inclusive em alguns vestibulares. E o que é interessante é que essa própria orientação fala que os termos estabelecidos para essa norma vão ser válidos apenas para os concursos cujos editais não foram divulgados. Ou seja, só dali pra frente”, afirma Tirapani.
“Quase todas as universidades que cancelam matrícula de alunos utilizam essa orientação normativa como base mesmo existindo previsão na própria norma de que ela não é aplicável aos casos antigos. É algo que nos deixa, de certa forma assustados, porque o direito fica em segundo plano e entram no lugar aspectos políticos e ideológicos.”
“As universidades estão fechando os olhos para o que a legislação federal estabelece sobre o tema, porque na lei federal ainda não há a previsão do critério de fenótipo. Isso vem em decorrência de normas infralegais. Ou seja, normas feitas pela própria administração pública e pelos editais. Só que as universidades simplesmente querem aplicar a casos antigos o entendimento de hoje. E isso em direito é algo totalmente ilegal.”
“São criados novos entendimentos novas normas novas leis. Um novo tribunal, porque a comissão também é criada depois. Isso tudo para julgar fatos anteriores. É um típico tribunal de exceção no qual tanto as leis, quanto os juízes são conhecidos depois que o fato acontece.”
Caio conta que há uma grande injustiça em comparar pessoas que realmente se julgam pardas com pessoas que não possuem nenhuma ancestralidade parda ou preta.
“Tratam todo mundo que não tem os traços de fenótipo como se fosse um fraudador das cotas. O que certamente não é verdade. Há uma grande confusão entre uma autodeclaração com a qual você não concorda. E uma autodeclaração que é de fato falsa. Não se pode dar o mesmo tratamento a esses dois tipos de aluno. Aqueles alunos que efetivamente, e são a minoria, se autodeclararam mesmo sem ter nenhum parente que se enquadre como pardo ou como preto, daqueles alunos que se autodeclararam confiantes de que de fato são pardos pelo fato de terem os traços ou pelo fato serem filhos, netos, bisnetos de pessoas que se enquadram como pardos ou como pretos.”
Caio conta o drama de uma aluna, que já concluiu a graduação, e teria realizada a sua colação de grau nesta quarta-feira (10), mas teve a sua matrícula cancelada um dia antes.
“Ela teve a matrícula cancelada depois de um procedimento que ficou praticamente um ano parado. Totalmente ilegal, totalmente arbitrário. A gente fica muito espantado com tudo o que tem visto por parte das universidades”, diz. “Eu entrei com um recurso administrativo há cerca de dez dias e hoje saiu a decisão final da pró reitoria. Ela é um modelo totalmente preparado com alguns espaços em branco só pra preencher. É um modelo que serve pra qualquer aluno e que não individualiza as demandas levantadas na defesa de cada um. Não adianta você recorrer, você apresentar argumentos pois no final será uma decisão totalmente genérica.“
O advogado conta também que esse processo todo causou muita dor aos alunos que entraram em contato com ele, e que muitos passaram a fazer uso de remédios controlados.
“No ano passado, entre junho e julho, houve uma exposição intensa nas redes sociais. Até alunos que já tinham conseguido o arquivamento voltaram a ser alvo dessas acusações de fraude. É um processo muito doloroso”, afirma. “Infelizmente percebo que quase metade dos alunos que me procuram estão passando por problemas psicológicos. Vários deles com acompanhamento médico, tomando remédio tarja preta de tanto sofrimento que lhe é causado. Esses alunos evitam o máximo todo tipo de exposição, porque eles sofrem na pele a questão do preconceito.”
Resposta da UFRGS
Segundo Edilson Nabarro, Coordenador de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da UFRGS, o programa de ações afirmativas da universidade segue a base legal da Lei de Cotas e do parecer do STF a favor da constitucionalidade das comissões de heteroidentificação.
“O procedimento das bancas de heteroidentificação tem base legal na lei de cotas de 2012. Seja no nosso programa ou na lei de cotas, não previa-se a comissão de heteroidentificação. Só se estabelecia o percentual para reserva de vagas. A nossa comissão permanente vem em 2018 para ser um instrumento legal, e obrigatório até, do poder público de zelar pelo não desvio de finalidade das suas políticas. A partir de 2019, todos os alunos matriculados como PPI eram alvo da heteroidentificação que foi aprovada pelo Conselho de Curadores da UFRGS (Concur), e que é pré-requisito para matrícula.
A autodeclaração não tem valor absoluto e isso foi consagrado pelo supremo que julgou como constitucional essa heteroidentificação. E no voto do Lewandowski, o relator disse: ‘nós não estamos falando em igualdade formal, e sim de igualdade de oportunidades’. Então, por unanimidade do Supremo foi julgada como constitucional essa heteroidentificação.”
Nabarro também explica que a comissão é formada por equipe plural e que o critério principal para escolher os seus integrantes é a adesão à política.
“[A comissão] tem docentes, técnicos, brancos, pardos e negros e alunos matriculados na UFRGS. E também pessoas externas ao movimento negro, que não participam da comissão, mas acompanham o processo para ver se não há nenhum desvio. O critério [para escolher os membros da comissão] é primeiro a adesão à política. Porque uma comissão de heteroidentificação, que zela pelo não desvio de finalidade, tem que ter como pré-requisito mínimo a adesão a essa política de inclusão.”
De acordo com Nabarro, o maior motivo para que pessoas possam querer fraudar o sistema de cotas são as vantagens e facilidades que terão.
“Nós ficamos muito impactados e nosso papel é o princípio da justiça que deve ser alcançado sempre. Nós indeferimos na dúvida atroz, aquele cara que está no meio de campo, aquele que nós chamamos de negro de tinta fraca ou pouca tinta. Por que o critério mais objetivo e indiscutível é a cor da pele”, diz Navarro.
“Quando você vai concorrer na reserva de vagas, você tem uma vantagem competitiva e entra com uma nota de corte menor de quem concorre na universal. Alguns oportunistas veem essa vantagem competitiva de se inscrever como pardo para não passarem pela competitividade que tem nas vagas, principalmente em cursos específicos como medicina. E na verificação se vê que na verdade são brancos, alguns ostensivamente brancos, outros são brancos amorenados. Que tem uma vinculação de ancestralidade [negra] muito longínqua.”
Por fim, Nabarro explica o processo pelo qual a universidade está passando a partir de denúncias enviadas por integrantes do movimento negro.
“Em 2017, os coletivos negros da UFRGS fizeram uma denúncia de 304 alunos que supostamente entraram na reserva da vagas para alunos PPI. E eles foram alvo de aferição. Dos 304, e eu presidi a comissão, 280 foram indeferidos e a comissão os julgou inequivocadamente não negros. Eles foram ao Ministério Público, e o MP interviu na universidade ouvindo esses relatos de injustiça. E aí, até hoje não retomamos a conclusão da investigação porque não houve uma decisão da universidade de fazer novo procedimento de aferição desses alunos. Eles se encontram regularmente matriculados, alguns vão se formar.”
Resposta da UnB
De acordo com a UnB, “em seus processos seletivos para a graduação, a autodeclaração é usada como critério para atribuição de vagas reservadas a candidatos negros (o que inclui pretos e pardos, conforme definição do IBGE), seguindo a Lei de Cotas. Na pós-graduação e nas seleções para novos servidores, há a utilização das comissões de heteroidentificação antes da homologação final dos resultados.”
“Os critérios [das bancas de aferição] são os estabelecidos na legislação vigente (em especial, a Lei de Cotas) e nas normativas internas que regulam o assunto. No caso da pós-graduação, é utilizado o estabelecido na Resolução da Câmara de Pesquisa e Pós-Graduação nº 09/2020, segundo a qual a comissão de heteroidentificação ‘(…) utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo (a) candidato (a) à vaga reservada”, afirma a UnB.
Ainda segundo a Universidade de Brasília, “na pós-graduação, houve a abertura de um edital para a formação das comissões. Foram selecionadas 43 pessoas, entre servidores e discentes da UnB. Eles passaram por um curso de formação. A administração não dispõe do material do curso. No caso dos concursos, há uma lista de servidores efetivos que se candidatam a compor as bancas. Para cada seleção, é nomeada uma comissão específica, composta por cinco servidores. Não há um curso de formação, mas o debate entre os membros, seguindo o que está estabelecido na legislação vigente.”
Sobre a transmissão no YouTube de um dos julgamentos, a UnB declarou que não é uma live. “Trata-se de reunião do Conselho Universitário (Consuni), o colegiado máximo da UnB. De acordo com o Estatuto e o Regimento Geral da Universidade, as reuniões são públicas, abertas à comunidade e sempre são transmitidas pela UnBTV (desde antes da pandemia, inclusive). Os estudantes que entraram com recurso junto ao Conselho foram informados de que, a partir disso, os processos deixariam de ser sigilosos.”
A Universidade desconhece casos de candidatos “traumatizados pela experiência de serem julgados pela sua cor da pele”. De acordo com a UnB, “todos que participam de processos seletivos da instituição concordam com as regras estabelecidas nos editais. Caso alguém tenha alguma queixa, a mesma deve ser formalizada junto à Ouvidoria da UnB.”
Embora a UnB negue que faça comissões de aferição nos cursos de graduação, elas existem. Para o ingresso na universidade é, de fato, solicitada apenas a autodeclaração. Mas, caso seja feita alguma denúncia, os alunos são investigados por fraude. Uma das alunas, que preferiu não se identificar já que foi duramente exposta nas redes sociais, conta que nem ao menos pôde se apresentar e que a avaliação foi feita a partir de fotos retiradas de redes sociais. Contou também durante todo o processo não teve o direito à ampla defesa.
“A UnB faz as coisas de forma totalmente arbitrária e sem informar os envolvidos sobre o correr do processo. A decisão sobre a expulsão saiu nos jornais antes mesmo de eu ser notificada. Já fui exposta em redes sociais por alunos da UnB, no Twitter, publicando minha foto e número de matrícula. A UnB não fez nada quanto a essas questões”, afirma.
“Também não houve ampla defesa, não tive permissão para falar em momento algum, apenas foram feitas questões de sim/não. Para ter um julgamento tem que ter defesa, argumentação, contra argumentação. Só foram avaliar a minha defesa depois da expulsão, antes todos os expulsos receberam apenas uma decisão genérica de indeferimento.”
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