Enfraquecimento das organizações criminosas no ambiente prisional altera a postura de atuação dos grupos nas ruas. Fora das unidades, prevalece a conduta de tolerância aos rivais
Nem guerra, nem trégua. Quase quatro meses após a retomada do controle das penitenciárias do Ceará pelo Estado, com o fechamento de 98 cadeias públicas vulneráveis e a apreensão de quase 3.500 celulares, o poder de articulação das facções criminosas foi abalado. E diante do novo cenário, essas organizações – que protagonizaram juntas o 15º ciclo de atentados, registrado no início do ano – têm adotado uma postura de tolerância entre si nas ruas.
É o que revela a apuração realizada pelo O POVO. Enfraquecidas no âmbito do sistema prisional e consolidadas nos territórios dominados após a carnificina de 2017, com seus 5.134 homicídios, as facções criminosas caminham agora para estabelecer um “modelo de negócios”. Dedicados ao tráfico, e não mais à guerra, esses grupos teriam, mais uma vez, influenciando na queda das estatísticas de homicídio do Ceará.
“Desta vez, não há uma pacificação. Não oficialmente. Ninguém fala sobre isso, mas o que a gente tem notado é que há certa tolerância. Cada um faz seus ‘corres’, cuida das suas coisas. Em alguns territórios, houve até colaboração”, descreve uma das lideranças sociais ouvida pelo O POVO, que atua nas comunidades do Grande Jangurussu, Grande Bom Jardim e região da Barra do Ceará, na Capital.
“Em um desses bairros, nessas grandes operações, aconteceu de a Polícia Civil dar o bote no grupo de uma facção e o pessoal fugir pelo lado dos rivais, com o consentimento deles. O pessoal da outra facção deixou eles passarem pelo território. Eles permitiram”, descreve.
A fonte, que não será identificada por questões de segurança, detalha que ainda há, no entanto, alguns pontos de conflito constante. As chacinas, contudo, se tornaram pontuais e passaram a ter motivos outros. Prevalece, agora, a acomodação nos territórios, além de “colaborações momentâneas”.
“Nas ruas, a facção não perde poder. Nos presídios, eles (Estado) realmente apertaram, mas só nos pequenos. Uma ou outra liderança. Mas ainda há comunicação com a rua. Os caras falam: ‘eles não são doidos de mexer com nois (sic)’. Os grandes estão de tranquilos. A piaba é que está se ferrando”, descreve.
Sobre a redução de 56,6% no total de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) no Ceará, no primeiro trimestre de 2019, se comparado a 2018, a fonte é enfática. “Não há política pública que dê conta de uma redução de 60% nos homicídios. É surreal. Assustador. E não apenas no Ceará. Veja o Rio Grande do Norte e Alagoas. Também teve queda. Ou há um esgotamento, ou um movimento de região”, analisa.
Em fevereiro último, o Rio Grande do Norte registrou uma redução de 42,7% nos assassinatos. Já em Alagoas, no mês passado, houve 101 mortes em todo o Estado, foi o menor número desde o início da série histórica, em 2011.
“Acabou a disputa. Eles se estabeleceram. Foi importante essa retomada dos presídios. Tudo estava muito abusivo. Mas, na porta de saída das facções, o Governo não tocou. Acredito que a gente caminha, talvez, para uma nova pactuação. As rotas de tráfico se ampliaram. Novos aeroportos ou portos. Caminhamos para uma postura de negócios”, conclui a fonte.
Facções continuam inimigas, mas estão desestruturadas, diz secretário
A intervenção realizada no sistema prisional do Ceará foi determinante para a queda dos homicídios no Estado, avalia o titular da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), Mauro Albuquerque. Segundo ele, a quebra na comunicação dos criminosos, decorrente da apreensão dos celulares, bem como a descapitalização desses grupos, com a inibição do cometimento de crimes no âmbito das penitenciárias, desestruturou as facções, dentro e fora das muralhas.
O resultado, explica Mauro, foi um recuo na guerra por territórios. Porém, assegura ele, não há “tolerância”. “Eles continuam inimigos. O que não estão fazendo é se bater abertamente. Estão sem condições de se enfrentar nas ruas. Estão desestruturados. Antes, eles usavam muito do dinheiro que vinha de dentro do sistema para isso”, defende.
A descapitalização, reitera, é ocasionada pela interrupção de crimes que ocorriam dentro das unidades prisionais, antes dominadas pelas facções. “Não tem mais capital. As pessoas têm que entender que a grande fonte de renda dos grupos criminosos é o sistema penitenciário. Televisão alugada, ventilador alugado, alimentação vendida, prostituição, estupro. E quando a gente corta, gera a descapitalização”, sustenta.
Ao também considerar a redução como resultado de um trabalho conjunto com as forças da Segurança Pública, locais e nacionais, o secretário detalha que o fim da comunicação entre criminosos, em “tempo real”, dificulta o ordenamento de crimes.
“O preso que tem celular e boca de fumo, tem os seus “meninos na rua” e controla tudo. Qualquer insatisfação, ele quer demonstrar poder. Ordena mortes, tortura e ataques. E quando quebra a comunicação, quebra as pernas. Não há tempo de reação online. Fica retardado. A ordem vai chegar por recado. Isso diminui o poder nas ruas. Quebra a legitimação do comando e da ordem”, descreve.
Mauro Albuquerque atribui ainda às informações coletadas nos celulares retirados de dentro do sistema parte das informações que têm norteado as investigações da Polícia Civil e do Ministério Público do Ceará (MPCE) na identificação e prisão de criminosos fora do sistema. “Eles têm um potencial imenso de informações nas mãos”, considera.
O secretário, que falou ao O POVO por telefone, no último dia 11, reafirmou que cresce a cada dia o número de detentos de facções rivais que são mantidos em uma mesma unidade prisional, embora em alas separadas, conforme entrevista publicada nas Páginas Azuis, em 18 de fevereiro último. “A gente tem feito isso constantemente. Aos poucos, a gente vai remodelando essa estrutura de divisão”, disse, sem detalhar quais unidades passam pelo remodelamento.
SSPDS admite recuo das facções, mas atribui postura a ‘endurecimento’ de ações
Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) admitiu que há um recuo da “criminalidade em geral” no Estado. No entanto, a pasta atribuiu a nova postura das facções criminosas, e a queda dos homicídios, ao “endurecimento” das ações realizadas em parceria com a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), “em maior intensidade do que se observava em anos anteriores”.
A SSPDS informou que “rotineiramente acompanha a dinâmica das organizações criminosas”, sendo este um dos “maiores focos” da pasta. “Os investimentos feitos em ciência e tecnologia têm caminhado para uma melhoria das atividades de investigação e de inteligência”, diz o texto. “Mais dados trabalhados com apoio de inteligência artificial e da ciência de dados permitem uma maior qualificação das prisões realizadas”, completa.
A secretaria detalhou que, nos últimos 12 meses, em operações realizadas com objetivos variados, incluindo ações para desarticular grupos criminosos no Estado, foram registradas quase 21 mil prisões e apreensões em flagrante de suspeitos relacionados a homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, tráfico de drogas, roubo e porte, posse ou comércio de armas de fogo.
Sobre as informações coletadas nos celulares apreendidos pela SAP, a SSPDS ressaltou que as extrações e análises de dados são tratadas pelos setores de inteligência de diversas agências, mas que investe em uma “maior capacidade de extração e análise do material coletado nos aparelhos”.
Prisões qualificadas levaram a uma inibição do crime, avalia especialista
Para o advogado criminalista e membro do Conselho Penitenciário do Estado (Copen) Cláudio Justa, as investigações realizadas pela Polícia Civil, sobretudo com o uso das informações provenientes do sistema prisional, retiradas dos celulares apreendidos com os presos, possibilitaram a realização de prisões qualificadas, ocasionando uma desarticulação, ainda que temporária, das facções criminosas.
“Houve uma quebra de poder dentro do sistema. Isso é fato indiscutível e inegável. E o aparato policial ficou não apenas ostensivo, mas passou a cumprir mandados de prisão. E aí você tem uma inibição das ações ostensivas do crime. Sobretudo dos acertos de contas, invasão de territórios. Isso reduziu significativamente”, opina.
O arranjo, segundo defende, alterou a dinâmica nas comunidades, onde já se fala em trégua. “Há possibilidade de trânsito nos territórios que eram restritos. Em alguns lugares, agora, é permitido transitar. É como se houvesse uma lei de exceção para eles. Aparentemente, o crime recuou na guerra. E não há poder e nem interesse de um enfrentamento aberto com o Estado”, diz.
Justa considera que a intervenção realizada nos presídios foi exitosa, muito embora, do ponto de vista humanitário, o prejuízo seja alto, por conta da superlotação, excesso de disciplinamento e “rigor análogo à tortura”.
“Mas esse é um aspecto. O crime é um negócio. Não há aí um interesse, um motivo ideológico de resistência. Não estamos falando de nenhum tipo de ação para além da comercialização de drogas. E quando se tem uma saturação de forças, o recuo é estratégico, para manter os negócios. Houve um recuo, sem dúvida”, completa.
Sindicalista diz que medida ajudou a reduzir a violência
Presidente do Sindicato dos Agentes e Servidores do Sistema Penitenciário do Ceará (Sindasp-CE), Valdemiro Barbosa é enfático ao recordar que sempre apontou o sistema penitenciário como o principal gargalo dos problemas da Segurança Pública no Ceará. Para ele, inegavelmente, a intervenção realizada pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) influenciou na queda das estatísticas de criminalidade no Estado.
“Essa retomada foi uma ação muito positiva. Havia uma falta de estrutura no sistema, na maneira como ele era gerido, nas cadeias públicas, que não ofereciam condições de trabalho. Não havia efetivo de agente sequer para chegar ao portão das ruas. Agora, trabalhamos com a vigilância aproximada, ficando 24 horas nas ruas, ocupando os postos”, detalha, afirmando que a medida coíbe o cometimento de crimes no interior das unidades.
Para Valdemiro, o rigor adotado no sistema influencia no recuo percebido das facções nas ruas. Ele afirma, no entanto, serem necessários mais 2.000 agentes penitenciários, além da construção de novas unidades prisionais, para que o novo modelo de gestão seja mantido.
Uma fonte do Judiciário ouvida pelo O POVO, no entanto, considera precipitado atribuir o novo cenário, exclusivamente, à mudança de gestão no sistema prisional. “Vivemos uma situação muito embaçada. Antes, era tudo bem definido. A gente escutava membros de facções dizendo que iriam matar e exterminar seus rivais. A divisão dos presídios e territórios era de uma clareza solar”, diz.
Após pedir a preservação da identidade, a fonte destaca que ainda faltam informações que permitam uma análise mais precisa sobre a conjuntura posta para o futuro. “Agora, com a intervenção, tudo está incerto. Arrisco dizer que caminhamos para a união das facções, dessas ‘famílias’, como vemos nos filmes de máfia. Mas não sabemos o que acontece nos bastidores”, diz.
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