“These are the rules of big business. They have superseded the teachings of our parents and are reducible to a simple maxim: Get a monopoly; let Society work for you; and remember that the best of all business is politics” (Frederick Howe, The Confessions of a Monopolist, 1906)
Ontem, num grupo de WhatsApp, conversava com alguns velhos amigos dos tempos de escola, quase todos empresários liberais, sobre o seguinte dilema: como é possível que um empresário bem-sucedido como Jorge Paulo Lemann – “forjado no mais puro capitalismo”, como resumiu um desses meus amigos – financie, por exemplo, uma revista de educação como a Nova Escola, talvez a publicação mais influente da área, cujo conteúdo é radicalmente de esquerda e anticapitalista, e para a qual o marxista Paulo Freire é “o maior educador brasileiro”? Por qual motivo um sujeito que fez fortuna no capitalismo – e que, portanto, pode ser considerado um representante desse sistema – fomenta a divulgação de ideias socialistas dentro das escolas?
É claro que o dilema só pode existir se forem conhecidos os dois fatos concretos que o perfazem: que Lemann é um empresário capitalista de destaque e que, ao mesmo tempo, promove institucionalmente uma educação com forte viés marxista e neomarxista. Meus amigos conheciam bem o primeiro deles. Daí que, sendo liberais, admirassem Lemann e vissem nele um emblema da economia de mercado. Mas ignoravam totalmente o segundo. Não tinham ideia de que a Fundação Lemann abrigasse a Nova Escola, e menos ainda da importância dessa revista (que, desde que fundada por outro empresário capitalista, Victor Civita, promove toda sorte de pautas “progressistas” nas salas de aula, do feminismo radical ao antiamericanismo terceiro-mundista) para os ideólogos esquerdistas da educação. Eis por que não consigam sequer conceber, e tendam a ridicularizar como fantasioso, esse aparente paradoxo, o de um notório capitalista fomentando uma cultura política socialista.
Os donos das maiores fortunas do mundo, e especialmente os que possuem grandes fundações em seu nome, empregam o seu vultoso capital no fomento de agendas de esquerda, frequentemente radicais
Mutatis mutandis, essa incapacidade de compreensão é estruturalmente similar ao daquela conhecida jornalista segundo a qual não há esquerda nos EUA porque, afinal de contas, o país é “a meca do capitalismo”. Naturalmente, assim como eu, meus amigos riem de tal opinião, não percebendo que o seu espanto diante da mera possibilidade de um grande capitalista ajudar a difundir ideias de extrema-esquerda é apenas uma versão mais sutil daquela peça de humor involuntário.
Mas se, no caso da jornalista, a incompreensão talvez decorra de certa indigência intelectual, posso garantir que esses meus amigos são pessoas inteligentes. Não, o problema aqui não é de inteligência, mas de hábito. Reside num vício de raciocínio, adquirido em nosso ensino fundamental, que consiste em analisar a realidade política com base em definições meramente enciclopédicas, resultando em silogismos factualmente absurdos como este: se socialismo é sinônimo de esquerda, logo capitalismo só pode sê-lo de direita; e, portanto, um empresário capitalista jamais seria um aliado objetivo de radicais de esquerda.
Curiosamente, aquele vício de raciocínio é, ele próprio, contaminado com elementos de marxismo, a começar pela teoria da determinação material da consciência. Assim, as ideias de uma pessoa seriam determinadas por sua posição respectiva na sociedade de classes. Um empresário capitalista – ou burguês, na terminologia clássica – esposaria necessariamente ideias e valores capitalistas. Um proletário, por sua vez, defenderia necessariamente ideias e valores socialistas. Tudo isso consagra no imaginário nacional um clichê tão ridículo e desmentido pelos fatos quanto difícil de erradicar, mesmo em inteligências acima da média: a sugestão de que empregadores são (ou deveriam ser) sempre de direita; empregados, sempre de esquerda. Ou, em versão ainda mais burlesca, de que ricos são de direita; pobres, de esquerda. Os primeiros, para manter o status quo e garantir seus privilégios; os segundos, para revolucionar a estrutura social e melhorar sua condição de vida.
Ora, a realidade mostra precisamente o contrário. Basta observar que, hoje, os donos das maiores fortunas do mundo, e especialmente os que possuem grandes fundações em seu nome, empregam o seu vultoso capital no fomento de agendas de esquerda (eufemisticamente chamadas de “progressistas”), frequentemente radicais. O exemplo mais patente talvez seja o de George Soros, um dos principais financiadores de movimentos extremistas como Occupy Wall Street, Black Lives Matter e Antifa. Não é preciso fazer grandes especulações sobre a razão disso para constatar o fato de que as coisas são realmente assim.
Logo, ao ser perguntado por um daqueles amigos sobre qual seria a minha hipótese para explicar o dilema com o qual abri este artigo, respondi não ter uma plenamente elaborada, limitando-me a constatar a existência objetiva dos fatos aparentemente paradoxais. Uma explicação possível, todavia, é a de que, contrariando o axioma materialista, os grandes empresários capitalistas, detentores do poder econômico, já não tenham uma mentalidade burguesa-capitalista, mas, ao contrário, aristocrática e dinástica, desejando proteger-se das flutuações do mercado por meio da associação com o poder político-militar. Nesse sentido, conquanto tenham enriquecido na economia de mercado, já não a considerariam propícia aos seus interesses, vendo na ordem capitalista antes um perigo que uma oportunidade. Cansado de aventuras e riscos, o antigo empreendedor torna-se, então, um novo aristocrata.
Essa hipótese é reforçada, por exemplo, pela confissão do próprio George Soros, que, em artigo significativamente intitulado “A Ameaça Capitalista”, publicado na The Atlantic em fevereiro de 1997, escreve com todas as letras, e sem um pingo de vergonha: “Embora eu tenha feito fortuna no mercado financeiro, hoje temo que o fortalecimento irrestrito do capitalismo laissez-faire e a difusão dos valores do mercado para todas as esferas da vida estejam ameaçando a nossa sociedade aberta e democrática. O principal inimigo da sociedade aberta, creio, já não é a ameaça comunista, mas a capitalista”.
A ideia de que ricos de esquerda são uma impossibilidade é um vício de raciocínio contaminado com elementos de marxismo, a começar pela teoria da determinação material da consciência
A hipótese acima resumida não é minha, mas do filósofo Olavo de Carvalho. Há quase duas décadas, Olavo já refletia sobre o tema, que até hoje soa inverossímil para a nossa provinciana classe falante. Para qualificar tipos como Soros, Rockefeller, Ford – e, numa escala menor, talvez até o nosso Lemann –, o filósofo cunhou o termo metacapitalistas. No artigo “História de quinze séculos”, publicado no Jornal da Tarde em 2004, os metacapitalistas são definidos como “a classe que transcendeu o capitalismo e o transformou no único socialismo que algum dia existiu ou existirá: o socialismo dos grãos-senhores e dos engenheiros sociais a seu serviço”. Segundo Olavo, ao contrário do burguês capitalista clássico, que tinha na fortuna acumulada a base exclusiva de seu poder, os metacapitalistas fundamentam o seu poder também no controle do aparato político, burocrático e militar, assemelhando-se, nesse sentido, às velhas aristocracias europeias, apenas que, ao contrário delas – cujo poder era socialmente legitimado pelo prestígio conquistado graças aos triunfos militares contra os invasores bárbaros, ao tempo do colapso do Império Romano –, a nova aristocracia metacapitalista detém um poder tão substancial quanto ilegítimo, baseado unicamente no autointeresse e na formação de oligopólios financeiros e políticos.
Em comparação com a longa duração das ordens medieval e absolutista – que, juntas, somam quase 15 séculos –, a ordem liberal-burguesa propriamente dita, fundada no livre mercado, teria sido um episódio efêmero na história humana. Parecendo descrever precisamente o cenário atual do ano 2021, em que os donos das maiores fortunas ocidentais investem pesado no fomento ao radicalismo de esquerda e no cortejo à ditadura comunista chinesa, Olavo explica: “Um século de liberdade econômica e política é suficiente para tornar alguns capitalistas tão formidavelmente ricos que eles já não querem submeter-se às veleidades do mercado que os enriqueceu. Querem controlá-lo, e os instrumentos para isso são três: o domínio do Estado, para a implantação das políticas estatistas necessárias à eternização do oligopólio; o estímulo aos movimentos socialistas e comunistas que invariavelmente favorecem o crescimento do poder estatal; e a arregimentação de um exército de intelectuais que preparem a opinião pública para dizer adeus às liberdades burguesas e entrar alegremente num mundo de repressão onipresente e obsediante (estendendo-se até aos últimos detalhes da vida privada e da linguagem cotidiana), apresentado como um paraíso adornado ao mesmo tempo com a abundância do capitalismo e a ‘justiça social’ do comunismo. Nesse novo mundo, a liberdade econômica indispensável ao funcionamento do sistema é preservada na estrita medida necessária para que possa subsidiar a extinção da liberdade nos domínios político, social, moral, educacional, cultural e religioso. Com isso, os megacapitalistas mudam a base mesma do seu poder. Já não se apoiam na riqueza enquanto tal, mas no controle do processo político-social. Controle que, libertando-os da exposição aventurosa às flutuações do mercado, faz deles um poder dinástico durável, uma neoaristocracia capaz de atravessar incólume as variações da fortuna e a sucessão das gerações, abrigada no castelo-forte do Estado e dos organismos internacionais… Essa nova aristocracia não nasce, como a anterior, do heroísmo militar premiado pelo povo e abençoado pela Igreja. Nasce da premeditação maquiavélica fundada no interesse próprio e, através de um clero postiço de intelectuais subsidiados, se abençoa a si mesma”.
Também em 2004, em palestra proferida na OAB de São Paulo, Olavo explica o problema de maneira ainda mais clara, esclarecendo o porquê de o establishment financeiro mundial (Wall Street, Davos, Fundação Rockefeller, Fundação Ford, Fundação Open Society etc.) apoiar invariavelmente movimentos e organizações de viés estatizante e socialista. “Para entender isso” – diz Olavo – “é preciso investigar um mecanismo que é gerado pelo próprio capitalismo, e que funciona assim: o sujeito, dentro da economia de mercado, prospera e enriquece de tal maneira que, quando chega num ponto, percebe não ter mais motivos para continuar submetido às oscilações do mercado. O mercado que o produziu, daí por diante, se torna uma ameaça. Então é preciso cair fora das leis de mercado para garantir a permanência da grande fortuna pelas gerações seguintes. O indivíduo, então, entra com um tipo de consideração que já não é capitalista, mas que é de ordem dinástica… A partir desse momento, a abordagem que essas pessoas fazem da sociedade já não corresponde a uma perspectiva capitalista, mas a uma perspectiva de tipo aristocrática… Quando essas grandes fortunas começam a raciocinar em termos dinásticos, elas têm de vencer o próprio mecanismo da economia de mercado que as constituiu, e só tem um jeito de fazer isso: você tem de dominar o Estado. Isso quer dizer que o poder dessas grandes organizações é econômico até certo ponto, mas depois se converte num poder político-militar que independe do curso dos assuntos econômicos porque detém os meios de dirigir, dominar e estrangular o mecanismo do mercado. A essas pessoas [donas das grandes fortunas] eu chamo de metacapitalistas. Metacapitalistas são aqueles que começaram como capitalistas, mas já transcenderam essa condição e se tornaram uma espécie de nova casta aristocrática”.
Ora, se o objetivo já não é apenas o de enriquecer, mas o de dominar o Estado, e, mais amplamente, as consciências, qual modelo de regime político levou esse domínio às raias da perfeição, desenvolvendo uma tecnologia de controle da sociedade e do indivíduo jamais vista em outros contextos históricos? O modelo socialista, por óbvio. E é também óbvio que os metacapitalistas só apoiam medidas socializantes por saberem que, em termos estritamente econômicos, um regime socialista pleno é uma impossibilidade lógica e prática. Sabem disso, aliás, como a Nomenklatura bolchevique sempre soube, ao menos desde que Lenin lançou a Nova Política Econômica. A estatização completa da economia é inviável, e, para se manter de pé, todo governo de tipo socialista precisa tolerar algum grau de economia de mercado, ainda que de maneira clandestina (ver, sobre isso, USSR: The Corrupt Society – The Secret World of Soviet Capitalism, de Konstantin Simis).
É precisamente esse misto de economia capitalista e governo socialista que tem fundamentado a nova ordem mundial surgida com o fim da Guerra Fria. Numa espécie de acordo tácito com os comunistas, os metacapitalistas do Ocidente chegaram à conclusão de que seria preciso criar alguma forma de síntese entre o dinamismo econômico do capitalismo liberal e a eficiente tecnologia de controle social e imposição de consenso manejada pelos regimes socialistas. Não é à toa que, como protótipo dessa síntese, a China esteja se alçando à posição de potência hegemônica na ordem mundial contemporânea. Com a tolerância, quando não mesmo o endosso, dos metacapitalistas. Como sugeriu o intelectual chinês Di Dongsheng, que mencionei em artigo anterior, Pequim sempre exerceu forte influência sobre Wall Street, e voltará a exercer a partir da posse de Joe Biden. E, muito embora tudo isso ainda soe inconcebível para a maioria das pessoas (a exemplo dos meus amigos liberais), a verdade é aquela que, há 100 anos, escreveu o grande romancista britânico H. G. Wells (um notório socialdemocrata): “O grande negócio não é, de forma alguma, antipático ao comunismo. Quanto mais cresce, mais se aproxima do coletivismo”. Bingo!Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
Flavio Gordon
Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017). **Os textos do colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
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