Como a esquerda trata os seus velhos

Há dois caminhos para obter o respeito duradouro na esquerda: a morte prematura e a decrepitude.| Foto: Pixabay

Um professor aposentado, alarmado, me mostra que outra vez Marilena Chaui foi convidada pelo reitor para uma conferência inaugural da UFBa. O título da conferência é “O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira”. Ela foi realizada no dia 22, quando escrevo a lápis em papel ofício porque o computador está pifando. (Já dizia Millôr que livro não enguiça, e isso vale também para o lápis e o papel). Eu poderia usar o computador combalido como álibi para me evadir de uma palestra online de Marilena Chaui, mas a verdade é que Marilena Chaui é uma pessoa pública irrelevante fora dos quadros do PT e seus satélites. Qualquer universidade que a trate como grande figura respeitável passa o seu atestado de irrelevância.

Quem achar que estou exagerando, pergunte: que fez Marilena Chaui de excepcional relevância? Oficialmente, ela é uma historiadora da filosofia especialista no pensamento de Baruch Spinoza. É algo bem comum na filosofia acadêmica, sobretudo se brasileira. Eu sou a mesma coisa, só que trocando Spinoza por David Hume.

Seu livro sobre Spinoza ganhou um Jabuti (o que depõe contra o Jabuti), mas não teve nenhuma grande repercussão internacional, uma vez que sequer foi traduzido para uma língua que especialistas em Spinoza mundo afora pudessem ler. Ela até tentou consolidar a imagem de filósofa política contemporânea. Aí pegou um livro do seu professor Claude Lefort e plagiou. Merquior percebeu, denunciou no jornal e, então, se impôs uma lei do silêncio na academia. No fim das contas, ela era uma histérica do PT que usava o prestígio da USP para lavar a histeria petista. Hoje ela é uma histérica do PT que acha que Sérgio Moro foi treinado pelo FBI para tomar o pré-sal por meio da Lava Jato. E ninguém chama a doutora de fake news.

Se, ainda assim, a criatura vem pra UFBa como grande figura do pensamento, que dizer da UFBa? Que de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo. Fiquei aliviada ao ver que desta vez o evento era online, porque da outra vez em que Chauí abriu esse evento, o Teatro Castro Alves foi depredado pela gentalha (uma peculiar gentalha que se acha reserva moral da humanidade) que ofendeu os trabalhadores da segurança e arrombou os portões para entrar.

Um ex-guerrilheiro se importa e é ignorado

Dado esse estado de coisas, surpreende que ainda haja gente, como esse professor aposentado, que se preocupe com a reputação atual da UFBa. O professor em questão chama-se Amílcar Baiardi, antiga liderança da esquerda armada. Ele passou anos preso e foi torturado. Deve estar com uns 80 anos e pertenceu à geração que acreditou nas lorotas propagandeadas mundo afora pela União Soviética. A orientação teórica dele, em particular, estava no panfleto de Régis Debray, que fez muito sucesso no Brasil e visava a fundamentar a ação de Che Guevara.

Depois de sair da cadeia, Baiardi começou a duvidar da fé revolucionária. Acabou se convencendo da democracia e do liberalismo. Nunca desenvolveu nenhuma síndrome de Estocolmo e segue detestando os torturadores da última ditadura. Apesar disso, como antipetista, defendeu abertamente a eleição de Bolsonaro em 2018, porque não colocou a questão 1964 como fator único de suas escolhas. Pensando bem, quem vota focado em controvérsias historiográficas?

Ora, o PT e seus satélites colocam a luta armada dos totalitários como única força contrária ao regime de 1964 e pintam-na como campeã democrática, em detrimento dos êxitos reais e pacíficos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A luta armada, para eles, foi uma jihad, cheia de mártires e boa em si mesma. Assim, cabe perguntar: que fez Marilena Chaui pela Revolução? Não consta que tenha passado um dia na cadeia e, se tivesse, contaria isso para todo o mundo o tempo inteiro. Iria achar que tem uma estrela na testa e que deveria ser tratada com reverência. Coisa que uma ex-liderança que passou por POLOP, COLINA e VAR-Palmares não faz, e só fala de tortura quando perguntado. Tampouco consta que o atual reitor, que se orgulha de ter integrado a APML, tenha feito algo de relevante pela Revolução.

Esquerdista bom é esquerdista botton

Se o Prof. Baiardi foi tão longe na luta pela Revolução, tão estimada pelo reitor e seus correligionários, por que ele tem mais esperanças de que eu o ouça, em vez de ter o reitor por fã? Por que o reitor, com seus menos de 60 anos, não ouve com deferência um ex-guerrilheiro preso e torturado? “Porque ele mudou de ideia” é uma péssima resposta. Se alguém foi tão longe e resolveu voltar, aí sim é que há mais razões para ouvir.Atenção e respeito não implicam concordância nem obediência: implicam enriquecer o próprio pensamento com a experiência alheia.

Ninguém olharia para o Prof. Baiardi e diria que é um decrépito. Dou-lhe uns 80 anos por causa de cronologia (já tinha tempo no Exército em 1964). Ele tem postura e vivacidade que dão aspecto melhor que muito jovem, pois o que não falta é gente pusilânime que anda com a cara enfiada no celular e chama Uber para não fazer uma caminhada de 20 min. Se ele está bem na velhice, imagine-se nos tempos de juventude, com preparo física. Com certeza deve haver por aí alguma foto bonitona dessa época. Aí, se ele tivesse morrido, sua cara estaria estampando camisetas, canecos e broches. Seu nome concorreria com o de Carlos Marighella (1911 – 1969) para batizar escolas públicas e campi. Calado sob sete palmos, ganharia a reverência dos sindicalistas balofos e dos universitários que não tomam banho.

Há dois caminhos para obter o respeito duradouro na esquerda: a morte prematura e a decrepitude.

Nuanças necessárias

Da outra vez em que Marilena Chaui foi convidada para abrir o evento, quem se manifestou contra foi Luiz Mott. Sim, ele mesmo: o militante gay dos cambalachos estatísticos expostos por Eli Vieira, que por acaso também gay. O PCdoB pega as más estatísticas de Mott para fazer escarcéu, mas, por sua firme posição antipetista e independente, ele vira um direitista reacionário indigno de atenção.

Há mais de um Mott, e o meu favorito é o historiador que revira os arquivos da Torre do Tombo para esmiuçar processos da Inquisição. Um militante disfarçado de historiador, ao descobrir um processo em que o inquisidor foi movido por impulso humanitário, enterraria os papéis para criar uma ficção maniqueísta. Mott, não: pôs aqui, no cap. 4, um relato favorável de uma atuação num caso particular da Inquisição. É o Mott historiador, também, que desmente a estranha tese de Foucault segundo a qual os gays são invenção moderna, assim como os loucos.

Mas se eu fosse um militante do movimento gay, meu Mott favorito seria aquele que, no surgimento da AIDS, se mobilizou para pregar o uso de preservativos, visitou os cortiços de travestis miseráveis, arrecadou milhares de camisas-de-vênus de organizações estrangeiras para distribuí-las com ajuda do governo estadual, quando a importação (até de doação) era coisa dificílima no Brasil. Quando a AIDS eclodiu, o carnaval de Salvador tinha uma consolidada festa gay a céu aberto que atraía homens do mundo inteiro para a Praça Castro Alves. Se a cidade não virou uma bomba sanitária, é muito provável que isso se deva à atuação de Luiz Mott. Itajaí, que não tinha nenhum carnaval gay a céu aberto, ficou bem pior que Salvador.

Que fez o militante gay que hoje aponta o dedo para o septuagenário Luiz Mott? Nada. Nem era nascido.

Nós com isso

A postura da esquerda com os seus velhos é detestável. Se eles debandam da esquerda, toda a sua experiência é jogada no lixo e eles não valem mais nada. Se permanecem na esquerda, têm que ficar mudando de opinião conforme a banda toque. Se, por exemplo, antes era um antirracista pró liberdade sexual, agora tem que defender o uso político do conceito de raça e lutar contra a “objetificação” da mulher.

Pessoalmente, gosto de Luiz Mott, e posso conversar com ele sobre mil assuntos que não são as estatísticas do GGB. Ele inclusive sabe que dou razão a Eli. Conhecidas as opiniões irredutíveis, não falamos mais das estatísticas, mas sim do antigo hábito brasileiro de criar papagaios, de culinária, ou da vida alheia, que ninguém é de ferro. Mas nem Mott, nem Baiardi, podem se sentar para conversar sobre a vida alheia, ou os papagaios, com um militante do PT e seus satélites.

Toda gente normal é multifacetada. Não tenho a pretensão de encontrar no mundo uma alma que concorde comigo em cada opinião moral e política. Os militantes de esquerda, totalitários que são, presumem que todos os interlocutores dignos estão de acordo em cada opinião moral e política.

Hoje vemos nas redes sociais as pessoas exaltadas, antipetistas até ontem, se orgulhando de suas opiniões políticas como se isso atestasse algum êxito relevante na vida. Mais: deixam de enxergar os outros como multifacetados e ficam com um martelinho de juiz na mão, dando vereditos a seres unidimensionais. “Passapanista”, “bolsomínion”! Uma vez carimbado, o outro não pode se sentar para conversar sobre culinária ou vida alheia.

Os carimbos são distribuídos a cada discussão política. Toda hora tem uma discussão política com uma opinião-slogan. No fim do mês, ninguém seria capaz de listar todas as controvérsias, mas o juiz terá uma lista de passapanistas e bolsomínions atualizada.

Uma controvérsia deste mês, porém, é inesquecível: vimos autodeclarados liberais, democratas, defenderem o fim da imunidade parlamentar e do devido processo legal. Nada importa mais que contrariar os bolsomínions (bolsomínion é todo mundo que não apoiou aquele juiz em situação de carência capilar).

O petismo pode estar em seus estertores, mas a mentalidade totalitária grassa por variadas posições políticas.

Confira matéria completa na Gazeta do Povo

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