Há bons vinte anos, uma daquelas ciganas que populavam a praça Osório me pegou pelo braço e, com força incomum para uma mulher de um metro e meio, disse que queria prever o meu futuro. Com um gesto brusco, tirei meu braço das garras da adivinha. “Estou com pressa”, disse. “E não tenho dinheiro”, emendei.
Mas, por algum motivo que me escapa à memória, não saí do lugar. O que deu a ela a oportunidade de me pegar pelo braço de novo. Olhei para um lado. Para outro. Pensei em sair correndo, mas temi ser visto como alguém que grita “Socorro!” nesse tipo de situação.
Lembrei que tinha R$10 no bolso de trás da calça e, enfastiado, deixei que a cigana fizesse o que se esperava dela. Ela espalmou minha mão e começou a fazer cócegas pelas linhas da vida, do amor e do trabalho. Tudo ia muito bem (eu seria um bem-sucedido jornalista e estaria casado com a mulher da minha vida), quando a cigana parou, arregalou os olhos e me sussurrou num tom ameaçador: “Dia 13. De janeiro. De 2021. Guarde esse dia”.
“Tem um papel e uma caneta aí?”, tive vontade de perguntar cinicamente. Mas o pudor me impediu. Só que devo ter arqueado as sobrancelhas ou arregalado os olhos num sinal de interesse sincero, porque a cigana continuou. “Nesse dia, você vai escrever um texto sobre Césare Lombroso”.
Aí já era demais. Por que eu escreveria um texto falando de Lombroso, o doidinho que acreditava que as características físicas influenciavam no caráter das pessoas? Impossível que a frenologia viesse a prosperar nos próximos vinte anos. “Moça, eu tenho um compromisso”, menti, na esperança de que ela se comovesse, pegasse meus R$10 e me deixasse em paz. Mas ela parecia obcecada. Vai ver era uma estagiária nas artes divinatórias e quisesse mostrar serviço.
“Você vai escrever um parágrafo dizendo que a ciência tem muitos motivos para se orgulhar, mas também motivos de sobra para se envergonhar. E daí vai citar Cesare Lombroso. Tudo por causa de um tal de Átila Iamarino”, previu ela. E, a essa altura, eu não estava entendendo nada mesmo. Digo, aquele eu do futuro estava certo em sua (minha?) platitude. A ciência tem motivos para se orgulhar e se envergonhar. Dã. Só se eu estivesse num dia pouco inspirado para escrever uma obviedade dessas. Além disso, quem é Átila Iamarino?
Já cansado daquele oráculo, e com certo medinho de vir a furar meus próprios olhos num futuro nem tão remoto assim, dei por encerrada a consulta. Paguei o resgate de R$10 e recuperei a liberdade do braço. Antes de dar as costas e conquistar outro cliente com seus gestos delicados, a cigana se virou para mim e disse: “Michal Kosinski”.
Frenologia 2.0
Na segunda-feira (11), a revista científica “Nature” cedeu seu prestigiado espaço para a publicação de uma pesquisa feita pelo psicólogo Michal Kosinski. O professor da igualmente prestigiada Universidade de Stanford afirmou que é possível usar o reconhecimento facial para identificar a orientação política das pessoas.
“Que maravilha!”, pensa você. Assim vai dar para detectar o bolsonarista pelo tamanho do nariz ou o petista pelo formato das orelhas. “Será possível separar o joio do trigo”, concluirá alguém que sempre se inclui entre o trigo, nunca entre o joio. De acordo com a Agência Estado, Kosinski cita uma experiência recente que usou a tecnologia de reconhecimento facial e a inteligência artificial e que identificou corretamente a orientação política em 72% dos casos.
Assim, Kosinski consegue ressuscitar as teorias de Cesare Lombroso. Em meio a tantos termos bonitos como “inteligência artificial” e “algoritmos”, quase nem dá para perceber a imoralidade da experiência e as consequências trágicas da possibilidade, ainda que teórica, de se identificar “cientificamente”, e por meio das características físicas, os conservadores e os progressistas.
E, antes que um leitor mais exaltado comece a sonhar com as aplicações práticas do neolombrosianismo, vale dizer que, em 2017, Kosinski publicou um artigo dizendo que era possível usar o reconhecimento facial para identificar a orientação sexual das pessoas.
E o Átila?
Átila Iamarino publicou um artigo intitulado “Autoritarismo necessário”. Fui ler o texto para lá de confuso e encontrei o mesmo catastrofismo oportunista de sempre. E um uso, digamos, heterodoxo da lógica textual.
Em compensação, por algum motivo Átila me lembrou Lombroso, que me lembrou Kosinski, que me lembrou a cigana de 20 anos atrás. E essa história toda me lembrou que nada é capaz de impedir o homem de repetir os erros do passado quando ele acredita na virtude de suas ações. Estão aí os tribunais raciais nas universidades e o “autoritarismo do bem” de Iamarino que não me deixam mentir.
Paulo Polzonoff Jr.
Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor. **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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