Houve um tempo em que os correspondentes estrangeiros eram seres mitológicos. Muito antes de sonhar em me tornar jornalista, eu os via como semideuses que me aproximavam de realidades distantes e que me colocavam como “testemunha ocular da história”, para usar um lugar-comum hiperbólico.
Estou pensando no grande Silio Boccanera transmitindo a queda do Muro de Berlim. Havia um quê de felicidade comedida em sua expressão. O texto era sóbrio. O feito era mais adjetivado do que seus protagonistas. E havia ainda a humildade de reconhecer que não se sabia as consequências daquele dia.
Lembro ainda de William Waack na Guerra do Golfo. De Geneton Moraes Neto entrevistando Mikhail Gorbachev. De um Pedro Bial pré-BBB cobrindo a Guerra da Bósnia. Dá para incluir nessa lista até o grande Paulo Francis, cujas análises nunca, jamais, em hipótese alguma se rendia ao tom panfletário.
Cabelos despenteados
Hoje os correspondentes estrangeiros mal se dão ao trabalho de pentear os cabelos em respeito ao público telespectador. Há ainda os que soltam palavrões diante das câmeras. E os que saem às ruas para cobrir um acontecimento qualquer já munidos dos adjetivos que darão cor à luta entre o bem e o mal. Impossível ser apenas uma testemunha ocular da história. É como se fôssemos obrigados a assumir sempre um lado da narrativa.
Estou escrevendo isso pensando numa reportagem a que assisti recentemente. Sobre a invasão do Capitólio. A edição da matéria, muito bem cuidada, dava à história um ar de série de suspense ou espionagem. Como se a repórter tivesse conseguido se infiltrar heroicamente entre os manifestantes, ops, entre os extremistas. E como se isso lhe desse o direito de moldar a realidade a seu bel-prazer.
Uma realidade diante da qual não dá para ficar impassivo. Daí, talvez, a sensação de cansaço das pessoas que passam o dia diante do noticiário. É impossível manter distanciamento de eventos que, sejamos sinceros, não mudam muita coisa na nossa vida. Tudo parece ser urgente e necessário. Como se a história, aquela que não está nem aí para o cotidiano, como já disse um aforista bissexto, fosse nos atropelar a qualquer momento.
A certa altura da reportagem, já meio zonzo por causa da câmera toda nervosinha, ouvi a repórter chamar os invasores do Capitólio de nazistas. Assim, na cara dura. Na lata, como se diz. Sem nem um “neo” para tentar dar aquela amenizada. Entre bufadas, desliguei a televisão. E foi aí que me lembrei de Bial, Waack, Geneton, Francis. No que lhes conferia aquele ar mítico. E, por extensão, no que tanto me incomoda nesse novo estilo, digamos, ouriçado de reportagem.
Credibilidade
A adjetivação exagerada, a opção por uma narrativa específica, o tom desesperado e/ou incendiário e a falsa sensação de urgência e/ou importância denunciam uma tentativa de recuperar algo que os antigos correspondentes estrangeiros exalavam naturalmente, por meio da elegância, do comedimento e até, vá lá, de certo sorrisinho no canto da boca. Me refiro àquela palavrinha que ouvi milhões de vezes nas salas frias e fedidas da UFPR: credibilidade.
A gente simplesmente acreditava no que estava vendo na TV. Havia um casamento entre imagem, palavra e percepção do mundo. O noticiário era feito não para despertar sensações como alívio ou revolta, e sim para informar. Os acontecimentos tinham consequências, claro, mas a gente sabia que elas eram (como ainda são) limitadas para o grosso das pessoas. Diante da queda do Muro de Berlim, a maior preocupação de um espectador podia ser com as pessoas que teriam que limpar aquela sujeirama toda.
Hoje o fato, contaminado pela opinião, tenta prevalecer pela força. Daí aquele “nazista” no meio da reportagem. Ou, para citar o chamado “outro lado”, por isso é que teve quem falasse em “povo” invadindo o Capitólio – como se o uso da palavrinha mágica conferisse aos lunáticos alguma dignidade, quando não superioridade moral. Resultado: assistimos ao noticiário como se víssemos Glória Maria deslumbrada diante de um sol da meia-noite falso, feito em estúdio.
Os correspondentes estrangeiros, antes míticos porta-vozes de uma realidade crível, se transformaram em personagens caricatos – física e intelectualmente. A tal ponto que a credibilidade, antes tão natural, virou desconfiança e até birra. A realidade, por sua vez, foi e continua sendo desfigurada ao bel-prazer (olha ele aí novamente!) dessas pessoas que parecem viver num estrangeiro muito particular. De onde nunca trazem qualquer notícia animadora.
Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.veja + em Polzonoff
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