A imposição de preços mínimos no transporte rodoviário de cargas foi uma concessão corporativista feita pelo governo de Michel Temer para encerrar a greve dos caminhoneiros de 2018. Flagrantemente inconstitucional, a tabela publicada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) foi imediatamente contestada pelo setor produtivo nas mais diversas instâncias do Judiciário. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, tomou o tema para si e vem se omitindo a esse respeito há dois anos e meio, trazendo diversos prejuízos ao setor produtivo. Agora, a tabela acaba de ser reajustada, em valores que giram em torno de 2,5%.
A publicação dos preços por parte da agência reguladora ocorre por determinação da Lei 13.703/2018, aprovada pelo Congresso na conversão da Medida Provisória 832 e segundo a qual a agência é obrigada a publicar novas tabelas semestralmente. A ANTT, portanto, tem a menor das culpas nesta agressão ao livre mercado – a responsabilidade maior é a de quem permite que a lei continue vigorando. Nem Executivo, nem Legislativo parecem dispostos a patrocinar algum projeto que simplesmente acabe com a política de preços mínimos; resta o Judiciário, que parece ter feito sua escolha por meio da omissão pura e simples.
De “última tentativa” em “última tentativa”, o Supremo, guardião da Constituição, dá sua chancela à violação do artigo 170 da Carta Magna
Como havia decisões conflitantes nas diversas ações impetradas Brasil afora assim que o tabelamento passou a vigorar, o ministro Luiz Fux, relator das ações de inconstitucionalidade levadas ao Supremo pela Associação do Transporte Rodoviário do Brasil (ATR Brasil), pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), ordenou a suspensão de todas as ações em instâncias inferiores. Faria sentido se houvesse alguma disposição em resolver logo o imbróglio, mas não é o que vem ocorrendo desde então.
Mesmo havendo todas as condições para uma liminar que suspendesse a tabela, dada sua inconstitucionalidade explícita e os prejuízos que o setor produtivo passou a ter após sua entrada em vigor, Fux se limitou a promover tentativas de conciliação que não deram em nada. Ora, persistindo o impasse, nada mais natural que a corte, então, resolvesse o assunto, o que quase ocorreu em setembro de 2019 e em fevereiro do ano passado. Mas em ambos os casos a Advocacia-Geral da União pediu que Fux adiasse o julgamento – no episódio mais recente, o então advogado-geral André Mendonça (hoje ministro da Justiça) solicitou a realização de uma nova audiência e a descreveu como uma “última tentativa de buscar-se a conciliação”. Pois também essa “última tentativa” falhou, e mesmo assim as ações não retornaram à pauta do STF, até porque Fux continua insistindo em reuniões de conciliação e pretende promover mais uma rodada de negociações em fevereiro.
Desta forma, de “última tentativa” em “última tentativa”, o Supremo, guardião da Constituição, dá sua chancela à violação do artigo 170 da Carta Magna, segundo o qual “a ordem econômica” é fundada “na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, observando-se o princípio da “livre concorrência”. Também é atropelada a Lei 10.233/11, que criou a ANTT e afirma, nos artigos 43 e 45, que o serviço de transporte rodoviário de cargas tem de ser oferecido “em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição”, com preços “livres, reprimindo-se toda prática prejudicial à competição”. A lei que institui a tabela do frete obriga, assim, a agência a agir como interventora, quando seu papel deveria ser o de intermediar negociações livres entre caminhoneiros, setor produtivo e empresas transportadoras.
Quem assiste com satisfação à incapacidade do Supremo de declarar o óbvio são os caminhoneiros, ainda divididos quanto à realização de uma nova greve em 1.º de fevereiro. Sem ter de se preocupar demais com a possibilidade de ver o fim da tabela, eles se voltam para outras demandas corporativistas, como o combate ao projeto de lei da “BR do Mar”, que incentiva a navegação de cabotagem – para algumas lideranças dos caminhoneiros, o projeto reduzirá as viagens mais longas por via rodoviária e favorecerá a montagem de frotas próprias por empresas.
É verdade que existe uma distorção no mercado do transporte rodoviário, graças a inúmeros incentivos concedidos por governos anteriores para a aquisição de caminhões, aumentando demasiadamente a oferta. Essa anomalia ficou escancarada durante a crise de 2015-2016, quando passou a haver caminhões demais para produtos de menos para transportar. A resposta a essa distorção, no entanto, foi a introdução de novas distorções, que tiveram efeitos negativos até mesmo para os caminhoneiros: um estudo publicado em 2019 mostrou que a tabela do frete prejudicou os autônomos, e a constatação da enorme dependência brasileira do modal rodoviário levou o setor produtivo a buscar alternativas que reduziriam ainda mais a demanda por caminhões. Este costuma ser o resultado quando se colocam o corporativismo e o intervencionismo à frente do livre mercado.
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